Um samurai travesti em uma floresta na Alemanha persegue um policial; o ar pode acabar num submarino porque as massas das panquecas servidas à bordo criam bolhas de ar; uma sociedade secreta japonesa agencia mulheres ninjas dominatrix para atacarem em público homens de negócios que querem ter prazeres sadomasoquistas. Esqueça os blockbusters e os filmes “oscarizáveis”. Estamos no universo dos filmes mais “estranhos” de 2015. Uma lista de dez filmes que mostram até onde o cinema pode chegar ao explorar o excêntrico, o estranho e o incomum.
Mais um ano de
cinema se foi. Mas se o leitor cavar mais fundo para além da superfície cheia
de remakes de grandes sucessos como Mad
Max e Star Wars ou dramas
conservadores que aparecem a cada final de ano para tentar abocanhar um Oscar,
vai encontrar algumas criaturas estranhas se mexendo no porão da indústria do
cinema.
O ano de 2015 foi
marcado pela movimentação dessas estranhas criaturas do cinema independente: o
campeão do cinema pós-moderno Guy Maddin (a quem o Cinegnose dará mais atenção
nesse ano) lançou mais um filme; também foi lançado o aguardado terceiro filme
da trilogia “Sobre o Ser Humano” de Roy Andersson, diretor sueco bem conhecido
por esse blog.
Além de algumas
estreias inclassificáveis de diretores arrivistas do cinema estranho.
O que é um “Filme Estranho”?
Convém relembrar aos
leitores o conceito de “Filme Estranho” – “Weird Movie”. palavra
inglesa “weird” (estranho) deriva da palavra germânica “wyrd”, que significa
“destino”. Essa palavra encontrou o seu significado atual de “estranho,
surreal” através de Shakeapeare com as “Weird Sisters” que prediziam o destino
de Macbeth, ao mesmo tempo “weird” (“estranhas”) nos sentido moderno quanto
“wyrd” no sentido pagão.
Portanto,
“weird movie” é muito mais do que um filme “estranho” no sentido dado em
português (do latim “extraneum” – o que é de fora, estrangeiro), mas a
combinação das ideias do maravilhoso e do fantástico com aquilo que é
excêntrico, estranho ou incomum.
Dessa
maneira, esse conceito aproxima-se do “gnostic movie” ou filme gnóstico:
narrativas cinematográficas onde mostram protagonistas em situações onde a
familiaridade usual se reverte em algo não-familiar, “estranho”, acontecimentos
que fazem a realidade repentinamente fugir à conformidade cotidiana.
Essa
categoria de filmes englobariam também os filmes “mal feitos”, trashs e
produções B do passado ou atuais que imediatamente se tornam cults.
10. The Forbidden Room
Uma experiência
“telescópica” do diretor canadense Guy Maddin: histórias que se desenrolam
dentro de outras histórias, à maneira aquelas bonequinhas russas encaixadas uma
dentro da outra. Cenários improváveis como a tripulação de um submarino cujo
estoque de ar está acabando porque todos comem furiosamente panquecas – e a
massa das panquecas possui pequenas bolhas de ar; lenhadores aprendizes que tentam resgatar uma
mulher que ama bandidos; um bigode do homem que morreu tenta confortar a viúva
etc. Tudo começa e termina com um personagem ensinando, para iniciantes da
higiene, como tomar um banho.
Por que está “Em Observação”? – Guy Maddin é
conhecido por suas experiências estéticas e narrativas – é comum tentar recriar
em seus filmes a estética dos filmes mudos, colorização dos antigos filmes em
sépia e a estética do expressionismo alemão dos anos 20. The Forbidden Room é o resultado de um projeto de instalações
artísticas interativas (Haunting e Seances) onde aleatoriamente foram
combinados 100 filmes de curta metragem. Resultando em “conexões paranormais e
um todo coerente semi-assustador”, nas palavras de Maddin... estranho!
09. Lost River
Vaiado no festival
de Cannes e trucidado pela crítica, esse filme teve um destino injusto em 2015.
Estreia na direção do ator Ryan Gosling, foi descrito como “um conto de fadas
sombrio”. Gosling criou
uma cidade gótica que lembra Louisiana pós furacão Katrina – crise econômica,
ruínas e um mistério que envolve uma parte submersa pela construção de
uma represa na fictícia cidade de Lost River.
