Dois temas parecem assombrar
a atual teledramaturgia da Globo: o Tempo (viagem no tempo, déjà vus, vidas
passadas, reencarnações etc.) e a História (pastiches da Idade Média,
releituras do Brasil do Império etc.). Algo que se distingue das tradicionais
“novelas de época” que marcaram a história do gênero na TV brasileira. Nunca se
verificou essa recorrência temática em tantas telenovelas, apresentadas
simultaneamente ou em sequência nos diferentes horários. Sabe-se que em ano
eleitoral o laboratório de feitiçarias semióticas da emissora funciona em tempo
integral. O que essa recorrência pode significar dentro desse contexto? Nova bomba semiótica? Ou o
sintoma do temor de uma emissora hegemônica que sabe da importância do atual
cenário eleitoral? – é matar ou morrer. É o momento de entendermos a célebre
afirmação de George Orwell: “Quem
controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o
passado”.
Do laboratório de feitiçarias
semióticas das organizações Globo podemos esperar qualquer coisa.
Principalmente em ano eleitoral. Especialmente nesse ano, já que para o grupo
hegemônico de comunicação é vida ou morte – principalmente após a velada ameaça
do candidato petista Fernando Haddad em plena arena do JN, disparando que,
investigado por investigado, a Globo também é, e pela Receita Federal.
Além das tradicionais manipulações no
jornalismo e criações de “balas de prata” sempre após o último debate que
antecede em questão de horas as eleições (uma coisa tão previsível quanto o
“Roberto Carlos Especial” de final de ano), chama também a atenção a
teledramaturgia.
Desde o ano eleitoral que levou à
vitória Fernando Collor em 1989, a Globo prima por produção de novelas ou
minisséries que procuram através da ficção dar apoio à pauta do candidato que
naquele momento seja a “esperança branca” da poderosa emissora.
Por exemplo,
no cenário da primeira eleição após o regime militar em 1989, as novelas “O
Salvador da Pátria” e “Que Rei Sou Eu?” foram nítidos produtos ficcionais cujos
temas no mínimo pretendiam pegar uma carona na atmosfera política do momento. No
primeiro caso, o título acabou virando um bordão político que alimentou um
imaginário sebastianista ou messiânico em torno da figura de Fernando Collor - do
“caçador de marajás” à “única bala que tenho na agulha” para justificar o sequestro
da liquidez do Plano Collor.
"Que Rei Sou Eu?": a História a serviço dos propósitos eleitorais da Globo |
Já a novela “Que Rei Sou Eu?” tínhamos um
jovem revolucionário lutando contra uma monarquia corrupta (Edson Celulari). Foi
a preparação imaginária da chegada de um jovem político desconhecido (aos
poucos turbinado em aparições rápidas como em programas como o do Chacrinha)
chamado Collor de Mello. O bordão “povo de Avilã” passou a ser usado por ele em
palanques.
Na complicada eleição de 2014, no logo
da telenovela “Geração Brasil” havia uma nítida sugestão do número 45 (do então
candidato Aécio Neves, do PSDB) em “internetês” (ou “Leet”): “G3R4Ç4O BR4S1L” –
sobre isso clique aqui.
Em 2012 na telenovela de cunho político
“O Brado Retumbante” o protagonista era muito parecido com o candidato à
presidência Aécio Neves. Enquanto a série “Questão de Família” do canal GNT, no
ano eleitoral de 2014, mostrava um juiz justiceiro (Eduardo Moscovis),
reforçando o imaginário alimentado diariamente pela pauta midiática da Lava
Jato e pela imagem justiceira de Sérgio Moro e juízes congêneres.
Variações do tema Tempo
Se a recorrência (busca repetições, padrões que por serem recorrentes vão além da mera
coincidência, tornando-se um fato linguístico de significação, um sentido) é um
dos métodos da linguística ou da semiologia, temos que ficar atentos a mais uma
recorrência que marca a teledramaturgia: a repetição tema do tempo em diversas
variações – História, viagem no tempo, personagens do século XIX que aparecem
no século XXI, déjà vu, vidas
passadas etc.
Elementos de ficção científica e do
fantástico explorados de forma incomum na teledramaturgia da Globo. Na história
do gênero televisivo, são esparsos os exemplos de abordagem desses elementos: “Saramandaia”
(1976, realismo fantástico), “Fera Ferida” (1993, Alquimia, Pedra Filosofal e
misticismo), “O Fim do Mundo” (1996, apocalipse bíblico), “O Clone” (2001,
esparsos elementos sci-fi sobre um
clone humano que não conhece sua origem como experimento científico) entre
outros poucos exemplos.
Porém, esse ano experimentamos um ponto
fora da curva. Se não, vejamos...
Depois de doze anos numa sequência de
novelas ambientas na atualidade, "Deus Salve o Rei" é lançada no início desse ano
como alguma coisa entre as séries de sucesso Games of Thrones e Vikings.
Imediatamente comparada com “Que Rei Sou Eu?”, que também possuía tema medieval
e tramas políticas em pleno ano eleitoral – aqui, a disputa pelo trono por dois
reis. Uma Idade Média com todos os clichês ficcionais, com pitadas de magia e
feitiçaria.
Para depois ser substituída pela
telenovela “O Tempo Não Para” – uma família inteira do século XIX é encontrada
em um grande bloco de gelo que se aproxima de uma praia de Guarujá/SP. Um
empresário engajado em causas sociais e que surfa (empresário, causas sociais,
surf... o que o imaginário do empreendedorismo não consegue juntar...) é o
primeiro que avista o bloco. A família dos tempos do Império é de um poderoso
proprietário de terras que explorava ouro e minério.
