O Outro Mundo está ficando cada vez
mais parecido com esse. O “Cinegnose” vem percebendo uma tendência no cinema
recente em representar o pós-morte como uma projeção das mazelas já existentes
nessa vida, repetindo uma tendência do gênero ficção-científica: a
“hipo-utopia”, onde o futuro deixa de existir para virar uma projeção dos
problemas do presente. Os curtas da semana “Life and The Mirror” (2007) e
“Goodbye” (2015) são dois exemplos dessa estranha tendência. Assim como estamos
perdendo a fé na vida, também estaríamos perdendo a fé na vida pós-morte?
Em postagem anterior quando discutíamos a ficção científica falávamos
que esse é um gênero cuja principal característica é a especulação sobre mundos
futuros. E que curiosamente na atualidade estaríamos vendo filmes desse gênero
onde, paradoxalmente, o futuro não mais existe: não há nem utopia e nem
distopia, mas agora hipo-utopia – “hipo” no sentido de insuficiência. “posição
inferior” + “topia” do grego “topus”, “lugar”.
Não teríamos mais
nem a realização dos ideais científicos, tecnológicos e humanistas modernistas (utopia), e nem os aspectos
negativos dessa realização (distopia). Na hipo-utopia o futuro nada mais é do
que a repetição das mazelas do presente. Todos os problemas do presente são
projetados no futuro de forma análoga, exagerada ou caricata. O futuro não é
mais um “topus”, mas uma continuação do presente.
Goodbye |
O mesmo destino
parece estar ocorrendo com as representações da morte e do morrer no cinema.
Esse dois curtas que escolhemos nessa semana, Life and The Mirror (2007) de Julio Pereira e Goodbye (2015) de Tyler Russo são exemplos de um fenômeno já
marcante em longas metragens como I Am a
Ghost, analisado recentemente pelo Cinegnose – clique aqui.
A Morte hipo-utópica
No cinema já tivemos representações utópicas da morte (de filmes
espíritas como Nosso Lar ao mito da
morte como uma segunda chance em filmes especialmente baseados em contos
natalinos como A Christmas Carol) ou
distópicas com infernos, sofrimentos e culpa.
Mas nesses curtas temos o pós-morte ou o morrer como uma experiência com
elementos análogos à vida – o espelho que na verdade é a tela da TV em Life and The Mirror e o pós-morte como
uma kafkiana entrevista de emprego onde o protagonista morto se comunica por
meio de uma tela de TV no curta Goodbye.
Em Life and The Mirror um
homem (performado pelo próprio diretor Júlio Pereira) está em estado catatônico
no acostamento de uma via expressa. Ao fundo o som de soldados marchando e, ao
final, o que se revela um pelotão de fuzilamento. Os relógios em espiral é a
clássica representação xamânica da passagem para o Outro Mundo. E os olhos do
protagonistas colados a uma tela de TV como se olhasse sua vida ou alguém que
ama ou amou.
Life and The Mirror |
Em Goodbye um homem sofre um
violento acidente de carro em uma noite. A sua vida passa diante dele
lentamente por meio de fotografias. Se detém em algumas e passa rápido por
outras. Até chegar a uma perturbadora situação: agora encontra-se no interior
de uma tela de TV e diante dele uma espécie de equipamento giratório autômato
com quatro cabeças com máscaras similares a teatro Kabuki japonês. A máquina é
o “entrevistador” que o conduzirá em uma entrevista de um emprego para ele.
O protagonista não sabe que morreu ou como e por que está ali. As
perguntas são inquisidoras e agressivas: questionam sobre as mortes de sua
filha e do seu amigo e do quanto ele sente-se culpado por elas.
O curta cria uma atmosfera muito parecida com Brazil, O Filme (1985) de Terry Gilliam. O design e arquitetura do
ambiente é sombria com um misto de arquitetura hindu, balinesa e japonesa.
O curta abre com uma citação do Bhagavad
Gita (texto religioso hindu): “Assim como o homem rejeita suas roupas
desgastadas procurando novas, da mesma forma o morador do corpo abandona o
corpo desgastado para entrar em novos corpos”. Por isso Goodbye parece ser um curta sobre morte, passagem e preparação para
uma nova reencarnação como uma entrevista de um processo seletivo para um novo
emprego. Todo processo espiritual da reencarnação transforma-se em um processo
seletivo de RH de uma empresa. Porém, mais assustador e sombrio.
O que é marcante nesses curtas é a inexistência de algo mais metafísico
ou edificante na morte – ainda em Life
and The Mirror há espirais e galáxias. Morremos e encontramos um
entrevistador com perguntas incomodas e dolorosas e nenhuma autoridade superior
a apelar naquele momento.
Há uma banal linha de continuidade entre a vida e a morte: parece que a
vida nada mais é do que uma pálida cópia de um mundo pós-morte. Chegando lá no
Outro Mundo encontraremos o que foi deixado para trás em uma escala
perversamente mais perfeita e elaborada.
A morte é vista no sentido hipo-utópico: na vida pós-morte projetamos as
próprias mazelas da vida. Morrer não é mais “partir dessa para uma melhor”: é
encontrar no Outro Mundo os problemas da vida em uma escala ainda mais ampliada
e perversa.
Ficha Técnica |
Título: Life
and The Mirror
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Diretor: Julio Pereira
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Roteiro: Julio Pereira
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Elenco: Julio Pereira
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Produção: independente
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Distribuição: YouTube
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Ano: 2007
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País: EUA
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Ficha Técnica |
Título: Goodbye
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Diretor: Tyler Russo
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Roteiro: Tyler Russo
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Elenco: Kevan Brighting, Wendy White
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Produção: Independente
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Distribuição: Vimeo
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Ano: 2015
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País: EUA
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