“É com
muita satisfação que comunico que o replicante Roy Batty, modelo Nexus 6 –
MAA10816, entrou em funcionamento nessa sexta-feira, 8 de janeiro de 2016.
Parabéns ao envolvidos!”. Esse é o texto que acompanhou um meme que circulou
nas redes sociais lembrando que mais uma vez chegamos ao futuro – em 21/10 do
ano passado estivemos também no futuro com “De Volta Para O Futuro 2”. Roy, o
icônico replicante do filme "Blade Runner - O Caçador de Androides" (1982) de Ridley Scott, já nasceu e daqui
a quatro anos terá uma violenta crise existencial ao descobrir que tem tão
pouco tempo de vida. O que significa para nós essa estranha sensação de
chegarmos ao futuro através de filmes como “2001”, “1984”, De Volta Para O
Futuro” e “Blade Runner”? É o que o “Cinegnose” pretende descobrir.
Quando chegou o
ano de 1984, foi irresistível não fazer comparações com o clássico livro de
Orwell 1984: o futuro mundo distópico projetado pelo
escritor inglês em 1949 teria sido enfim realizado? O Estado Big Brother
imaginado por Orwell aconteceu? Ele é comunista ou capitalista? A “novilíngua”
já está presente nas mídias de massas?
Em 2001, o mesmo
frisson comparativo com o clássico filme de Kubrick 2001: Uma Odisseia no Espaço – até hoje, vê-se no filme previsões
como Skype, tablets, computadores falando diversas línguas e invadindo a
privacidade de usuários.
No ano passado,
uma nova febre varreu mídia e redes sociais em torno do 21 de outubro de 2015:
há 26 anos os personagens Marty McFly e o Dr. Emmet Brown da saga De Volta Para o Futuro estacionaram o
DeLorean em uma Hill Valley no futuro daquela época no século XXI.
E nessa última
sexta-feira a mesma sensação de que chegamos ao futuro. No filme Blade Runner, O Caçador de Androides
(1982) de Ridley Scott vemos a ficha do replicante Roy (Hutger Hauer) com a data de “nascimento”: Roy Batty, modelo
Nexus 6 – Início: 08 de janeiro de 2016.
Segundo o filme,
daqui a quatro anos Roy entrará em um conflito existencial por não aceitar que
o seu fabricante destinou-lhe apenas quatro anos de vida, fugirá de uma colônia
espacial em direção da Terra à procura do criador e Rick Deckard (Harrison
Ford) terá que caçá-lo.
Um futuro próximo
O primeiro aspecto que chama a atenção é a relativa proximidade dos
eventos imaginados nos filmes: entre 26 e 35 anos no futuro. Certamente se
basearam na crença de um crescimento linear em progressão aritmética da
tecnologia e das instituições, seja nos aspectos positivos (utopias) ou
negativos (distopias).
1984 imaginou a expansão totalitária e explícita do Estado e dos aparatos
repressivo – polícia e vigilância.
Arthur Clarke (autor do livro) e Kubrick imaginaram 2001 a partir de uma
expansão linear e sem interrupções do projeto espacial norte-americano ao ponto
que a tecnologia nos levaria ao encontro dos nossos próprios criadores. Além de
existirem computadores que alcançariam o nível da inteligência artificial como
o HALL 9000.
Blade Runner em 1982 projetou para esse ano catástrofes
ecológicas - uma chuva ácida constante cai sobre Los Angeles e só uma elite
consegue abandonar o planeta em direção das colônias espaciais. Além de
autômatos alcançarem a tal nível a inteligência artificial que seriam capazes
de fazer reflexões metafísicas sobre vida e morte.
E De Volta Para O Futuro 2
imaginou um 2015 com carros voando, a progressão linear das franquias no cinema
(Tubarão 19 estrearia nos cinemas no ano passado), skates flutuando e tênis
auto-ajustáveis.
