O livro infantil “A Fantástica Fábrica de Chocolate” escrito por Roald
Dahl em 1964 resultou em duas adaptações cinematográficas: a de 1971 de Mel
Stuart e a de 2005 de Tim Burton. Enquanto na primeira adaptação os chocolates
assumem um tom lisérgico com humor non sense, em Tim Burton há um retorno as
origens cruéis dos contos de fada, fazendo um mix entre a sensibilidade
gnóstica e todo um simbolismo místico milenar pouco conhecido que envolve o
cacau e o chocolate. Rios de chocolate e florestas de confeitos da “Fábrica de Chocolate” escondem trabalho escravo e injustiça. E um Demiurgo
arrependido que tenta resgatar o élan espiritual perdido na infância em um
mundo cercado de tentações.
A história de um
garoto pobre que consegue realizar seus sonhos por ser uma boa criança. Um
leitmotiv simples e direto, sobre o qual o livro e as duas versões
cinematográficas conseguiram criar diversas camadas simbólicas transformando a
jornada do protagonista em algo essencialmente místico: como encontrar a luz espiritual
interior se vivemos em um mundo cercado de tantas tenções que nos faz esquecer
de nós mesmos?
Estamos falando do
livro A Fantástica Fábrica de
Chocolate (Charlie and the Chocolate Factory), livro infantil do escritor galês Roald Dahl em 1964. E das duas
versões homônimas para o cinema: em 1971 como Gene Wilder dirigido por Mel
Stuart, e em 2005 com Johnny Deep dirigido por Tim Burton.
Cada uma dessas
versões refletiu perfeitamente o espírito do seu tempo: com Gene Wilder o humor
camp e non sense do estilo do grupo inglês Monty Phyton e o colorido
psicodélico da sua roupa; enquanto Johnny Deep claramente se inspirou sua
versão de Willy Wonka (roupa dândi, o rosto estranhamente pálido com maquiagem
e batom) em Michael Jackson e a sua Fábrica de Chocolates no rancho Neverland
do astro pop – e ainda com trajes em preto e violeta e o design expressionista
como se tivesse saído do clássico Gabinete
do Dr. Caligari.
Tanto o livro como as versões cinematográficas criaram perturbadoras
conotações: o personagem ambíguo de Willy Wonka do qual nunca sabemos suas
verdadeiras intenções, a forma como a narrativa relembra as origens cruéis dos
contos de fadas e a estranha fábrica de chocolate que parece sintetizar todos
os potenciais males do capitalismo: trabalhos escravo e injustiça escondidos em
rios de chocolates e florestas de confeitos.
Isso sem deixar de falar nos simbolismos espirituais e mágicos do cacau
e do chocolate que a narrativa parece explorar.
O Filme
A versão de Burton parece ser a mais fiel ao livro original, concentrando-se
no menino Charlie, valente e simpático que vem de uma família tão excêntrica
que as maravilhas de dentro da fábrica parecem não ser mais divertidas do que a
estranha rotina da família Bucket. A família é muito pobre e vive em uma casa
inclinada loucamente para todos os lados – mais referencias ao expressionismo
do Gabinete do Dr. Caligari.
Charlie vive em um sótão sem teto e seus quatro avós dormem
aparentemente em uma mesma cama. Sua mãe (Helena Bonham Carter) mantém a
serenidade no lar, enquanto o seu pai (Noah Taylor) sempre está à procura de
emprego. O avô Joe (David Kelly) é um ex-funcionário da Fábrica e relembra os
tempos felizes em que ele e todos do bairro eram empregados de Willy Wonka.
Tempos atrás Willy Wonka dispensou todos os operários e fechou as portas
da fábrica. Ele sempre foi um famoso e bem sucedido criador de revolucionárias receitas
de doces e chocolates e, por isso, constante vítima da espionagem industrial da
concorrência. Temendo que mais operários espiões fossem infiltrados em sua
fábrica, Wonka simplesmente demitiu todos e tornou-se recluso, escondido do
mundo por trás dos gigantescos muros e portões da fábrica.
No entanto, o mundo continua recebendo e consumindo normalmente os
famosos chocolates: como Wonka consegue ainda produzi-los?
O mistério parece que finalmente poderá ser revelado quando Wonka anuncia
um surpreendente concurso: para as cinco crianças que tiverem a sorte de
encontrar o bilhete dourado nas barras do chocolate, os gigantescos portões se
abrirão e serão escoltadas pelo próprio Wonka em um passeio pelo interior da
fábrica. É claro que Charlie será um dos que encontrarão o dourado bilhete
premiado, não sem suspense. Junto com ele, outras crianças que são exemplares dos
principais pecados infantis: Verusca é a criança mimada; Violet é a
perfeccionista competitiva; Mike é viciado em videogames violentos e Augustus é
um glutão.
