Diga
adeus a nomes de pratos requintados e ornamentais da culinária francesa, se
despeça de bikes de alta performance, abandone esportes de elite. Agora prefira
osso buco e rabada, bicicletas caloi 10 dos anos 1970 reformadas e peladas
regadas a cervejas artesanais. O coxinha evoluiu para a sua versão
“sustentável”: a simplicidade descolada. Eles são os novos tradicionalistas,
uma simplicidade estudada e “descolada”, isto é, de grande valor agregado no
mercado cultural. Sua psicografia é hoje explorada pelo marketing tanto
político como de consumo – ele aspira à simplicidade, pureza e renovação, muito
mais por atitudes do que por ações. Por isso, é campo fértil para crescer o
neoconservadorismo: a aversão à Política como algo complicado e, por isso,
suspeito e corrupto.
Assim como
os Pokemons evoluem para se adaptar melhor às batalhas nos game cards, da mesma forma o chamado “coxinha” parece ter evoluído
para fazer frente às críticas e rejeições que sempre marcaram a sua cena social:
evoluiu para a “simplicidade descolada”, um novo tipo humano aparentemente mais
“consciente”, antenado e sintonizado aos novos tempos mais politicamente
corretos e sustentáveis.
Essa sua
nova roupagem, esse verdadeiro coxinha 2.0 é o protagonista de uma série de
programas da grande mídia e seguido por um séquito de fiéis jovens que se distribuem em inúmeras áreas onde exibem seus requintados gostos pela
“simplicidade”: gastronomia, bebidas, futebol, bicicletas, moda etc.
Ele pode
parecer à primeira vista inofensivo pela sua simplicidade e despojamento nos
seu modo de trajar, gostos e opiniões, mas não se engane: como o termo desse
novo espécime da fauna urbana designa, sua simplicidade é descolada, quer
dizer, meticulosamente estudada nos seus efeitos. Por isso acumulou um grande
capital cultural (ajudado pela grande mídia que o celebriza diariamente) o que
acabou, paradoxalmente, convertendo-se num signo de distinção. A simplicidade
torna-se cara e valorizada no mercado cultural.
Rodrigo Hilbert: a simplicidade descolada na cozinha |
Como veremos
abaixo, essa simplicidade descolada se manifesta cultural e esteticamente pelo
gosto ao retro e de hábitos culturais do passado, mas não num sentido
criativamente irônico e debochado como fazia o pastiche dos pós-modernos.
Agora, é no sentido do apego ao tradicional. Eles são os novos
tradicionalistas.
Politicamente,
manifesta-se no novo tipo de conservadorismo: o da anti-política, por achar a
política muito complicada e, por isso, obscura, suspeita e, por isso, corrupta.
O simples
descolado aspira pela simplicidade por ver nela pureza e inocência.
A nova gastronomia descolada
Diga adeus a
chefes franceses, nomes de pratos rebuscados e a gastronomia ornamental. Osso
buco, rabada, dobradinha, pertences de feijoada outrora rejeitados como língua e orelha
entram em cena como requintadas iguarias.
Rodrigo
Hilbert é o melhor exemplo dessa simplicidade descolada. Modelo, ator e
figurinha carimbada no glamour das festas em publicações sobre celebridades, em
sua programa na GNT Tempero de Família
Hilbert bravamente maneja panelas de ferro, fogões a lenha e churrascos de fogo
de chão antes de uma pelada regada a cerveja com os amigos – amizade é uma
dessas coisas simples da vida.
Jeans
(variando para bermudas cargo), camiseta, sandálias havaianas e barba
estudadamente por fazer compõem essa tipologia do simples descolado.
Como Hilbert
diz, era fascinado pela “comidinha” (o diminutivo é sempre importante no léxico
desse espécime urbano-midiático, como, por exemplo, “bistrozinho”) da sua avó
na infância em Santa Catarina, e, por isso, acabou se apegando à simplicidade
da cozinha brasileira.
Expressões
como armazém ou empório passam a designar com um ar retro mercados com produtos
de alto valor agregado como produtos naturais, vegans, casas de queijos, vinhos
ou pequenos mercados hortifrúti “orgânicos” para a classe média alta – coisas
naturais e simples, porém, bem caras.
Felicidade está na simplicidade
A simplicidade descolada almeja a felicidade através da pureza e inocência |
Rapidamente
o marketing capturou essa tendência do simples descolado. “O que faz você pra
ser feliz?”, pergunta a rede Pão de Açúcar, com um jingle cantado por Clarice
Falcão - ela própria uma musa dos simples descolados, com um jeitinho tímido e
com um look de brechó. Rende o seu tributo musical ao estilo que inspira os
simples descolados: a música indie-folk norte-americana.
Como os
comerciais do Pão de Açúcar mostram, a felicidade está na simplicidade (correr,
tomar chuva, rir de qualquer coisa etc.) e a decoração das lojas da rede dizem
simbolicamente isso com cenários das lojas simulando rusticidade e os
entregadores com boina francesa
tradicional pedalando bicicletas com baú dianteiro, emulando os entregadores do
comércio de início do século XX.
