Em novembro de 1989 ia ao ar pela extinta Rede Manchete a série brasileira “América”, dirigida por João Moreira Salles em parceria com o filósofo e roteirista Nelson Brissac Peixoto. Narrada pelo ator José Wilker, a série foi o resultado de uma viagem de quatro meses percorrendo 20 mil quilômetros através dos EUA – a primeira civilização na qual a História e a memória foram substituídos pelo movimento, velocidade e aceleração para o futuro que, paradoxalmente, virou um simulacro somente acessado através telas. Sem passado, Hollywood preencheu a ausência da memória da nação por uma sedutora mitologia que depois irradiou para o mundo. Composto por cinco episódios (“Movimento”, “Mitologia”, “Blues”, “Velocidade” e “Tela”), a série narra não só os impactos dessa cultura no cotidiano, na guerra, na política e na religião, mas também como criou o mal estar da alienação e estranhamento por meio do “olhar do exilado” dos três personagens principais da nossa época: o Viajante, o Detetive e o Estrangeiro.
“Seria incorreto afirmar que a América não
possui uma história. Ela existe e é riquíssima. Mas é sempre uma história que
privilegia o futuro em detrimento do seu passado. Para trás há sempre um vazio
que precisa ser preenchido e por isso a América inventa”.
Esse é o tom da série América (1989), composta de cinco
episódios e que foi ao ar pela extinta TV Manchete naquele mesmo ano. Inspirado
no livro homônimo do filósofo francês Jean Baudrillard e baseado no livro Cenários em Ruínas do filósofo Nelson
Brissac Peixoto (co-autor do roteiro da série), América era mais uma série de
uma emissora cuja proposta inicial era fazer uma programação para a “classe
alta” - para assistir à série clique aqui.
Por isso investiu pesado em séries de documentários como Xingu – a terra mágica
dos índios e Kuarup (1985), ambos
dirigidos por Washington Novaes, Japão,
uma Viagem no Tempo (1985) de Walter Salles, China, o Império do Centro (1987) e América (1989) dirigidas por João Moreira Salles.
Durante quatro meses uma equipe
de seis pessoas percorreu os Estados Unidos numa viagem de 20 mil quilômetros,
registrando lugares onde o homem perde lugar para a imensidão de paisagens
desoladas como desertos, highways,
viadutos, postos de gasolina, lanchonetes e motéis.
Gravada em vídeo, resultando num
total de 110 horas de material e mais de sessenta entrevistas, foi reduzido a
pouco mais de quatro horas de programa explorando a mitologia norte-americana baseada
no cinema hollywoodiano, na literatura policial e pela poesia de escritores que
partilham um “olhar do exilado”, de estrangeiros no próprio país – um lugar
cuja ausência de memória foi preenchida pela mitologia cinematográfica e
pastiches de imagens de segunda mão: de referencias de outros lugares e
História do planeta, porém estilizados pela indústria do entretenimento dos
EUA.
A estrada e a viagem
América foi dividida em cinco episódios cujos títulos sintetizariam
a essência de uma visão de mundo que foi irradiada para todo o planeta: Movimento, Mitologia, Blues, Velocidade e
Telas.
O fio condutor dos cinco
episódios é a estrada, as viagens, o próprio espaço em movimento, criando
aquilo que se chamaria “uma arquitetura de beira de estrada”, diante da qual o
homem, memória e permanência desaparecem para dar lugar à velocidade e
aceleração informada pelas telas – do para-brisa dos automóveis às telas da TV
e dos computadores.
E o nascimento dos três
personagens que compõem os arquétipos modernos. Três modos de constituição da
subjetividade na cultura contemporânea, a saber: o Viajante, o Detetive e o
Estrangeiro. A sociedade baseada no movimento
em direção ao futuro deixando o passado para trás no retrovisor deu o Viajante;
a mitologia literária e cinematográfica criou o Detetive; e a massificação da
telas e a banalização das imagens e do real gerou o Estrangeiro – aquele que
busca o sublime, o “olhar da primeira vez”, aquilo que permanece apesar da
banalização e mesmice de simulacros que substituem o real.
Como vimos em postagens
anteriores desse Cinegnose, esses
três personagens seriam as três formas da condição humana gnóstica experimentar
a alienação e estranhamento em relação ao mundo.
A Série
No primeiro episódio, “Movimento”,
América faz uma interessante
contraposição dos EUA com o seu vizinho México, em uma pequena vila na
fronteira. México é a antítese estadunidense, pois lá há um respeito pelo tempo
e para tudo que permanece – “sua história é tão sólida quanto a pedra”. Os
monumentos e espaço dizem aos mexicanos quem eles são e sua referência no
mundo.
Ao contrário, nos EUA “o que
importa é o futuro”: a sua formação territorial e a arquitetura de estradas e
das cidades é da estética do desaparecimento – paisagens em torno de freeways,
avenidas, viadutos e o carro como o objeto-ícone.
Essa constante ressignificação da
prática espacial do deslocamento vai marcar a cultura, a geopolítica e o
cotidiano da sociedade. De início a criação de uma cultura da concorrência,
meritocracia, corrida para a ascensão social e um profundo individualismo. E
depois, a geopolítica imperialista de expansão da pax americana para todo o planeta.
