Com doze indicações para o
Oscar 2016 com o filme “O Regresso”, mais uma vez o diretor Alejandro Iñarritu está
no centro das atenções: se no ano passado com o premiado “Birdman” homenageou o verniz
artístico de Hollywood (a Broadway), agora é a vez do diretor fazer um tributo
aos elementos mais caros da propaganda da política externa dos EUA: o
sobrevivencialismo como nova tradução do individualismo e o temor das investidas
dos inimigos interno (o traidor) e externo (malditos franceses!). Mas em “O Regresso” esses elementos foram
imersos em camadas de simbolismos místicos, xamânicos e religiosos que transformaram DiCaprio em um santo medieval atormentado por visões. Iñarritu
prova ser um “insider” – parece saber como ninguém atingir os corações da
Academia de Cinema.
Tudo é primal em O Regresso:
a selvageria do homem contra o homem, o persistente desejo de vingança, a força
letal de um urso, as forças brutais da natureza em uma terra que parece que foi
esquecida por Deus. Ou será que o homem foi esquecido por Deus?
O Regresso é um “western thriller”
sobre violência, vingança e honra em uma gelada terra de fronteiras no alto do
Rio Missouri.
Filmes desse gênero
apresentam na história do cinema em geral três abordagens distintas: primeiro é
o maniqueísmo clássico do homem branco civilizado contra os indígenas
selvagens; o segundo é o western psicológico onde ressalta-se o “demasiado
humano” como no filme Matar ou Morrer (High Noon, 1952) com Gary
Cooper; e o terceiro é o western gnóstico onde o herói trágico esquecido por
Deus luta contra o seu destino em terras desoladas – Onde os Fracos não Tem
Vez (2007), Child of God (2013) ou até mesmo releituras do gênero
como Dead Man - 1995.
A crítica especializada em
uníssono vem destacando a experiência imersiva que a câmera de Iñarritu proporciona ao espectador como se estivéssemos dentro das sequências pelo ponto
de vista de diversos personagens (longos planos sequências, câmera girando em
360 graus, principalmente nas violentas cenas de ação e ataque), o trabalho de
fotografia (no ataque do urso podemos sentir cada pelo do animal sobre
DiCaprio) e a dolorosa jornada de agonia, dor e privações do protagonista em
152 minutos.
Outros chamam a atenção
para diversas alusões esotéricas e religiosas ao longo do filme – a espiral
desenhada no cantil de Hugh Glass, a sequência nas ruínas de uma igreja onde
fundem-se experiências místicas e religiosas etc.
Politicamente correto
O Regresso é politicamente
correto: os nativos são apresentados de forma digna, com uma cultura dotada de
grande sabedoria, fugindo do maniqueísmo do western clássico. Ambição, poder e
vingança são as motivações que impulsionam os personagens brancos, o que leva a
crer que a adaptação de Iñarritu focou no “demasiado humano”.
Mas O Regresso
lidera o Oscar desse ano com 12 nomeações. Como vimos em postagem anterior, desde
2010 a Academia vem privilegiando filmes “históricos” e filmes metalinguísticos
sobre Hollywood e a indústria do entretenimento: Birdman, 12 Anos de
Escravidão, Argo, Lincoln, O Discurso do Rei. E como todo filme “histórico”
feito por Hollywood, o maniqueísmo puro e sem matizações predominam – sobre isso clique
aqui.
O maniqueísmo em O
Regresso é mais contido e sutil, mas também está presente sob camadas de
simbolismo religiosos e místicos. O que acaba criando condições ideológicas
para o filme tornar-se um forte candidato ao Oscar no próximo mês. Assim como
se confirmou Birdman, uma autoindulgente homenagem do mexicano Iñarritu
à Broadway, verniz artístico de Hollywood.
O Regresso apresenta sutis
elementos do maniqueísmo da atual propaganda anti-terror da política externa
dos EUA: o inimigo externo, o inimigo interno e o sobrevivencialismo como a
nova roupagem do individualismo moderno.
O Filme
O Regresso foi baseado em parte no
livro de Michael Punke e no caso do verdadeiro de Hugh Glass, um montanhista do
Wyoming que em 1823 sobreviveu ao ataque de um urso e viveu uma inacreditável
odisseia para buscar vingança contra dois homens que o deixaram para trás para
morrer.
No filme, Glass é um
guia que serve a um grupo de corsários civis envolvidos em uma expedição militar
dos EUA ao longo do Rio Missouri liderado por Andrew Henry (Domhnall Gleeson)
para estabelecer uma base para o lucrativo negócio de caça de animais para
comercialização de peles. Glass e o grupo são atacados por uma tribo guerreira
em uma sequência inicial eletrizante e brutal, onde gritos de alerta são
silenciados por sibilantes flechas que atravessam gargantas.
Rastreador experiente,
Glass orienta os aterrorizados sobreviventes a abandonarem seu barco e carregar
suas preciosas peles floresta adentro, pegando o caminho das montanhas até
chegar ao Forte Kaowa onde a companhia pagará o carregamento.
No caminho de fuga,
Glass é atacado brutalmente por um urso. Seriamente ferido, ele é deixado sob o
cuidado do malevolente e truculento Fitzgerald (Tom Hardy) sob a promessa de pagamento
extra enquanto o restante retorna ao forte. Uma vez deixado sozinho com sua
carga, Fitzgerald abandona Glass agonizante pensando em receber pela sua carga
de peles e a remuneração extra o mais rápido possível.