Utopia, Distopia, Hipo-utopia
Então essas obras fracassaram nas suas previsões? Não totalmente. Esse é
o segundo aspecto dessas chegada prematura ao futuro: 1984, 2001, Blade Runner e De Volta
Para O Futuro realizaram sim suas projeções, mas de uma forma irônica. Nem
pela utopia e nem pela distopia. Acertaram pela via da hipo-utopia.
Na hipo-utopia o futuro tal qual previsto nas utopias científicas e
tecnológicas modernistas não se realizou nem nos aspectos utópicos ou
distópicos. Paradoxalmente, são filmes de ficção científica sem futuro (“hipo”
no sentido de “insuficiência” + “topia” do grego “topus”, “lugar”): refletem
mais as mazelas do presente. Na verdade, o futuro não existe, é apenas uma
extensão paródica ou metafórica do presente.
Em tempos de Edward Snowden e as denúncias de invasão de privacidade na
Internet e dispositivos móveis, drones e a promessa da nanotecnologia também
ser mais um instrumento de espionagem, ironicamente as profecias de 1984 se
realizaram. Porém, de uma forma sutil, invisível e sem as tonalidades épicas e
dramáticas tanto do livro quanto do filme.
De Volta Para O Futuro 2 não
acertou quanto aos carros voadores e skates flutuantes, mas ironicamente viu em
2015 a realização plena das estratégias da indústria do entretenimento
iniciadas nos anos 1980: franquias e blockbusters cinematográficos e a
customização do consumo simbolizado pelos tênis auto-ajustáveis.
E 2001 de Kubrick realizou
menos a previsão utópica do Star Child resultante do encontro redentor da
espécie humana com seu criador, e muito mais estimulou as teorias
conspiratórias e lendas em torno do diretor. Ele não viveu o suficiente para
ver chegar o ano de 2001, mas as comemorações em torno do filme alimentaram a
lenda da suposta direção de um falso pouso na Lua em 1969 – os efeitos
especiais de 2001, à frente do seu
tempo, incendiaram ainda mais as especulações.
Lágrimas na Chuva
Mas é o filme Blade Runner,
baseado em conto do assumidamente gnóstico escritor sci fi Philip K. Dick, que
talvez tenha a realização de previsões pelas vias mais irônicas e
hipo-utópicas. O desenvolvimento da cibernética não chegou ainda à descoberta
da inteligência artificial, mas o drama de Roy (um androide criado pela Tyrell
Co. para finalidades industriais e comerciais) tornou-se a metáfora a própria
condição da mão-de-obra do século XXI: relações trabalhistas flexíveis, free
lancers e autônomos, com vínculos trabalhistas passageiros onde resta ao
trabalhador apenas consumir o presente, sem condições de planejar o amanhã.
O famoso monólogo “Tears in the rain”, um dos mais bonitos da história
do cinema, dito por Roy ao pressentir que está chegando a hora de morrer (ou de
ser “desligado”) diante do seu implacável caçador, Deckard, tornou-se em 2015
mais do que um resumo poético do desespero de um ser vivo:
“Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque ardendo no ombro de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer” - veja a sequência abaixo.
Esse monólogo tornou-se uma metáfora hipo-utópica: se o gênero ficção
científica define-se em imaginar mundos futuros, paradoxalmente Blade Runner é a própria impossibilidade
de imaginar o amanhã – estamos condenados a consumir apenas o presente, seja na
dimensão espiritual, no entretenimento ou no trabalho.
É estranho assistirmos a esses filmes e constatarmos que chegamos ao
futuro e nada aconteceu – pelo menos não da maneira cinematográfica
(replicantes, aliens, carros voando e máquinas do tempo). Os cenários futuros
foram concretizados sim, mas na banalidade do cotidiano.
O que faz lembrar do aforismo do filósofo francês Jean Baudrillard sobre
a banalidade da História: “Sim! A revolução já aconteceu. Ela apenas não foi
televisionada!”
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