"O Tempo Não Para" - o Brasil do Império vem para a atualidade |
A nova telenovela do horário das 18h é “Espelho
da Vida”, com temática mista de presente e futuro: um espelho permite viajar a 1930 para a
protagonista descobrir que é a reencarnação de uma vítima de crime passional.
E no horário das 21h, temos “Segundo Sol”,
ambientada na Bahia (marco inicial da história brasileira) cuja narrativa se
inicia em 1999 para depois voltar para a atualidade.
Telenovelas "de época"?
Essa recorrência de variações em torno
do tema Tempo não pode ser confundida com “novela de época”, tradicional na
teledramaturgia brasileira. Mas mesmo se considerarmos essa recorrência nada
mais do que o subgênero “de época”, ainda assim encontraríamos uma outra
recorrência – revisitar o período do Império da História brasileira. As novelas
“Novo Mundo” (com uma continuação prevista para 2019, dessa vez em torno da
figura de D. Pedro II) e “O Tempo Não Para”, cuja família congelada veio
diretamente de 1886.
Mas a essa “nostalgia” global soma-se à
iniciativa no ano passado de criar remakes com sósias de Os Trapalhões e da Escolinha
do Professor Raimundo no canal fechado da Globo “Viva”. Na oportunidade, o
mote do humor com bordões e gags eram idênticos dos programas originais de até
30 anos atrás: a eterna crise brasileira com carestia, inflação, desemprego
etc. – sobre isso clique aqui.
Em postagem passada sobre esses
remakes, este humilde blogueiro considerou uma espécie de wishfull thinking da TV Globo, uma espécie de sintoma do desejo de
que tudo no País permanece como sempre esteve. Afinal, quanto maior a crise
econômica, desemprego, desesperança e baixo astral, melhor para a poderosa
emissora – mantém os telespectadores presos nas suas casas e cativos da TV pela
limitação financeira. Além de manter a necessidade por fantasias escapistas,
especialidade do modelo de entretenimento global.
Poderíamos considerar essa recorrência
de variações em torno do tema “Tempo” na teledramaturgia como outro sintoma
desse desejo pelo eterno retorno, principalmente num ano eleitoral? O temor de
que não se consolide um novo golpe dentro do Golpe de 2016 e o País não
consolide o retrocesso planejado?
"Os Flintstones" - o passado é uma projeção do presente |
Quem controla o passado...
Mas há um evento sincrônico (para não
dizer irônico) paralelo a essa teledramaturgia tão interessada sobre o Tempo: o
incêndio e destruição do Museu Nacional no Rio de Janeiro, junto com o seu
patrimônio histórico e científico.
A insistente repetição de cenas da
produção “Novo Mundo” nos telejornais da emissora carioca para ilustrar que
naquele prédio histórico fora assinada a Independência do Brasil pode
representar mais do que um esforço didático.
“Quem
controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o
passado”, escreveu George Orwell em seu livro “1984”. Ao lado da aliança jurídico-policial-midiática,
a Globo possui um outro projeto que, afinal, não é propriamente dela – mas da
própria indústria cultural desde o pós-guerra com a ascensão da sociedade do
espetáculo: fundir a própria História com a narrativa ficcional. A Hiper-história.
É mais do que coincidência a História nacional
ter sido reduzido a cinzas enquanto a Globo turbina o tema do Tempo (História e
viagens no tempo). O objetivo simbólico é projetar o presente no passado, para
que o presente se estenda incólume até o futuro.
Por
exemplo, durante a Guerra Fria, a necessidade ideológica dos EUA irradiar o
chamado american way of life para
todo o planeta com a comercialização dos “enlatados” (pacotes de desenhos
animados, minisséries e filmes americanos) para a indústria do entretenimento
mundial.
Além de
Walt Disney, as animações da Hanna-Barbera desempenharam esse papel imaginário
de perpetuar o presente tanto no passado quanto no futuro. Produções como Os Flintstones, Os Mussarelas ou Os Jetsons projetavam o estilo de vida
de uma família nuclear na moderna sociedade de consumo na Idade da Pedra, na
Roma da Antiguidade ou em algum lugar no futuro. Para subliminarmente reforçar
a eternidade do presente, como se os princípios políticos e econômicos que o
regem fosse naturais e indiscutíveis.
Hiper-história: fundir a História brasileira com a cenografia do Projac |
Assim
como os EUA hiper-realizaram sua própria História com os filmes hollywoodianos
de faroeste e parques temáticos como Disneylândia e Epcot Center.
Só que
em países (ex)emergentes como o Brasil, esse processo é mais dramático e trágico
– enquanto a pesquisa científica da História é destruída brutalmente, uma rede
monopolista de comunicação impõe sua própria releitura da História.
Por isso
é também sintomático que um museu que lidava com fontes primárias da História
tenha desaparecido, enquanto um museu midiatizado (o “Museu do Amanhã” –
realizado em conjunto com a Fundação Roberto Marinho, no RJ) esteja presente
nas telas da TV: um museu que não faz Ciência, mas apenas espetaculariza efeitos de Ciência, como uma espécie de parque
temático de entretenimento para aqueles que querem respirar uma “atmosfera de
Ciência e Conhecimento”.
Mas em
um ano eleitoral decisivo para a sobrevivência política e financeira das
Organizações Globo, essa recorrência do Tempo e da História na teledramaturgia
pode ser sintomática: o desejo de que tudo permaneça onde sempre esteve.
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