A “marcha para o Oeste” e o
encontro do “obstáculo natural”, os indígenas, acabou criando a primeira
mitologia dos EUA imortalizada pelo cinema: o western, o cowboy, o mito da
fronteira e dos foras da lei.
Sem um passado ou memória,
Hollywood as preencheu com as imagens do cinema, a começar pelos filmes
western. A série América mostra cidades com nomes de países (Brazil, Paris,
Líbano etc.) nas quais muitas vezes encontramos simulacros de monumento desses
países, como o Arco do triunfo, por exemplo. Las Vegas é o seu paradigma:
reproduções hiperreais de pirâmides e esfinges egípcias, Torre Eiffel e
castelos medievais de outras épocas e lugares.
A mitologia e o bluesman
“Mitologia” é o segundo episódio.
Se ser americano é esquecer, o ver substitui a memória. Mas agora, uma memória
de uma América mítica habitada pelo star system. Mas que também, por outro
lado, ressignificou o mal estar do estranhamento de um país cujo sentido
escapa: a figura do Detetive, imortalizado pelo ator Humphrey Bogart e o seu
personagem, o detetive Sam Spade, a quintessência do filme noir – o homem comum e íntegro que luta para sobreviver em um mundo
hostil, às voltas com enigmas cuja solução remete a algum passado esquecido.
Mas América vai em busca da
primeira figura dissonante e rebelde da cultura norte-americana: o bluesman. No
terceiro episódio, “Blues”, vemos como a batida melancólica do Blues criou um
personagem destoante do american way of
life americano: ele prefere a estrada e encruzilhadas ao invés do emprego e
a família.
Da escravidão e racismo do Sul, o
bluesman transforma-se num viajante que parte para o Norte, Chicago, a cidade
do dinheiro, dos clubes de jazz e gravadoras. Por isso, a estrada é o seu lar.
Um Viajante que, na mitologia da América, será ressignificado na cultura pop
com a rebeldia de Elvis e James Dean, os ícones da motocicleta, a estrada e a
contracultura como no filme Sem Destino
(Easy Rider, 1969).
O real desaparece na velocidade
Porém, todo esse imaginário da
estrada, viagem, movimento e busca do futuro se esgota nos cemitérios de
automóveis, nas ruínas dos motéis, lanchonetes e drive-ins de beira de estrada,
substituídos pelos bunkers dos shopping malls de subúrbios e supermercados.
No episódio “Velocidade” a série
chega a um paradoxo: a aceleração do movimento chega a um estranho estado de
inércia no qual o futuro, a própria paisagem e o real desaparecem. O Viajante,
aquele personagem dissonante imortalizado pelo blues, transforma-se em
passageiro – a viagem transformou-se em traslado: “Pega-se um trem que na
cidade se transformará em metrô e chega-se ao escritório. No fim repete-se em
sentido inverso. De um lado ou de outro não há mais nada para se ver. A viagem
urbana se transformou num simples intervalo, sem nenhum valor intrínseco
separando a chegada da partida. O passageiro vê um intervalo como um mal
necessário, assim como o intervalo comercial na TV”.
No último episódio, “Tela”, é
apresentada uma interessante história das janelas: primeira de todas a porta separando o que esta dentro do que está fora; depois a
própria janela, uma abertura na fachada que permite ver o que esta ao lado; em
seguida o para-brisa do carro uma janela móvel que a princípio busca o que
estava longe; e finalmente a quarta e última janela: a televisão uma janela
falsa que se abre para um dia sem nenhuma relação com a realidade.
A religião, a guerra e a política
O episódio analisa o impacto da
tela na religião (os igrejas eletrônicas que rompem com a liturgia da
presença), na guerra (a própria Guerra não passa de um recurso cênico; o
aparato militar existe mais para ser visto do que para ser utilizado. Se não o
fosse, a decisão não partiria de um presidente), na política (o conflito entre
a necessidade de estabelecer estratégias sensatas e de longo prazo e a
possibilidade de convertê-las em notícias para a TV, veículo que vive do
efêmero) e o terrorismo (atentados programados para aparecerem na TV).
A série termina de forma
otimista, vislumbrando na globalização e na conexão mundial através das telas e
redes de comunicação que naquele momento iniciava (1989 era o ano da queda do
Muro de Berlim e o fim do bloco comunista) uma saída para a banalização do real
através do império das imagens: o olhar do Estrangeiro. Aquele olhar que ainda
não foi anestesiado pelas imagens banalizadas e que tenha uma relação direta
com pessoas e objetos.
Porém, o que as décadas
posteriores demonstraram foi que a globalização não foi a do mundo, mas da
mitologia norte-americana. A banalização do mundo através do simulacro das
imagens tornou-se planetária migrando para outras plataformas: do velho monitor
de TV das mídias de massas para as telas de computadores e dispositivos móveis,
agora conectados globalmente em tempo real.
Assista à série no YouTube: clique aqui.
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Ficha Técnica
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Título: América (série)
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Diretor: João Moreira Salles
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Roteiro: João
Moreira Salles, Nelson Brissac Peixoto
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Elenco: entrevistas com David Byrne, Jean Baudrillard, Paul Virilio,
Robert Frank, Joseph Brodsky, Deborah Bright entre outros
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Produção: Videofilmes, Rede Manchete
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Distribuição: Rede Manchete, YouTube
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Ano: 1989
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País: Brasil
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