“Ponto Zero”
(2016), do diretor gaúcho José Pedro Goulart, é um ponto fora do movimento
pendular do drama da adolescência no cinema, quase sempre figurado entre a
exaltação e a melancolia solipsista platônica. “Ponto Zero” vai muito mais além
dos tradicionais pontos de vista psicologizante
ou sociológico sobre a juventude. Goulart almeja um olhar mais universal
e existencial. Por isso, optou por uma narrativa com escassas linhas de diálogo,
apostando na força das imagens repletas metáforas e lirismo. Ênio, um jovem em
um lar marcado por um pai ausente e violento e uma mãe que tenta manter as
aparências da instituição familiar. A descoberta da sexualidade e do próprio
corpo são sinais que a infância acabou. Porém, o mundo adulto para o qual se
encaminha é inautêntico. Em meio ao estranhamento e alienação, como um
Estrangeiro em sua própria casa, Ênio busca uma terceira via. E paradoxalmente
será em uma jornada, numa noite chuvosa pelo submundo de “inferninhos” e
prostitutas em ruas de Porto Alegre, que o protagonista encontrará a verdade
espiritual e existencial do seu drama.Filme sugerido pela nossa leitora Suzana Moraes.
Tanto o cinema
quanto a cultura pop sempre tiveram um appeal
pelas tendências depressivas dos jovens e adolescentes - talvez o último
momento da vida em que o jovem demonstra revolta, estranheza ou alienação em
relação a um mundo adulto que quer definitivamente enquadrá-lo.
O drama da
adolescência já foi expressada de todas as formas tanto em filmes quanto no pop
rock – do rock horror e glam dos 1970 aos darks e góticos dos anos 80 e 90.
No cinema, a
adolescência vive um movimento pendular entre a exaltação e a melancolia.
Enquanto temos a franquia Crepúsculo
ou Harry Potter que representam a
depressão adolescente de forma solipsista e platônica (para o jovem a
felicidade só existe em mundos mágicos e sobrenaturais), do outro lado temos
produções como Moonrise Kingdom
(2012) ou mesmo Sid e Nancy (1986)
que exaltam a chama indomável da revolta do jovem.
Há poucos
pontos fora da curva desse pêndulo, como o clássico de David Lynch Veludo Azul (1987) – através do sexo e
do amor a viagem de um jovem da adolescência direto para o submundo de uma
pequena cidade interiorana que revela a hipocrisia do mundo adulto.
Ponto Zero (2016), dirigido por José Pedro Goulart (conhecido diretor gaúcho,
autor do clássico curta O Dia em que
Dorival Encarou o Guarda, de 1986, agora em seu primeiro longa-metragem) é
um desses poucos pontos fora desse movimento pendular da abordagem sobre a adolescência no
cinema. A narrativa evita tanto o solipsismo como a idealização. E muito menos é cooptada pela clássica visão do adolescente como prisioneiro no triângulo sexo, vício e drogas, como no filme Diário de um Adolescente (1995).
Olhar universal
A narrativa de Ponto Zero vai muito mais além dos
tradicionais pontos de vista psicologizantes ou sociológicos sobre a juventude. Goulart almeja um olhar mais universal
e, por que não dizer, espiritual. Por isso, optou por uma narrativa com
escassas linhas de diálogo, apostando na força das imagens.
Decisão
acertada: se o que caracteriza o jovem é a inadequação, alienação,
estranhamento (a sensação constante de ser um estrangeiro na escola e na
família), a incomunicabilidade é a essência dessa condição existencial – como
se comunicar se todos ao redor tentam apenas “curá-lo” e enquadrá-lo no futuro
mundo adulto que o aguarda?
Por isso, Ponto Zero é uma experiência ao mesmo
tempo sinestésica e sensorial, mas também metafórica, abstrata e espiritual.
O frio, a
chuva, a rudeza dos móveis do lar, o mergulho na piscina, os pães que caem na
calçada para depois serem limpos na mesa da cozinha pelos dedos indecisos do
protagonista são experiências sinestésicas que a excelente fotografia dá ao
espectador.
Para, de repente, sermos arrebatados do mundo físico para o espiritual em diversas sequências
metafóricas quando flagramos o protagonista vagando em meio a carros e ônibus
que trafegam em marcha a ré, o passeio de bicicleta no meio da sala de aula sem
que nenhum aluno ou professor o veja, efeitos visuais em que o céu se
transforma em chão e o chão em céu entre outros marcantes momentos de puro
simbolismo.
A força dessas
imagens que transitam do sensorial ao espiritual elevam a questão da
adolescência a uma condição arquetípica: a do Estrangeiro, aquele que se sente
como um estranho dentro da sua própria casa. Tal como na pequena estória do
astronauta que se perde no espaço ao desprender seu cabo da nave, narrada pelo
protagonista na abertura e final do filme como um resumo da condição
existencial da adolescência.
O Filme
Ênio (Sandro Aliprandini) é um jovem tímido e
introspectivo – chave para o cineasta José Pedro Goulart abdicar dos diálogos e
trabalhar quase exclusivamente com imagens.