Mas, é com o
comercial do Itaú que a simplicidade descolada adquire tons mais épicos: “#issomundaomundo”,
vemos em hashtag na comunicação do banco. O mundo mudará a partir de ações
simples e básicas como andar de bike, contar estórias para crianças ou ouvir
música. Aliás, a verdadeira música que agrada o simples descolado é a ideia de
que cada uma faz a sua parte nas coisas simples do dia-a-dia.
E por que
isso soa como música? Por que é simples e básico, sem a obrigação do simples descolado ter de se comprometer em
ações coletivas de transformação como militância política. No máximo um like no Facebook ou a confirmação em um
evento na rede social do qual se esquecerá no próximo post. Ele passou a ser um
“agente de mudança” porque “tomou uma atitude”.
“Eu fiz a minha parte”
Mudar o mundo é uma coisa simples? |
“Eu fiz a
minha parte” é o mantra da simplicidade descolada, repetido para qualquer tema
que exija posicionamento como meio ambiente, política, trânsito etc. Por um
lado foge da pecha de alienado por supostamente ter consciência da pauta dos
grandes problemas sociais e, ao mesmo tempo, se esconde nas supostas pequenas
ações que mudam o mundo, como se o Todo fosse a simples soma das partes –
bom... mais aí discutir isso é muito complicado para um simples descolado.
Podemos
especular que a simplicidade descolada é uma reação das classes médias à
ascensão da chamada classe C ao consumo de itens antes restritos como o automóvel,
restaurantes, shoppings e aeroportos. Se agora os novos egressos na sociedade
de consumo almejam ostentar marcas e grifes, as classes médias reagem ao tornar
desejáveis a simplicidade, o básico e o consumo “consciente”.
Essa simplicidade meticulosamente requintada e estudada já conta com guardiões de controle de qualidade da "tradição" da simplicidade como, por exemplo, em reality shows gastronômicos na TV como MasterChef da Band ou Cozinheiros em Ação do GNT. Cozinheiros
amadores são desafiados a fazer pratos populares como galinhada goiana, moqueca
de pirarucu ou risoto caipira e julgados por chefs famosos que passam a ditar o
padrão de qualidade da “simplicidade”.
Numa grande
manobra etimológica, o popular torna-se “tradicional”, como uma nova commoditie de grande valor agregado no
mercado cultural.
A psicologia da simplicidade descolada
Simplicidade descolada: campo fértil para a anti-política |
O ponto de
partida do perfil psicográfico do simples descolado é o desejo por pureza,
bondade e simplicidade infantil, ingênua e dependente. Aspira por renovação,
positividade, se reinventar e entrar na terra prometida. Ele possui um sentido
místico de unidade (obviamente explorado pela comunicação do Itaú com a filosofia
do “faça sua parte” para mudar o mundo) onde a inocência vem de valores de
integridade e não da experiência com o mundo externo. Ele quer ter apenas uma
“atitude”, apenas “ser” e não fazer.
Por isso
torna-se o campo fértil onde germina a semente das soluções aparentemente
simples: o discurso da corrupção, a hostilidade à política, a panaceia da
sustentabilidade como ideia que renovaria o mundo, o apego às novas tecnologias
onde tudo possa ser resolvido à distância com apenas um clique.
O problema é
que o simples descolado, embora pareça ser antenado e crítico, desconhece que
por trás dessas soluções simples subjaz um mundo público da complexidade, das
lutas, correlações de forças e interesses bem concretos de classes e
corporações. Assim como por trás das brilhantes interfaces descoladas dos
gadgets tecnológicos existe uma batalha cibernética entre códigos fontes e
algoritmos entre grupos que lutam pelo controle e poder.
Concluindo,
esse novo tipo urbano, hoje tão paparicado pelo marketing político e de consumo,
é mais uma mutação do conservadorismo que, afinal, sustenta todos os sistemas.
Nos anos 1970 tivemos o tipo alienado:
aquele que simplesmente ignorava a política em pleno momento da ditadura
militar e das perseguições e torturas. Preferia consumir a disco music ou qualquer novidade da cultura pop importada dos EUA.
Nos anos 1980, tivemos os Yuppies: jovens profissionais urbanos ambiciosos, materialistas e
consumistas. Tinham uma posição politica até clara – o ultra-neo-liberalismo
representado por Ronald Reagan, Margaret Thatcher e Rambo, personagem
cinematográfico do Silvester Stallone.
Nos anos
1990 surgem os Mauricinhos com suas
camisetas Lacoste. Apoiavam FHC e as políticas de privatizações para garantir o
sonho da telefonia móvel e da Internet discada...
Chegando aos
2000, vimos o surgimento dos Roberts, loucos
por celebridades e o desejo de ver e ser visto, produto psicográfico da era dos
reality shows.
E agora
vemos a ascensão dos coxinhas e a sua rápida evolução “sustentável”: a
simplicidade descolada.
Postagens Relacionadas |