Por trás das camadas de
estilizações da fotografia, personagens e cenografias (que fizeram a crítica
chamar o filme de “um David Lynch de segunda mão”), estão alusões à crise
econômica dos EUA pós explosão da bolha especulativa de 2008 combinados com
misticismo gnóstico: qual o mistério que torna os protagonistas prisioneiros
daquela cidade? Uma bicicleta flamejante sem ciclista passando por uma rua
deserta na noite é uma das cenas indeléveis do filme.
8. R100
Um vendedor de móveis
japonês paga a uma sociedade secreta para que agenciem mulheres ninjas
dominatrix que irão atacá-lo em momentos aleatórios, em público. Mas as coisas
começam a ir longe demais quando as mulheres começam a atacá-lo no seu trabalho
e até mesmo na sua residência. O filme começa lento e repetitivo, mas constrói
um final bizarro fazendo um inacreditável mix entre Lynch e Mel Brooks.
Por
que está “Em Observação”? – “Transgressivo, inclassificável e ridículo”.
Com essa palavras a crítica vem definindo o filme japonês R100. Uma narrativa
onde um homem de negócios tenta romper a rotina triste e cinzenta através de
“Clubes de Gentlemen” que prestam serviços de favores sádicos, sexuais e
violentos não é uma novidade desde filmes como O Albergue. Mas em R100
inverte-se: o cliente busca o masoquismo – ele que ser humilhado em público por
ataques de mulheres ninjas.
7. Deep Dark
Terror independente que
em muitos aspectos assemelha-se a outro filme estranho: Quero Ser John
Malkovich (1999) de Spike Jonze. Um artista fracassado e humilhado pelo
sucesso de seus pares se tranca em um velho apartamento para o tudo ou nada –
ou faz uma obra-prima que mude sua carreira ou vai se matar. Até encontrar um
misterioso buraco na parede com uma sexy voz feminina que pedirá carícias e
bizarros favores sexuais. Em troca, dará inspiração para ele fazer obras que
conquistarão o mercado das artes. No passado artistas como Pollock e Warhol
teriam sido ajudados por esse misterioso buraco.
Filme já analisado pelo Cinegnose – clique aqui.
Filme já analisado pelo Cinegnose – clique aqui.
6. Reality
O diretor francês Quentin Dupieux trilha o caminho
da comédia nonsense em um filme que mostra uma pretensão irônica já em
seu título. Na trama Reality é o nome de uma menina que encontra uma fita VHS. Paralelamente, acompanhamos as histórias
de um cinegrafista que deseja realizar o seu primeiro longa-metragem e de um
apresentador de TV que começa a sentir uma coceira não justificada pelos
dermatologistas.
Os questionamentos sobre o que é realidade, o que é
ficção e o que é pura imaginação dentro daquele universo vão avançando à medida
que os núcleos principais se cruzam. O cinegrafista trabalha no mesmo programa
do apresentador de TV, que é assistido pela menina, que por sua vez aparece em
um filme produzido pelo mesmo profissional responsável pela aprovação do
projeto de longa-metragem do cinegrafista.
Por que está “Em
Observação”? – A
crítica afirma que Dupieux brinca de forma humorística com a lógica de filmes
como A Origem – a chamada “narrative em abismo”. O diretor é um velho conhecido
do Cinegnose (analisamos dele os filmes Rubber
e Wrong).
Uma curiosa variação do gnosticismo no cinema, sem dramas ou ficção científica.
Apenas o humor non sense.
5. Love and Peace
Uma pequena tartaruga faz companhia a Ryo, homem
pusilânime e medíocre. Comprou o pequeno animal para alegrar seus dias de
miséria e solidão. A pequena tartaruga se perde e vai parar na rede de esgotos
de Tóquio até encontrar um refúgio marginal de animais abandonados, brinquedos
velhos e objetos perdidos. Um filme onde Ratatouille se encontra com com as
animações Island of Misfit e Toy Story. O que torna ainda mais estranho o
filme? Foi dirigido por Sion Sono, diretor japonês que sempre transitou por
filmes sobre maníacos da yakuza, assassinos em série e pervertidos.
Por que está “Em Observação”? – Filmes com variações do
simbolismo mitológico das cavernas, buracos e submundos (metrôs, esgotos,
subterrâneos, labirintos etc.) interessam ao Cinegnose.
