Entre as palavras e as coisas existe uma
estrutura fixa, pronta, que tenta capturar a dinâmica das coisas para
congela-las em mitos. Com a mídia esportiva não seria diferente: a cada Copa do
Mundo entra em funcionamento um discurso bipolar pronto para explicar os
fracassos do futebol brasileiro – ora nos falta racionalidade, organização e
planejamento; ora precisamos retornar “às nossas raízes” sufocadas pela mesma “modernidade”
defendida na Copa anterior. Essa mitologização do futebol teria duas funções:
neutralizar o acaso e a incerteza, eliminando a natureza lúdica do esporte, e
evaporar a História – deixar de fora desse discurso bipolar os fatores
midiáticos e político-econômicos que parasitam o futebol.
Na postagem anterior discutíamos que a goleada
acachapante sofrida pela Seleção no jogo contra a Alemanha tinha sido mais do
que um evento, mas o sintoma de fatores de influência midiática (“efeito
Heisenberg” e esquizofrenia midiática – clique
aqui). Mas nessa discussão acabamos achando outra coisa: descobrimos que a
imprensa esportiva parece ter um discurso pronto a cada fracasso do futebol
brasileiro em copas.
Embora seja um discurso estruturado e fixo, também é
dinâmico como fosse um pêndulo semiótico: ora os jornalistas especializados
culpam as derrotas pelo atraso, desatualização e falta de “modernidade” do
futebol brasileiro (que chamaremos de “fase 1”), ora falam de um excesso de
pragmatismo que faria a Seleção abandonar suas “raízes” (“fase 2”).
A grande virtude da Semiótica, em especial da
Semiologia do francês Roland Barthes que procurava denunciar as mitologias por
trás dos discursos que fingem apenas descrever o mundo, é mostrar que entre as
palavras e as coisas existe uma estrutura fixa, pronta, que tenta capturar a dinâmica
das coisas para congela-las em mitos - leia BARTHES, Roland. Mitologias.
Seleção brasileira sob a pressão das manifestações nas ruas? |
Esse discurso ou mitologia sobre os fracassos do
futebol brasileiro construída, como veremos abaixo, desde a década de 1970
ganhou novo élan a partir das grandes manifestações de rua iniciadas em junho
do ano passado: hino nacional cantado à capela pelos jogadores na Copa das
Confederações e comentaristas esportivos sugerindo que a Seleção sentia nos
ombros uma suposta comoção nacionalista nas ruas. Isso foi o ponto de partida
de um roteiro cuja conclusão vimos na goleada sofrida de 7 X 1 para a Alemanha.
Seleção alemã deu sentido ao discurso bipolar
Em todo discurso o sentido é construído por um
código bipolar ou binário - homem/mulher, preto/branco, bom/mal, singular/plural,
sinônimo/antônimo etc. Como não poderia deixar de ser, esse discurso lentamente
construído nos últimos meses para se materializar na Copa do Mundo necessitava
de uma oposição significante para que o discurso fechasse em si mesmo e
comunicasse um sentido. A Seleção foi estereotipada como um time passional e ao
mesmo tempo confiante na explosão da genialidade de um jogador, Neymar Jr. – a atualização
da mitologia da “raiz” do futebol brasileiro na suposta “genialidade” e
“espontaneidade” dos nossos jogadores. Mas precisava de um signo oposto para se
tornar completo. E ele surgiu para a imprensa esportiva: a Alemanha.
Desde antes da Copa o noticiário começou a destacar
o planejamento da Alemanha com a construção de um resort em Santa Cruz Cabrália
(BA) e a comissão técnica alemã como referência em organização. Os alemães
começavam a surgir como heróis civilizatórios ao trazer empregos e benefícios
para a comunidade indígena local.
Seleção da Alemanha: os novos "civilizadores" do Brasil |
Iniciada a Copa, falou-se em “jogo coletivo”,
“diversidade de talentos” nos alemães. De repente, o discurso da genialidade do
craque no futebol brasileiro começou a ser chamado de “fase monotemática”
(jornal O Globo 07/07) de um esquema
dependente do individualismo. Surpreendentemente, a miscigenação racial (um dos
pilares do discurso da “raiz da genialidade” do futebol brasileiro) passou a ser
transferida para a seleção alemã, formada por jogadores de origem turca,
africana, polonesa etc.
No meio da Copa, o canal SporTV e o programa Globo Esporte da TV Globo demonstraram
seu fascínio pela organização e modernidade alemã ao fazer matéria especial
sobre um software chamado Match Insights
desenvolvido exclusivamente para a Confederação de Futebol Alemã para processar
dados em tempo real e avaliar as situações dos jogos. Era evidente a construção
do roteiro: de um lado os velhos assessores técnicos Parreira e Murtosa somados
às emoções à flor da pele da Seleção; do outro a tecnologia, organização,
frieza e planejamento alemães.
O roteiro do atual discurso do fracasso do futebol
brasileiro (repito, escrito pela mídia especializada desde há um ano antes da
Copa) pendeu para o outro lado do movimento do pêndulo: o do atraso, da
desatualização em relação à “modernidade” do futebol estrangeiro.
Tal como o semiólogo francês Roland Barthes
denunciava, esses discursos que supostamente apenas descrevem a realidade, na
verdade constroem elaboradas mitologias. O propósito do mito é afastar a
contingência da realidade, empobrecer, evaporar a História. No caso do discurso
do fracasso da Seleção, afastar da própria natureza do esporte o acaso e o jogo
e, ao mesmo tempo, evaporar a história da estrutura política do futebol em um
discurso fatalista: o Brasil estaria predestinado a perder ou pelo atraso ou
pelo esquecimento das suas supostas origens míticas. Nada a dizer sobre CBF, a
promiscuidade entre empresários de jogadores e comissões técnicas e o monopólio
midiático capaz de fazer a Seleção refém do “Efeito Heisenberg” – sobre isso clique
aqui.
