segunda-feira, julho 10, 2017

Adolescência é um drama existencial e universal em "Ponto Zero"


“Ponto Zero” (2016), do diretor gaúcho José Pedro Goulart, é um ponto fora do movimento pendular do drama da adolescência no cinema, quase sempre figurado entre a exaltação e a melancolia solipsista platônica. “Ponto Zero” vai muito mais além dos tradicionais pontos de vista psicologizante  ou sociológico sobre a juventude. Goulart almeja um olhar mais universal e existencial. Por isso, optou por uma narrativa com escassas linhas de diálogo, apostando na força das imagens repletas metáforas e lirismo. Ênio, um jovem em um lar marcado por um pai ausente e violento e uma mãe que tenta manter as aparências da instituição familiar. A descoberta da sexualidade e do próprio corpo são sinais que a infância acabou. Porém, o mundo adulto para o qual se encaminha é inautêntico. Em meio ao estranhamento e alienação, como um Estrangeiro em sua própria casa, Ênio busca uma terceira via. E paradoxalmente será em uma jornada, numa noite chuvosa pelo submundo de “inferninhos” e prostitutas em ruas de Porto Alegre, que o protagonista encontrará a verdade espiritual e existencial do seu drama.Filme sugerido pela nossa leitora Suzana Moraes. 

Tanto o cinema quanto a cultura pop sempre tiveram um appeal pelas tendências depressivas dos jovens e adolescentes - talvez o último momento da vida em que o jovem demonstra revolta, estranheza ou alienação em relação a um mundo adulto que quer definitivamente enquadrá-lo.

O drama da adolescência já foi expressada de todas as formas tanto em filmes quanto no pop rock – do rock horror e glam dos 1970 aos darks e góticos dos anos 80 e 90.

No cinema, a adolescência vive um movimento pendular entre a exaltação e a melancolia. Enquanto temos a franquia Crepúsculo ou Harry Potter que representam a depressão adolescente de forma solipsista e platônica (para o jovem a felicidade só existe em mundos mágicos e sobrenaturais), do outro lado temos produções como Moonrise Kingdom (2012) ou mesmo Sid e Nancy (1986) que exaltam a chama indomável da revolta do jovem.

Há poucos pontos fora da curva desse pêndulo, como o clássico de David Lynch Veludo Azul (1987) – através do sexo e do amor a viagem de um jovem da adolescência direto para o submundo de uma pequena cidade interiorana que revela a hipocrisia do mundo adulto.

Ponto Zero (2016), dirigido por José Pedro Goulart (conhecido diretor gaúcho, autor do clássico curta O Dia em que Dorival Encarou o Guarda, de 1986, agora em seu primeiro longa-metragem) é um desses poucos pontos fora desse movimento pendular da abordagem sobre a adolescência no cinema. A narrativa evita tanto o solipsismo como a idealização. E muito menos é cooptada  pela clássica visão do adolescente como prisioneiro no triângulo sexo, vício e drogas, como no filme Diário de um Adolescente (1995).


Olhar universal


A narrativa de Ponto Zero vai muito mais além dos tradicionais pontos de vista psicologizantes ou sociológicos sobre a juventude. Goulart almeja um olhar mais universal e, por que não dizer, espiritual. Por isso, optou por uma narrativa com escassas linhas de diálogo, apostando na força das imagens.

Decisão acertada: se o que caracteriza o jovem é a inadequação, alienação, estranhamento (a sensação constante de ser um estrangeiro na escola e na família), a incomunicabilidade é a essência dessa condição existencial – como se comunicar se todos ao redor tentam apenas “curá-lo” e enquadrá-lo no futuro mundo adulto que o aguarda?

Por isso, Ponto Zero é uma experiência ao mesmo tempo sinestésica e sensorial, mas também metafórica, abstrata e espiritual.

O frio, a chuva, a rudeza dos móveis do lar, o mergulho na piscina, os pães que caem na calçada para depois serem limpos na mesa da cozinha pelos dedos indecisos do protagonista são experiências sinestésicas que a excelente fotografia dá ao espectador.

Para, de repente, sermos arrebatados do mundo físico para o espiritual em diversas sequências metafóricas quando flagramos o protagonista vagando em meio a carros e ônibus que trafegam em marcha a ré, o passeio de bicicleta no meio da sala de aula sem que nenhum aluno ou professor o veja, efeitos visuais em que o céu se transforma em chão e o chão em céu entre outros marcantes momentos de puro simbolismo.


A força dessas imagens que transitam do sensorial ao espiritual elevam a questão da adolescência a uma condição arquetípica: a do Estrangeiro, aquele que se sente como um estranho dentro da sua própria casa. Tal como na pequena estória do astronauta que se perde no espaço ao desprender seu cabo da nave, narrada pelo protagonista na abertura e final do filme como um resumo da condição existencial da adolescência.

O Filme


 Ênio (Sandro Aliprandini) é um jovem tímido e introspectivo – chave para o cineasta José Pedro Goulart abdicar dos diálogos e trabalhar quase exclusivamente com imagens.

