Ao lado da
torta de maçã e da bandeira estrelada dos EUA, não há nada mais norte-americano
do que a imagem do ator Tom Hanks. Pois agora, no filme “O Círculo” (The
Circle, 2017) ele é um vilão, o CEO de uma poderosa empresa de tecnologia de
informação que emula o Google e o Facebook com sombrios projetos de vigilância
e invasão da privacidade global. O que significa um filme estrelado pelo
patriótico Tom Hanks denunciando a ameaça de uma dominação orwelliana pelo
maior produto norte-americano, a tecnologia da informação desenvolvida pelo
Vale do Silício? “O Círculo” transpõe para a ficção toda a agenda crítica
relacionada a ameaça da espionagem e vigilância global através das comunicações
eletrônicas e do “big data” extraído das redes sociais digitais. Será que a
repercussão hollywoodiana das denúncias sobre os supostos planos de dominação
global do Vale do Silício confirmaria a hipótese conspiratória do agente
especial Fox Mulder da série “Arquivo X”? Seria “O Círculo” uma tentativa de
tornar a crítica uma ficção? Assim como os filmes “Margin Call” e “A Grande
Aposta” ficcionalizaram os motivos da explosão da bolha financeira de 2008?
Para aqueles
leitores não familiarizados com a chamada “hipótese Fox Mulder”, vamos explicar
mais uma vez: em um dos episódios da série Arquivo
X vemos o agente
especial do FBI, Fox William Mulder, participando como convidado especial de um
congresso de Ufologia.
A certa altura, alguém lhe
pergunta o motivo pelo qual ao mesmo tempo em que o governo dos EUA tenta
esconder o fenômeno UFO também permite que Hollywood produza tantos filmes
sobre invasões alienígenas e OVNIs. E Mulder responde: “para que todos pensem
que o fenômeno UFO é do mundo da ficção, coisa de cinema. Por isso, quando
surgem notícias verdadeiras, ninguém acredita”.
Assistindo ao filme O Círculo e vendo Tom Hanks no papel de
um vilão, misto de Steve Jobs com Mark Zuckenberg (um CEO cujos projetos ameaçam
a privacidade de todo o planeta através de uma poderosa tecnologia de
vigilância que faria o ex-CIA e NSA Edward Snowden ficar de cabelo em pé), nos
perguntamos: por que um ator com uma emblemática imagem patriótica como Hanks
(cuja foto facilmente poderia ser colocada ao lado de uma torta de maçã e da
bandeira dos EUA) foi contratado para fazer um vilão?
Mais do que um vilão comum.
Um vilão dono de uma empresa (“O Círculo”) que emula as empresas gigantes norte
americanas de tecnologia da informação como Google e Facebook.
O filme O Círculo é uma produção hollywoodiana que pega o carisma
patriótico de Tom Hanks para fazer uma síntese de todas as denúncias sobre a
invasão de privacidade e controle político das gigantes de tecnologia da
informação dos EUA. Misturando alusões a filmes como Show de Truman e A Rede,
a narrativa de O Círculo nos faz
coçar a cabeça e perguntar: por que Hollywood de repente nos apresenta um filme
denunciando os sombrios propósitos dos CEOs do vizinho californiano Vale do
Silício?
Wall Street, Hollywood e Vale do Silício
Claro, O Círculo vem aos cinemas num momento em que as denúncias de
Snowden impactaram o mundo e as críticas às manipulações do Big Data pelo
marketing político (principalmente após a vitória de Trump nas eleições
norte-americanas) são mais intensas. Abrindo a suspeita de que a digitalização das nossas informações
privadas nas redes sociais serve a algum propósito oculto que envolva uma nova
forma de vigilância, controle e engenharia social.
Ironicamente, assistimos
ao mainstream da indústria cinematográfica,
bancado pelos fundos de investimento de Wall Street que também investem nas start ups do Vale do Silício, produzindo
um filme denunciando os perigos da perda das fronteiras entre o público e o
privado na Internet.
Porém, uma
“denúncia” através da linguagem ficcional, na qual vemos a delicada questão que
envolve a política das regulamentações públicas e os gulosos interesses das
gigantes de tecnologia da informação reduzida a um conflito entre mocinhos e
vilões.
Por que
ficcionalizar uma agenda crítica da oposição às políticas de privacidade do
Google e Facebook? Será que o paranoico agente especial Fox Mulder tinha razão?
Será que Hollywood não é uma mera máquina de criar fantasias? Será que seu
objetivo principal é ficcionalizar questões e denúncias no mundo real para que
depois a opinião pública não mais acredite nelas? Será que mais uma vez o
patriota Tom Hanks foi escalado, dessa vez como vilão, para limpar a barra do
Vale do Silício? Estamos diante de uma engenharia de opinião pública do Google
e Facebook?
O Filme
A narrativa do
filme segue a clássica Jornada do Herói. Mae Holland (Emma Watson) tem um
modorrento trabalho, inserida em uma das baias de uma burocrática empresa. Seu
pai sofre de doença degenerativa e, para esquecer dos seus problemas, sobe num
caiaque para remar até o meio da Baia de São Francisco para ficar sozinha,
longe dos problemas e ter um pouco de privacidade.
Até que um dia
recebe o telefonema da sua amiga Annie (Karen Gillan)que trabalha numa poderosa
empresa de tecnologia, The Circle, oferecendo-lhe uma oportunidade em um
processo seletivo.