Para entender a montagem desse discurso que
encontrou sua “confirmação” na desclassificação da Seleção, vamos colocar em
perspectiva histórica a construção das suas duas fases.
Fase 1: o fim da era mítica dos tricampeões
Brasil X Holanda em 1974: o início da semiótica bipolar da mídia |
Se o tricampeonato na Copa do México em 1970 caiu
como uma luva para o governo militar do general Médici e a ideologia política
do “Brasil Grande”, a desclassificação da Seleção para a Holanda em 1974 destoou
o script dos ideólogos do sistema da ditadura. De repente o discurso do futebol
tricampeão baseado na genialidade do craque (a rapidez de Pelé, a malícia de
Garrincha, a explosão de Jairzinho) já não mais funcionava. O Brasil almejava
ser “Grande”, o chamado milagre econômico criava uma nova classe média ávida
por consumo de valores e tecnologias estrangeiras.
Temos a construção da fase 1 do movimento pendular: ninguém tinha percebido, mas o
futebol brasileiro teria ficado ultrapassado. Expressões como “laranja
mecânica” para designar a temível Holanda, “futebol total”, “futebol força”
etc. fez mudar a imagem dos europeus, outrora considerados “cinturas duras”
pelo futebol tricampeão. Alemães e holandeses tinham treinamento, condicionamento,
organização e planejamento. E nós, gênios mimados e boêmios. Os técnicos
estavam mal informados e os jogadores autossuficientes acreditando que o drible
e o “futebol arte” pudessem resolver tudo – leia “O Rei
do futebol, vítima de ilusão, faleceu ontem”,
Folha, 11/07/1974.
Em uma ditadura militar baseada na ideologia tecnocrática,
nada mais lógico que um militar preparador físico chegar ao cargo de técnico:
Claudio Coutinho. Depois de frequentar laboratórios de estresse humano da NASA
e conhecer pessoalmente o famoso criador do Método Cooper de avaliação física,
começa a aplicar no Flamengo e depois na Seleção conceitos como “jogador
polivalente”, “overlapping”, “ponto futuro” e “ponto de explosão”. E sessões
longas e exaustivas de condicionamento físico.
Fase 2: de volta às “raízes”
Claudio Coutinho: agora o Brasil esqueceu as "raízes" |
Com a desclassificação na Copa de 1978 na Argentina,
temos a construção da fase 2 desse
discurso pendular: agora, a Seleção estava “fora do estilo brasileiro”.
Coutinho era acusado de “valorizar o esquema, em detrimento do alto nível dos
nossos jogadores” – “O
saldo negativo da seleção de Coutinho”
(Folha, 24/07/1978). A “europeização” do futebol teria feito o Brasil esquecer
suas raízes, o “futebol arte”.
Convertida novamente em uma seleção de craques com
Zico, Sócrates, Falcão, Júnior e companhia, com as desclassificações de 1982 e
1986 com Telê Santana a imprensa especializada pula para o outro lado do
pêndulo: o futebol arte leva a “autossuficiência”, “mania de triunfismo” e “indisciplina
tática”. Agora, faltava pragmatismo e racionalidade.
Acusada de perder por “apenas jogar bonito”, a
Seleção passa à chamada “Era Dunga” de futebol aguerrido e forte na marcação –
o pragmatismo que teria faltado à “Era Telê”. Se na derrota na Copa de 1990 a
imprensa especializada passou para a fase
2 (retornar às origens do futebol arte), a filosofia dessa vez foi mantida
e bem sucedida na Copa de 1994. Embora a crítica especializada falasse em final
sem espetáculo e um futebol feio cuja final foi decidida nos pênaltis,
curvou-se ao “pragmatismo” da “Era Dunga” – leia “Conquista de título
inédito consagra a era Dunga” (Folha, 18/07/1994).
Com a desclassificação na Copa 2006 a mídia
especializada pendeu para a fase 1: o
técnico Parreira que privilegiava um “esquema que não funcionava” e jogadores
muito preocupados com “posse de bola”. E no fracasso de 2010 passa-se para a fase 2: o enaltecimento da Espanha com o
futebol de “toque de bola”, “toque refinado” e “futebol bonito” que resgatava o
que Brasil teria perdido. Passamos para o outro lado: o “futebol arte” deveria
ser recuperado pelo Brasil. Os estrangeiros Holanda e Espanha teriam provado
isso.
De
volta à Fase 1
Brasil X Alemanha: de volta para o futuro |
E agora em 2014 testemunhamos o retorno à fase 1 desse discurso da racionalização
dos fracassos: estamos desorganizados, desatualizados (precisamos de um técnico
estrangeiro com uma função civilizatória, assim como os alemães que trouxeram
benefícios à comunidade indígena na Bahia) e somos muito passionais
concentrados apenas no craque sem pensar no coletivo...
Assim como os sistemas mitológicos contemporâneos
denunciados por Roland Barthes, esse discurso fixo que a mídia põe em
funcionamento a cada Copa do Mundo teria duas funções bem definidas:
(a) Neutralizar do futebol a essência do jogo e do
lúdico em todo esporte: o acaso. O discurso do jornalismo deve racionalizar,
explicar, justificar. Se a graça do jogo é o desafio do talento contra o acaso,
o elemento lúdico do jogo deve ser aprisionado nessa polarização entre ora a apologia
da razão, ora o enaltecimento da emoção;
(b) Função ideológica de fazer evaporar a História:
nessa polarização obsessiva entre razão e emoção, fica de fora o questionamento
de estruturas historicamente criadas que parasitam o futebol – mídia e a
organização político-econômica do esporte.