Tal qual uma serpente, um muro cinza escuro serpenteia o
Brasil dividindo o País do Acre ao litoral. É com essa sinistra animação que o
infográfico do site da “Folha de São Paulo” chamado “Folhacóptero” explica o
cenário eleitoral brasileiro, em um previsível silogismo cuja conclusão é a de
que somente os pobres e ignorantes mantêm a candidata Dilma Rousseff na frente
das pesquisas eleitorais. Divisão e Muro são as metáforas que a grande mídia
sistematicamente vem utilizando para explicar o cenário político. Enquanto
publicações estrangeiras como a “The Economist” usam infográficos mais neutros
e elegantes para explicar as desigualdades históricas do Brasil, nossa grande
mídia usa a imagem do muro, simbolicamente carregada de ódio e separatismo. A
grande mídia sabe que vive o fim do seu poder político-financeiro e parece
querer deixar para a História o ódio como a sua única herança.
Quem não se
lembra do filme clássico do mestre da violência, Sam Peckimpah, Meu Ódio Será Sua Herança (The Wild Bunch, 1969)? Considerado o
sexto melhor western de todos os tempos pela American Film Institute (AFI). O
filme é um hino ao crepúsculo da era do Velho Oeste e da figura mítica do
cowboy, com um general mexicano aparecendo em um carro vermelho no lugar do
cavalo e metralhadoras e pistolas automáticas substituindo o tradicional
revólver de seis tiros.
O mau
presságio para os protagonistas do filme começa com a célebre cena quando
entram em uma cidade e avistam um grupo de crianças que empurram dois
escorpiões para um formigueiro para se divertirem com a imagem da violência no
meio natural.
Em muitos
aspectos nessa reta final das eleições a grande mídia não só se comporta como
as crianças do filme de Peckimpah como também vive o crepúsculo de uma era com
a crescente concorrência da Internet, a ruína financeira e a perspectiva de uma
nova regulamentação com a Lei dos Meios. A grande mídia responde a tudo isso
com o ódio, ao criar a percepção de um país dividido e intolerante à beira de
uma guerra de secessão.
O muro do “Folhacóptero”
Um muro serpenteia o Brasil |
Um sintoma
de como a grande mídia parece se divertir como as crianças de Peckimpah é o
infográfico animado da Folha de São Paulo “Folhacóptero mostra ‘muro’ que
divide o país em duas realidades” - clique aqui para ver ou veja o vídeo abaixo. A palavra “muro” é colocada entre aspas, mas
na animação ela deixa de ser uma metáfora para se transformar em uma imagem de
uma divisão real :
“O folhacóptero sobrevoa com você alguns mapas que ajudam a explicar a divisão do país no primeiro turno das eleições. As desigualdades econômicas criaram um muro invisível separando o Brasil em dois. Ele correria por 8 mil kms (...)”.
O mapa sobre
o qual o “folhacóptero” sobrevoa sob uma didática e amigável voz feminina é
simbolicamente insólito: um muro é como que desenrolado, dividindo estados como
Tocantins e Minas Gerais, começando no Acre e terminando no litoral brasileiro.
Um muro cinza escuro que separaria o Brasil mais rico do mais pobre (com
destaque para São Paulo, reproduzindo o mito da locomotiva que impulsiona o
“Brasil rico”). Ao sul “mais renda, saúde e educação... e do OUTRO lado do muro
municípios com renda, IDH e educação abaixo da média do País, e por isso suas
famílias foram as mais atendidas pelo programas sociais do governo”.
A conclusão
óbvia do silogismo da animação é que Dilma mantem-se no poder graças ao
populismo e a exploração da pobreza e o baixo nível intelectual daqueles que
estão do OUTRO lado do muro.
Alegorias e metáforas da divisão
As
desigualdades brasileiras já foram representadas de formas mais irônicas e
elegantes, sem o ranço do ódio que a insólita animação da Folha alimenta.
Infográfico da "The Economist": neutralidade |
Por exemplo,
a expressão “Belíndia”: país fictício e contraditório criado pelo economista
Edmar Bacha em 1974 no texto “O Rei da Belíndia – uma fábula para tecnocratas”
para demonstrar que o regime militar criava um país dividido entre pessoas que
moravam em condições similares à Bélgica e aqueles que tinham um padrão de vida
semelhante à Índia.
Já a
publicação inglesa The Economist
recupera essa alegoria para falar das mudanças ocorridas no País. Segundo a publicação,
o Brasil lembraria uma “Italordânia”, com estados onde o PIB per capita
equivale a Itália, enquanto outros com renda próxima da Jordânia – clique
aqui e leia a reportagem.
A reportagem
da The Economist é ilustrada por um
infográfico (veja ao lado) bem mais neutro e elegante do que o retoricamente
agressivo e apocalíptico da Folha.
Quem está ao Norte e ao Sul do muro?
O
inacreditável infográfico animado da Folha
segue localizando as regiões onde os candidatos Aécio e Dilma tiveram votações
mais expressivas como “lado acima do muro”, “lado abaixo do muro”, “ao sul do
muro” etc. Sempre sugerindo uma divisão radical que, paradoxalmente, o próprio
infográfico com as manchas em vermelho, azul e verde desmente, demonstrando
como a metáfora do muro é grosseira e retoricamente carregada de ódio parcial.
Grande mídia se comporta como as crianças de Peckimpah no filme "Meu Ódio Será Sua Herança" |
Na verdade,
é mais uma bomba semiótica, não só para criar uma percepção, mas reforçar uma
ideologia já pré-existente de que o Brasil vive uma situação pré-insurrecional
e de guerra separatista.
Depois de
passar 90% do tempo reforçando visualmente essa percepção, a animação da Folha encerra dizendo que “NO ENTANTO, o
Brasil é um só, bolsões de riqueza e pobreza convivem em todos os estados
(...)”. Inutilmente, o insólito vídeo tenta trazer de volta à racionalidade um
leitor que já foi contaminado pela abominável imagem de um muro escuro que
serpenteia como uma cobra o Brasil “e que passa ao lado de Brasília” como significativamente
destaca a “amigável” voz feminina.
Esse
infográfico animado é apenas mais um exemplar do tom retórico que a grande
mídia dá às eleições: de um lado a mídia fala em “festa da democracia” e
“exercício da cidadania” para no outro momento alertar em manchetes do tipo
“País chega dividido ao 2o turno”, como ameaçadoramente
lembra o jornal O Globo.
Infográficos
e manchetes retoricamente irresponsáveis como essas lembram as crianças de Sam
Peckimpah querendo ver os escorpiões sendo devorados pelo formigueiro. É o
sintoma de um cenário onde a grande mídia tem que assumir obrigatoriamente o
papel de oposição política (já que a oposição parlamentar é pífia, vivendo à
reboque da pauta midiática) e, ao mesmo tempo, tem que enfrentar a sua ruína
financeira.
Sabemos que
a escolha da imagem do muro não é neutra, mas simbolicamente carregada de
diversos significados negativos que a própria mídia criou: apartheid, Guerra
Fria, ódio e intolerância.
Por isso,
essa nova bomba semiótica, disparada na reta final das eleições, contém uma
outra mensagem implícita: se a candidata do PT for reeleita, haverá um
“terceiro turno” – a radicalização do simbolismo do muro que deixará de ser uma
simples alegoria para ser construído na realidade.
A grande
mídia sabe que vive o seu crepúsculo e parece querer deixar o ódio como a sua
única herança.