Só que Fitzgerald não
contará com a determinação por sobreviver de Hugh Glass, que tentará suplantar
todas as adversidades (o frio penetrante e doloroso, os persistentes indígenas,
a perna quebrada e os ferimentos profundos) em busca de vingança.
Atormentado por visões
Iñarritu sabe que essa
história de alguém perdido ou deixado para trás que luta pela sobrevivência já
foi contada inúmeras vezes por Hollywood.
Por isso, O Regresso
tenta imprimir um tom transcendente, místico ou religioso à peregrinação de
Glass. Há algo de alucinatório na narrativa que transforma Glass numa espécie
de santo medieval atormentado por visões: as aparições da sua falecida esposa
nativa; também quando de repente se depara com uma vasta planície cheia de
bisões; a aparição do filho brutalmente assassinado por Fitzgerald nas ruínas
de uma igreja com direitos a closes em um afresco – a cena decompõe a Igreja em
imaginária, real e no final a dúvida se realmente aquela experiência aconteceu.
Ainda ao longo da
narrativa Iñarritu espalha simbologias: a xamânica no cantil de Glass (a
espiral, no caso, símbolo xamânico indígena de passagem para o mundo
espiritual) ou as duas sequências cruciais do filme que envolvem simbologias de
purificação e renascimento – quando é levado pelas águas geladas do rio para
depois alcançar a margem e se desfazer das pesadas peles encharcadas; e quando
retira todas as vísceras de um cavalo morto para, passar à noite nu dentro da
carcaça do animal para proteger-se do frio e “renascer” no dia seguinte em uma
sugestiva cena de “parto” e “purificação”.
Individualismo e sobrevivencialismo
Mas essas sequências
místico-xamânico-religiosas encobrem uma outra simbologia bem menos
transcendente que, na opinião desse humilde blogueiro, torna O Regresso
um favorito ao Oscar desse ano: a político-ideológica.
Iñarritu sabe que Hollywood não digere bem
filmes onde a determinação heroica é coletiva – soa “socialista” demais para a
indústria do cinema. O herói solitário ou histórias onde a determinação
individual salva o dia são bem mais icônicas. O herói, seja na roupagem do galã
aos anti-heróis como Rambo, sempre foi dominante no imaginário cinematográfico.
A novidade é que desde o
final do século passado temos a recorrência de um novo tipo de herói: o
sobrevivente, em diversos gêneros desde os filmes de Bruce Willys até produções
como O Náufrago, 127 Horas etc. O homem solitário que deve enfrentar a Natureza
e os próprios limites.
O sobrevivencialismo é a
nova roupagem do individualismo: em um mundo de crises sucessivas (econômicas,
climáticas, existenciais etc.) todos se veem como sobreviventes – no trabalho,
no casamento, nos negócios. É a nova ética: a do sobrevivente que sente a
necessidade de matar um leão por dia e compara as adversidades da sociedade a
fenômenos brutais da natureza. Não é à toa que tornam-se fascinantes os
esportes dos “testes de limites” como maratonas, triátlons do gênero Iron Man,
alpinismo e esportes radicais – não são mais esportistas coletivos, mas
sobreviventes de si mesmos.
Malditos franceses!
E por último, e não
menos importante, O Regresso dá aos eleitores da Academia de Hollywood uma narrativa com a representação do temor dos supostos inimigos externos e internos dos EUA. Aquilo que Hollywood vem
fazendo desde os atentados de 2001, tornando-se um instrumento
importante na máquina de propaganda da política externa norte-americana:
Os índios e “peles
vermelhas” não são mais os vilões em westerns – seria muito incorreto. Agora, como no caso de O Regresso, são os franceses em uma região de fronteira com o Canadá. Fronteiras, franceses
e canadenses são a soma dos medos nacionalistas norte-americanos – muito bem
ironizados no filme Mera Coincidência (Wag The Dog, 1998) onde só
se pode imaginar terroristas entrando nos EUA através da terra dos pouco
confiáveis canadenses.
Franceses são sujos
(traem os índios), indecentes (estupram indígenas) e roubam as peles dos
americanos. O indígenas são puros e dotados de grande sabedoria. Mas são
corrompidos pelos franceses.
Mas os americanos também
traficam peles na fronteira e matam os animais nas terras indígenas. Porém, há
uma companhia por trás, apoiada pelo exército americano com um comandante
civilizador e que pretende colocar ordem moral e jurídica no Forte Kaowa. Há o
empreendedorismo liberal que, por si, é considerado moralmente bom. Não importa
se o objetivo final seja o mesmo dos franceses sujos e traiçoeiros.
Mas assim como os indígenas puros foram
corrompidos pelo inimigo externo francês, também pode acontecer o mesmo com o
empreendedorismo liberal: Fitzgerald é o inimigo interno, traidor e cruel. Além
de deixar o herói americano Glass para morrer ainda tenta saquear o cofre da
companhia que paga o salário de todos!
O diretor Alejandro
Iñarritu é realmente um “insider” e sabe como atingir o coração da Academia de
Cinema. Com Birdman no ano passado homenageou o verniz artístico de
Hollywood; agora, faz renovadas homenagens à máquina de propaganda política
hollywoodiana.
Ficha Técnica |
Título: O
Regresso
|
Diretor: Alejandro Gonzales Iñarritu
|
Roteiro: Mark L. Smith, Alejandro Iñarritu
|
Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy,
Will Poulter, Domhnall Gleeson, Forrest Goodluck
|
Produção: New Regency Pictures,
|
Distribuição: 20th Century Fox
|
Ano: 2015
|
País: EUA
|
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