4. Entertainment
A vida é uma
comédia amarga, e o filme quer deixar isso bem claro. Um comediante chamado
Neil Hamburger é um péssimo comediante com humor de mau gosto, com punchlines
sem graça e incapaz de fazer uma piada real – “Por que Madonna alimenta seu
bebê com comida de cachorro da marca Aipo?” é o início de uma das suas “piadas”
nos shows de stand up nas fronteiras México-EUA.
Abandonado pela
família, vive de hotel em hotel fazendo pequenos números para pequenas
audiências formada por bêbados, losers e miseráveis. Entertainment é uma visão
sombria da completa frustração artística e pessoal.
Por que está “Em Observação”? – o fascínio pelo
universo loser sempre chamou a atenção do Cinegnose, desde filmes como Veludo Azul de David Lynch – o submundo
dos perdedores, pequenos escroques e gente abandonada pela sorte. Numa
sociedade orientada para o mérito, sucesso e consumo e que é mesmo assim infeliz,
a dor dos perdedores pode nos dar grandes lições.
3. A Pigeon Sat on a Branch Reflecting on Existance
Com esse filme, o
diretor sueco Roy Andersson fecha a sua aguardada trilogia sobre o ser humano,
iniciada por Songs From The Second Floor
(2000 – analisado pelo blog, clique aqui) e seguida por Vocês, Os Vivos (2007 – analisado pelo
blog, clique aqui.).
Como nos filmes
anteriores, consiste numa série de skatches ou esboços de situações absurdas,
surreais ou non sense sobre o “demasiado humano” do comportamento e sociedade.
Dessa vez os episódios são ligados por uma dupla de vendedores de futilidades e
bugigangas cronicamente deprimidos. O filme ainda conta com uma participação
especial do rei Carlos XII da Suécia.
Por que está “Em Observação”? – O humor de Roy
Andersson pertence a um tipo de comédia esquecida pelo cinema: o slapstick dos
filmes mudos e do início do som, cujos protagonistas eram inadaptados e
perdedores, de Chaplin aos Três Patetas. Andersson não faz que caçoemos deles,
mas do absoluto non sense das situações cotidianas e dos papeis e convenções
sociais que somos obrigados a performar. Rir de um sistema perverso que produz
sem parar disfunção e situações tão absurdas como os skatches dos seus filmes.
2. Der Samurai
Jakob é um jovem
policial em uma pequena cidade alemã aterrorizada por lobos. Quando um
misterioso pacote é entregue na delegacia, Jakob sai a procura do remetente na
floresta. Terror? Uma espécie de releitura de Chapeuzinho Vermelho? As coisas
mudam quando Jakob encontra um travesti com olhar selvagem, vestido branco e
uma espada samurai em uma cabana. E começa um jogo de gato e rato.
Mas o homem não é
um simples samurai – o filme explora a estranheza da estranheza: o policial
racional, ponderado e hetero e o samurai louco, impulsivo e travesti. Muitos
críticos qualificam o filme como “alucinação coletiva”.
Por que está "Em Observação"? - Mais um dos filmes estranhos que quer criar no espectador a experiência do indivíduo em confronto com as regras sociais e a busca da liberdade. Uma produção que mostra como muitos filmes estranhos aproximam-se das temáticas gnósticas.
Por que está "Em Observação"? - Mais um dos filmes estranhos que quer criar no espectador a experiência do indivíduo em confronto com as regras sociais e a busca da liberdade. Uma produção que mostra como muitos filmes estranhos aproximam-se das temáticas gnósticas.
1.
Anomalisa
Uma comédia
existencial de Charlie Kaufman (Adaptação,
Quero Ser John Malkovich, Sinédoque Nova York) em uma detalhista técnica
stop motion extremamente realista sobre um palestrante motivacional chamado
Stone que vive a crise da meia idade. Pai de família e guru de livros sobre
atendimento ao consumidor chega a uma cidade para dar uma palestra. Stone
parece alheio a tudo, as vozes perecem ter o mesmo som, as coisas triviais
parecem penosas como pedir comida no hotel ou conversar com o taxista.
E o artificialismo
do stop motion parece ressaltar ainda mais a sensação de estranheza e alienação
do protagonista.
Por que está “Em Observação”? – Kaufman é um
mestre em amplificar por meio do surrealismo, hipérboles e analogias o
mal-estar contemporâneo. É o arquétipo moderno do Estrangeiro: aquele que se
sente estranho ou um intruso em sua própria cidade, trabalho ou família. Um
drama intimista encenado por fantoches em minúsculos cenários parece reforçar a
atmosfera claustrofóbica da condição humana do Estrangeiro.
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