Quando as cinco crianças entram na fábrica, encontram a maravilha da
imaginação infantil: uma imensa paisagem açucarada de rios com chocolate,
árvores de onde brotam chicletes e montanhas com pedras de doces variados. Na
sua vida reclusa Willy Wonka criou um parque fantástico onde aparentemente o
chocolate nasce como uma fonte natural na floresta de glacê.
Mas algo mais se esconde no meio de tudo isso. A sua misteriosa mão de
obra: os Umpa Lumpas – pequenos seres que Wonka encontrou vivendo em árvores na
África. Apreciadores de cacau, ele prometeu a eles um estoque permanente do
fruto. Em troca, o trabalho servil em sua fábrica. São versões pós-modernas de
escravos – cantam músicas assim como os escravos africanos faziam na dolorosa
jornada de trabalho, o que faziam os senhores dizerem: “olha, eles estão
cantando, estão felizes...”.
Wonka parece ser um CEO maligno: demitiu sua mão de obra para
terceirizar a produção, gerando pobreza na cidade que rodeia a fábrica. Charlie
é fascinado pela figura de Willy Wonka, ao mesmo tempo que sua família foi
vítima da injusta política trabalhista dele.
Sensibilidade gnóstica de Tim Burton
Diferente do livro e da primeira versão cinematográfica, Tim Burton
procura dar conotações místicas e psicanalíticas à narrativa. Qual a motivação
de Willy Wonka promover o concurso? Punir as crianças más e recompensar a boa?
Através de flash-backs o diretor Tim Burton
escrutina a infância de Wonka, filho de um cruel dentista que o impede de
consumir doces e mantem sua boca presa a um complicadíssimo aparelho de
correção dentária.
Por isso Wonka tornou-se amoral e impulsivo – ele não tem nenhuma noção
das consequências humanas e sociais das suas práticas gerenciais. Parece que o
concurso é um meio de Wonka procurar em uma amostragem de crianças aquilo que
ele perdeu na sua própria infância: não apenas o amor, mas o élan espiritual –
alegria, boa-fé, disposição, brilho, vitalidade, confiança. As partículas de
luz espiritual ofuscadas pelos chamados “pecados” como o vício, a violência e o
egoísmo, punidos pelas sutis armadilhas que surgem ao logo do tour pela
fábrica: cada criança má tem o seu destino adequado às suas próprias
contravenções.
Há uma sutil sensibilidade gnóstica na versão de Tim Burton da Fábrica de Chocolate: Wonka é o Demiurgo
que tenta encontrar essa pérolas perdidas no interior de todos nós, mas que
estão esquecidas pelas camadas e camadas de “tentações” que nos envolvem - indústria
do entretenimento, consumo, publicidade e propaganda etc.). Um Demiurgo
arrependido que sente na sua gigantesca criação algo de vazio e sem propósito.
Como encontrar algo dentro de si mesmo se tudo ao redor nos puxa para
fora? Esse parece ser o secreto desafio do concurso dos bilhetes dourados.
O misticismo do cacau e do chocolate
E para completar estão os misteriosos umpa lumpas que na versão de Tim
Burton são conectados aos simbolismos místicos do cacau e do chocolate.
Na adaptação cinematográfica de 1971 o chocolate é abordado pelo zeitgeist da época: psicodélico e
lisérgico. No livro os umpa lumpas são apreciadores de cacau, mas na versão de
Burton eles veneram o fruto como uma divindade.
Os maias no antigo México acreditavam que o cacau era o alimento dos
deuses: eles haviam encontrado a árvore do cacau e dado como um presente para
os homens. Fruto energético, foi considerado um símbolo da vida e fertilidade –
o sabor apimentado estimulava o apetite, aumentava a resistência física e o
vigor sexual além de reduzir a fadiga.
Com o chocolate, criou-se um verdadeiro arco arquetípico que vai da
sexualidade ao lisérgico – os maias agregavam alguns tipos de mucilagem com
fungos com uma substância alcaloide chamada psilocibina cujos efeitos são
semelhantes aos produzidos pelo LSD. Razão pela qual era consumido somente pela
elite política e xamânica.
Por isso é sincromística essa aproximação que Tim Burton fez entre
cacau/chocolate e o drama de Willy Wonka à procura do élan espiritual perdido
na infância. Por toda vida Wonka procuram no chocolate alguma receita que lhe
trouxesse a vitalidade. Para depois descobrir que o chocolate e a fábrica
seriam apenas o instrumento para achar no menino Charlie a partícula de luz
espiritual perdida.
Ficha Técnica |
Título: Charlie
e a Fábrica de Chocolate
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Diretor: Tim Burton
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Roteiro: John August baseado no livro de Roald Dahl
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Elenco: Johnny Deep, Freddie Highmore, David Kelly, Helena Bonham Carter, Noah
Taylor
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Produção: Warner Bros.
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Distribuição: Warner Bros.
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Ano: 2005
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País: EUA
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