Após a pequena estória do astronauta, vemos o protagonista sendo vítima de bullying próximo a sua casa. Ele é agredido enquanto todos riem. Frágil e calado volta para casa mobiliada por móveis escuros cuja rotina é garantida pela mãe (Patrícia Selonk) que parece sempre estar em estado catatônico, tentando manter a aparência de tranquilidade sob as constantes brigas com o marido.

O pai de Ênio é Virgílio (Eucir de Souza), um pai ausente e infiel: é um radialista que passa a maior parte do tempo produzindo e dirigindo um programa radiofônico sensacionalista que explora dramas familiares e amorosos – enquanto flerta com mulheres convidadas ao programa.

Afetada pela ausência, frieza e grosserias de Virgílio, a mãe de Ênio descarregando tudo no jovem protagonista.


A invisibilidade (como a metáfora de andar de bicicleta pela casa, escola e ruas de Porto Alegre sem que ninguém o perceba) e os carros andando de marcha a ré são as recorrentes metáforas do estranhamento e alienação com o mundo ao redor - a adolescência é como andar contra a corrente.

O desejo sexual e a descoberta do corpo como fonte de prazer são os sinais de que a infância foi deixada para trás. Por outro lado, o mundo futuro, o dos adultos, não é nada promissor: no filme todos os personagens adultos masculinos (o pai, o motorista do ônibus, etc.) são grosseiros, agressivos, comunicam-se apenas por palavrões e raiva. Enquanto as mulheres adultas ou são como a catatônica mãe ou prostitutas, objetos do seu desejo, que se oferecem entre inferninhos e ruas do submundo de Porto Alegre.


O ápice do drama de Ênio é no momento em que embarca numa busca pessoal em uma noite de chuva: enquanto os pais dormem, sai pela cidade com o carro do pai enquanto tenta marcar um encontro com uma prostituta pelo celular.  Tal como em filmes como Depois de Horas, de Scorsese, ou Veludo Azul, de David Lynch, o protagonista mergulha em um submundo no qual realidade e delírio se confundem. Uma experiência que lhe marcará para sempre.

Ponto Zero não encara essa jornada como um “ato de rebeldia” ou de “libertação” – é o momento em que o protagonista comprova que o mundo adulto é tão problemático e delirante quanto seus traumas e inquietações interiores.

Estrangeiro e Viajante


Tal como outro filme gaúcho com uma temática próxima, O Famosos e os Duendes da Morte (2009) de Esmir Filho, o protagonista busca um ponto de suspensão, um “tertium quid”, um ponto zero: nem a infância, nem a vida adulta. Buscar um estado de suspensão, o silêncio interior.

É na jornada pelo underground de Porto Alegre que o protagonista se transfigura em outro arquétipo contemporâneo: o Viajante. Se em Os Famosos e os Duendes da Morte a jornada (o Jogo) é por meio da Internet, em Ponto Zero é através de uma jornada alucinante em uma noite chuvosa.

Da melancolia e passividade do Estrangeiro, Ênio se transfigura na hiperatividade do Viajante. Mas uma hiperatividade aparente: na verdade o protagonista busca na jornada o estado de suspensão, o grau zero de sentido – nem a realidade nem a ilusão, nem a infância e muito menos a vida adulta. É a busca desesperada de uma terceira via.


Paradoxalmente, Ênio vai buscar a sua gnose (a iluminação espiritual para, através dela, encontrar a "terceira via") no underground de prostitutas, bares e “inferninhos”.

Por isso, o profundo simbolismo da bicicleta e da piscina. As imagens de um comovente lirismo da abertura e encerramento do filme nas quais vemos uma criança mergulhando na piscina em câmera lenta são alegorias da suspensão, do “estar entre”.

Assim como o insólito passeio de bike entre os interiores de casa, da escola e nas ruas: invisível, como estivesse em estado de suspensão, silêncio interior espiritual – a próprio ato de pedalar incita a esse estado no qual estamos literalmente suspensos sobre duas rodas in line – sobre as conexões da bicicleta com estados alterados de consciência clique aqui. 

A importância de Ponto Zero está em transferir o drama da adolescência para o plano arquetípico e espiritual e, por que não dizer, gnóstico: no umbral para a entrada no mundo adulto, a adolescência é o último momento em que vislumbramos a inautenticidade da realidade para a qual o jovem é obrigado a se dirigir.

Ênio resiste ao massacrante ritual de passagem a que todos os jovens são obrigados: o bullying, o vestibular, o processo seletivo do emprego e assim por diante. Transcendendo o psicológico e o sociológico, Ponto Zero eleva esse drama ao plano cósmico existencial e espiritual. 


Ficha Técnica

Título: Ponto Zero
Diretor: José Pedro Goulart
Roteiro:  José Pedro Goulart
Elenco:  Patrícia Selonk, Elcir de Souza, Larissa Tavares, Sandro Aliprandini
Produção: Mínima, OKNA Produções
Distribuição: Pandora Filmes
Ano: 2016
País: Brasil

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