Após a pequena
estória do astronauta, vemos o protagonista sendo vítima de bullying próximo a
sua casa. Ele é agredido enquanto todos riem. Frágil e calado volta para casa
mobiliada por móveis escuros cuja rotina é garantida pela mãe (Patrícia Selonk)
que parece sempre estar em estado catatônico, tentando manter a aparência de
tranquilidade sob as constantes brigas com o marido.
O pai de Ênio é
Virgílio (Eucir de Souza), um pai ausente e infiel: é um radialista que passa a
maior parte do tempo produzindo e dirigindo um programa radiofônico
sensacionalista que explora dramas familiares e amorosos – enquanto flerta com
mulheres convidadas ao programa.
Afetada pela
ausência, frieza e grosserias de Virgílio, a mãe de Ênio descarregando tudo no jovem protagonista.
A
invisibilidade (como a metáfora de andar de bicicleta pela casa, escola e ruas
de Porto Alegre sem que ninguém o perceba) e os carros andando de marcha a ré são
as recorrentes metáforas do estranhamento e alienação com o mundo ao redor - a adolescência é como andar contra a corrente.
O desejo sexual
e a descoberta do corpo como fonte de prazer são os sinais de que a infância
foi deixada para trás. Por outro lado, o mundo futuro, o dos adultos, não é
nada promissor: no filme todos os personagens adultos masculinos (o pai, o motorista do
ônibus, etc.) são grosseiros, agressivos, comunicam-se apenas por palavrões e
raiva. Enquanto as mulheres adultas ou são como a catatônica mãe ou prostitutas,
objetos do seu desejo, que se oferecem entre inferninhos e ruas do submundo de
Porto Alegre.
O ápice do
drama de Ênio é no momento em que embarca numa busca pessoal em uma noite de
chuva: enquanto os pais dormem, sai pela cidade com o carro do pai enquanto
tenta marcar um encontro com uma prostituta pelo celular. Tal como em filmes como Depois de Horas, de Scorsese, ou Veludo Azul, de David Lynch, o protagonista mergulha em um submundo
no qual realidade e delírio se confundem. Uma experiência que lhe marcará para
sempre.
Ponto Zero não encara essa jornada como um “ato de rebeldia” ou de
“libertação” – é o momento em que o protagonista comprova que o mundo adulto é tão problemático e delirante
quanto seus traumas e inquietações interiores.
Estrangeiro e Viajante
Tal como outro
filme gaúcho com uma temática próxima, O
Famosos e os Duendes da Morte (2009) de Esmir Filho, o protagonista busca
um ponto de suspensão, um “tertium quid”, um ponto zero: nem a infância, nem a
vida adulta. Buscar um estado de suspensão, o silêncio interior.
É na jornada
pelo underground de Porto Alegre que o protagonista se transfigura em outro
arquétipo contemporâneo: o Viajante. Se em Os
Famosos e os Duendes da Morte a jornada (o Jogo) é por meio da Internet, em
Ponto Zero é através de uma jornada
alucinante em uma noite chuvosa.
Da melancolia e
passividade do Estrangeiro, Ênio se
transfigura na hiperatividade do Viajante.
Mas uma hiperatividade aparente: na verdade o protagonista busca na jornada o
estado de suspensão, o grau zero de
sentido – nem a realidade nem a ilusão, nem a infância e muito menos a vida
adulta. É a busca desesperada de uma terceira via.
Paradoxalmente,
Ênio vai buscar a sua gnose (a iluminação espiritual para, através dela,
encontrar a "terceira via") no underground de prostitutas, bares e “inferninhos”.
Por isso, o
profundo simbolismo da bicicleta e da piscina. As imagens de um comovente
lirismo da abertura e encerramento do filme nas quais vemos uma criança
mergulhando na piscina em câmera lenta são alegorias da suspensão, do “estar
entre”.
Assim como o
insólito passeio de bike entre os interiores de casa, da escola e nas ruas:
invisível, como estivesse em estado de suspensão, silêncio interior espiritual
– a próprio ato de pedalar incita a esse estado no qual estamos literalmente
suspensos sobre duas rodas in line –
sobre as conexões da bicicleta com estados alterados de consciência clique aqui.
A importância
de Ponto Zero está em transferir o drama da adolescência para o plano
arquetípico e espiritual e, por que não dizer, gnóstico: no umbral para a
entrada no mundo adulto, a adolescência é o último momento em que vislumbramos
a inautenticidade da realidade para a qual o jovem é obrigado a se dirigir.
Ênio resiste ao
massacrante ritual de passagem a que todos os jovens são obrigados: o bullying,
o vestibular, o processo seletivo do emprego e assim por diante. Transcendendo
o psicológico e o sociológico, Ponto Zero
eleva esse drama ao plano cósmico existencial e espiritual.
Ficha Técnica |
Título: Ponto Zero
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Diretor:
José Pedro Goulart
|
Roteiro: José Pedro Goulart
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Elenco: Patrícia Selonk, Elcir de Souza,
Larissa Tavares, Sandro Aliprandini
|
Produção: Mínima, OKNA Produções
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Distribuição:
Pandora Filmes
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Ano: 2016
|
País: Brasil
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