Com o filme “O Doador de
Memórias” (The Giver, 2014) Hollywood acrescenta mais uma produção a uma série
de filmes sobre mundos distópicos dominados por estados policiais totalitários.
Essas produções vem retomando símbolos e narrativas gnósticas, mas dessa vez em
uma nova fórmula: um mix de Gnosticismo
com “1984” de Orwell e “Admirável Mundo Novo” de Huxley. Essa terceira onda de
Gnosticismo pop no cinema, assim como nas ondas anteriores, está relacionada
com alterações nos paradigmas tecnológicos. Na atualidade, o projeto da
Internet das Coisas e a nanotecnologia, criando
possibilidades de geolocalização e controle total da privacidade. A obsessão
atual de Hollywood por essas distopias faz surgir teorias conspiratórias como a
chamada “hipótese Fox Mulder”, extraída de um episódio da série “Arquivo X”.
O
Doador de Memórias,
adaptação do livro de 1993 The Giver
de Lois Lowry (premiado best seller
de ficção científica para o público jovem) é o último filme de uma série de
produções recentes que exploram distopias futuristas totalitárias: Snowpiercer (2013), No Limite do Amanhã (Edge of
Tomorrow, 2014), Elysium (2013), Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2013), A Viagem (Cloud Atlas, 2012), Oblivion (2013), Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014) etc.
Por que o público está sendo
inundado com essas narrativas futuristas sobre novas ordens mundiais e estados
policiais despóticos? Por que esse súbito interesse de Hollywood em nos fazer
torcer por heróis que lutam por escapar de sistemas totalitários enquanto
tentam encorajar a todos (inclusive o espectador) a fazer o mesmo?
Alguns autores sugerem
algumas hipóteses conspiratórias como, por exemplo, sugerindo a teoria que
chamo de “hipótese de Fox Mulder”: em um dos episódios da série Arquivo X o agente especial da FBI, Fox
Mulder, participa de um congresso de ufologia. Alguém lhe pergunta o porquê de
ao mesmo tempo em que o governo dos EUA procura esconder o fenômeno UFO,
paradoxalmente Hollywood produz tantos filmes sobre seres alienígenas. Mulder
responde: “para que todos pensem que os contatos com UFOs e aliens são
histórias ficcionais, coisas de cinema. Por isso, quando surgem notícias
verdadeiras, ninguém acredita.
A mesma coisa estaria
acontecendo com o tema Nova Ordem Mundial e tecnologias de controles
totalitários dos indivíduos? Coincidentemente no momento das denúncias sobre a
invasão da privacidade na Internet pelas agências governamentais dos EUA,
Google e Apple aparecem nas mídias.
Por outro lado, nesses
filmes citados, assim como em O Doador de
Memórias, muitos deles exploram simbolismos e narrativas gnósticas. Na
verdade, estaríamos vivendo nessa onda atual de filmes distópicos, um período
parecido com o final do século passado onde filmes como Show de Truman, Matrix, O Décimo Terceiro Andar, Cidade das Sombras e A Vida em Preto em Branco (com o qual O Doador de Memórias tem muitas
semelhanças na maneira como explora as cores) tematizavam o temor gnóstico das
novas tecnologias estarem criando realidades virtuais que nos manteriam
prisioneiros.
Como veremos mais adiante, comparando esses
dois momentos de ascensão de temas gnósticos no cinema há um elemento comum:
ambos períodos estavam relacionados a momentos de mudança em paradigmas
tecnológicos. No final do século passado as tecnologias digitais e a virtualização
da realidade; e hoje, a Internet das Coisas – sistema global de registro de
bens em um sistema wireless e nanotecnologia criando possibilidades de
geolocalização e controle total de tráfego, hábitos e privacidade.
Dia 14/10 palestra online desse humilde blogueiro às 21hs
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O Filme
A narrativa se passa em algum
lugar em um futuro indeterminado, onde a “Igualdade” é considerado o valor mais
importante. Foi criado um mundo monocromático (literalmente as cores foram
apagadas da percepção das pessoas), a individualidade foi esmagada e cada
cidadão é monitorada desde o nascimento, as famílias foram substituídas por
“unidades familiares”. Uma voz ao mesmo tempo suave e ameaçadora faz avisos
através de alto-falantes, anunciado decisões dos governantes - os "Anciões", liderados pela Chefe Elder - Meryl Streep.
O conceito de “precisão da
linguagem” é aplicado e cobrado um do outro (todos vivem pedindo desculpas por
alguma “imprecisão”) para evitar termos que expressem sentimentos ou
individualidade, drenando a linguagem de qualquer significado – lembrando a
novilíngua de 1984 de Orwell.
Junto com a individualidade
e os sentimentos, as memórias do que foi um dia a humanidade também foram
eliminadas por meio desse controle linguístico associado a dosagens diárias de
uma droga que induz ao esquecimento. Porém, uma pessoa da comunidade é sempre
escolhida para ser o receptor dessas memórias coletivas das experiências já
extintas (amor, guerra, sexo, dor etc.). Esse será chamado de “Doador” (Jeff
Bridges), cuja existência se consistirá em treinar seu sucessor, para que
suporte física e emocionalmente o peso de carregar nos ombros esse verdadeiro
inconsciente coletivo da História – e principalmente a culpa de saber o que
todos os humanos “esqueceram”.