Depois de
passar por um estranha entrevista (o entrevistador parece estar mais
interessado no mapa das suas associações mentais do que experiência
profissional), Annie consegue o emprego: assistência técnica on line aos
usuários da empresa, onde é constantemente avaliada pelos próprios usuários.
Annie é constantemente estimulada a conquistar as pontuações mais altas.
Nesse momento,
a heroína entra em um mundo maravilhoso: uma empresa situada em um imenso
campus no qual vemos a rotina de trabalho flexível – festas e atividades
esportivas acontecem junto com a jornada de trabalho, enquanto vemos de repente
monges budistas passarem (o toque holístico da empresa). Tudo apresentado pela
amiga Annie, uma workholic que trabalha 24 horas viajando pelo mundo representando
os interesses da empresa.
Até o momento
em que Mae participa de uma reunião geral com uma palestra do CEO Eamon Balley
(Tom Hanks), no melhor estilo Steve Jobs ou TED-Talk – ele introduz a todos os
funcionários o novo projeto: o SeeChange. Uma grande rede mundial formada por
imperceptíveis micro câmeras esféricas distribuídas para todo o planeta criando
uma estrutura orwelliana de vigilância.
Qual o
propósito? Os mais altruístas possíveis: “Compartilhar é demonstrar interesse”,
ensina Eamon apontando para a nova moral digital. Em um mundo transparente no
qual todos compartilhem com o mundo suas experiências pessoais, não existirão segredos... e, portanto, nem mentiras ou corrupção.
Mae está
perplexa e, a princípio, resistente a essa filosofia - com em toda Jornada, o
herói no início é relutante. Ainda mais quando gerentes da empresa sugerem a
ela que todo o seu final de semana também seja partilhado com The Circle, por
meio de vídeos mostrando a todos o que faz em casa e no lazer.
Porém, sua
resistência é quebrada quando vê o SeeChange aplicado aos cuidados médicos do
seu pai – ele passa a ser monitorado em tempo real pelos médicos da empresa.
Depois de
“vestir a camisa” da empresa, Mae tem uma ascensão meteórica, cujo ápice é
quando propõe um projeto de sua autoria chamado “SoulSearch”: tecnologia que
permite buscar qualquer pessoa que queira com a participação de todos, em
qualquer parte do mundo, através de celulares ou tablets conectados com a rede
mundial da The Circle.
Do altruísmo à vigilância total
Como sempre, os
interesses de início são altruístas: achar pedófilos, por exemplo, ajudando o
serviço da polícia. Porém, acaba se voltando contra ela própria e sua família
– Mae passa a ser a primeira pessoa monitorada 24 horas por câmeras da
SeeChange, transformando sua vida num reality show análogo a Show de Truman.
Isso trará consequências mortais ao seu amigo chamado Mercer (Ellar Coltrane):
ele é acusado nas redes por haiters
de matar cervos para fazer lustres artesanais com chifres de animais.
Aos poucos a
narrativa irá mostrar os objetivos mais sombrios da The Circle: através da sua
poderosa tecnologia de vigilância e filosofia de transparência dominar o
sistema eleitoral e quebrar as regulamentações públicas, substituindo o próprio
Estado na gestão da Democracia. Com as pequenas amostras dos problemas na vida
da “cobaia” Mae, pode-se prever o complicado futuro que aguarda o mundo com o
“brave new world” concebido pela The Circle.
Pastiche narrativo
Em muitos
aspectos, O Círculo lembra muito o
pastiche narrativo de O Código da Vinci
(outro filme protagonizado por Tom Hanks): misturar ficção e realidade,
História e lendas urbanas conspiratórias até não conseguirmos separar uma
coisa da outra.
O filme mistura
elementos factuais (por exemplo, a denúncia do cientista computacional do Vale
do Silício, Jaron Lanier, de que a digitalização generalizada do mundo pelo
Google não é para os humanos, mas para alimentar uma Inteligência Artificial de
vigilância e controle – clique aqui) com o velho maniqueísmo
mocinho e bandido.
E da seguinte
maneira: SeeChange e SoulSearch em si são boas iniciativas. Toda inovação
tecnológica é moralmente boa. O que estraga são os CEOs maus e corruptos.
A essência do
argumento do filme O Círculo é um
estilo de crítica que o velho semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980)
chamava de “crítica nem-nem”: não vamos ser nem
tecnofóbicos e nem CEOs ambiciosos e
malvados.
O Círculo salva as aparências, enquadra os vilões e deixa livre a suspeita
filosofia corporativa da The Circle. Isso lembra também toda a safra de filmes
e documentários sobre a explosão da bolha financeira de 2008 – Trabalho Interno, Margin Call, A Grande
Aposta etc.: o problema nunca é o sistema, mas a gula de CEOs e corretores
de ações inescrupulosos e corruptos.
E o efeito
residual de tudo isso confirma as suspeitas do agente especial Fox Mulder:
esvaziar a credibilidade de qualquer denúncia que parta do Wikileaks, Eduard
Snowden ou de insiders como Jaron
Lanier. Afinal, tudo isso não passa de “teoria conspiratórias”... coisas de
cinema.
Ficha Técnica |
Título: O Círculo
|
Diretor:
James Ponsoldt
|
Roteiro: James Ponsoldt, Dave Eggers
|
Elenco: Emma Watson, Tom Hanks, John Boyega, Ellar
Coltrane, Karen Gillan
|
Produção: Imagenation Abu Dhabi, Likely Story
|
Distribuição:
IM Global
|
Ano: 2017
|
País: EUA, Emirados
Arabes
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