No decorrer do filme, o
jovem Jonas (Brenton Thwaites) é escolhido para ser o próximo receptor.
Confrontado com a complexidade e a emoção das memórias transferidas pelo Doador
ele aos poucos vai enxergando as cores (é inevitável a conexão com o filme A Vida em Preto e Branco de 1998),
crescendo a sua indignação com aquele sistema social baseado no controle e
esquecimento. Jonas agora terá que fazer
uma escolha: ficar ou fugir. Porém, a Comunidade vive em um estranho lugar
acima das nuvens. Lá embaixo está “o deserto do real” como diria Morpheus em
Matrix. E a esperança de cruzar uma mítica fronteira (a chamada “fronteira das
memórias”) uma espécie de limite físico daquele mundo virtual. Se alguém
cruzá-la, todas as cores e memórias voltariam, reconstituindo a humanidade
perdida.
A Terceira Onda
Essa nova onda de filmes
distópicos com elementos gnósticos confirmaria a tese do pesquisador
norte-americano Eric Wilson (Secret Cinema:
Gnostic Visions in Films, 2006) de que o Gnosticismo sempre ressurge na
História da Cultura em momentos de crises ou mudanças de paradigmas: na era de
Platão a batalha contra os Sofistas no conflito entre Verdade versus retórica;
no princípio da era cristã os ataques do gnóstico Valentim contra a redução da
ideia do Deus infinito ao Deus demiurgo chamado Jeová do Velho Testamento; o
Gnosticismo do Romantismo no século XVIII-XIX diante da Era Moderna; o
Gonosticismo Pop da era Matrix contra
as possibilidades totalitárias das tecnologias virtuais.
E hoje, a potencialidade de
controle absoluto (linguagem,
privacidade etc.) do Estado e corporações com a
chamada Internet das Coisas.
O Gnosticismo pop parece
iniciar uma terceira onda de filmes onde dessa vez a mitologia gnóstica é
aplicada em futuros distópicos e totalitários. Um mix de Gnosticismo com 1984 e Admirável Mundo Novo.
A primeira onda do
gnosticismo pop no cinema localiza-se na segunda metade dos anos 1990,
iniciando-se com Dead Man (1995) e
fechando com Matrix em 1999. Nessa
primeira onda a mitologia gnóstica é associada a mundos simulados por
tecnologias virtuais, capaz de criar uma perfeita contrafação da realidade e
mantendo os protagonistas presos em mundos simulados.
Na segunda onda, a partir de
filmes como Vanilla Sky (2001), vemos
agora protagonistas presos em mundos internos, no interior da própria mente.
Esse filmes correspondem ao momento em as tecnologias computacionais se
encontram com as neurociências, ciências cognitivas, cibernética e Inteligência
Artificial com a finalidade de fazer uma cartografia e topografia da mente:
criar modelos virtuais de funcionamento da mente para aplicações como o
neuromarketing.
O
Doador de Memórias
se insere nessa terceira onda na qual os mundos distópicos do futuro são
projeções ficcionais do totalitarismo latente do atual projeto da Internet das
Coisas e o esquadrinhamento total das atividades dos indivíduos através de
ferramentas de Big Data, Dark Data etc.
De todos os filmes que
compõem essa terceira onda, O Doador de
Memórias é aquele onde simbolismos e mitologias gnósticas estão mais
presentes. Os temas da maçã, das memórias e do esquecimento são centrais no
filme.
A maçã é a ferramenta
utilizada por Jonas para burlar o dispositivo da injeção diária da droga que
induz ao esquecimento: com um pouco do seu sangue, a fruta é colocada no
dispositivo e recebe a dosagem da droga no lugar do corpo do protagonista. Sem
a droga, Jonas reativa suas emoções adormecidas e percebe que aquele paraíso
comunitário (a metáfora do bíblico Jardim do Éden) é inautêntico. O filme faz
uma releitura gnóstica do Gênesis bíblico onde Adão e Eva são prisioneiros e a
maçã é a chave da Verdade.
E finalmente o tema central
do Gnosticismo: o sono do esquecimento que induz à separação dos seres humanos
da unidade original (Deus), fazendo a humanidade prisioneira de um universo
inautêntico. O personagem do Doador no filme ocupa o papel da Gnose: ele, assim
como a enorme biblioteca onde habita com todo o conhecimento humano, não têm um
papel pedagógico (ensinar, educar etc.). Na verdade, ao lado de Jonas, tentam
fazer as pessoas relembrarem o que perderam.
Tudo do que necessitamos já existe dentro de
nós. Por isso a gnose é muito menos uma busca de conhecimento racional,
teológico ou filosófico. Como apresenta o filme, é o despertar de sentimentos e
emoções que ativem a memória do que foi perdido. E que, paradoxalmente, já
estão em nós, reprimidas pelas tentações consoladoras como a religião e o hedonismo.
Ficha Técnica |
Título: O
Doador de Memórias
|
Diretor: Philip Noyce
|
Roteiro:
Michael Mitnick e Robert Weide baseado no livro homônimo de Lois Lowry
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Elenco:
Jeff Bridges, Meryl Streep, Brenton Thwaites, Katie Holmes, Alexander
Skargard
|
Produção: As Is Production e Walden Media
|
Distribuição:
The Weinstein Company
|
Ano:
2014
|
País:
EUA
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