A mídia parece ter um discurso pronto para
cada traumática desclassificação nas Copas, em um movimento semioticamente pendular:
ora diz que falta “modernidade”, ora defende “tradição” ao futebol brasileiro. Mas
dessa vez, nada explica a anomalia de um 7 X 1. Pelo menos os comentários da
imprensa especializada foram unânimes: não foi placar de um jogo de futebol
profissional. Quem lida com semiótica e sincromisticismo sabe que quando
eventos tornam-se bizarros e anômalos deixam de ser meros acontecimentos para
se converterem em sintomas. No caso dessa partida, sintoma de dois fatores
extra-esportivos: o chamado “efeito Heisenberg” (a patologia de toda cobertura midiática
extensiva) e a esquizofrenia de uma mídia sob o desgaste de politicamente ter
que sabotar o evento e ao mesmo tempo faturar comercialmente.
Holanda 2 X Brasil 0, o jogo na Copa de 1974 que desclassificou o Brasil
para as finais; Itália 3 X Brasil 2, jogo que tirou a Seleção da Copa de 1982;
Holanda 2 X Brasil 1, jogo que eliminou a Seleção nas quartas na Copa da África
do Sul em 2010.
É interessante perceber nesses momentos de aguda comoção nas crises da
chamada “pátria de chuteiras” a construção de um script midiático para
racionalizar as catástrofes. Um script pendular que vai do discurso da necessidade
de “modernização” ao do “retorno às raízes”: de um lado a ideia de que o
futebol brasileiro está ultrapassado diante da modernidade europeia (a
revolução tática do “carrossel holandês” em 1974 ou a crítica ao futebol bonito
da seleção em 1982, mas sem a eficiência e aplicação europeias) e do outro um
futebol que ficara tão pragmático que teria esquecido “a arte” – como no caso
da comemoração do “fim da Era Dunga” acusada de abandonar o “futebol bem
jogado” em 2010. Ora a modernidade, ora a tradição.
Após o placar de 7 X 1, bizarro em se tratando de confrontos
profissionais de seleções de futebol em uma semifinal, o discurso da grande
mídia vai para o oposto do pêndulo, quatro anos depois do “fim da era Dunga”: a
Seleção está ultrapassada, o futebol modernizou-se e o técnico Felipão vive do
passado. Fala-se em contratar técnicos estrangeiros como o espanhol Pep
Guardiola que teria supostamente criado uma “revolução tática” no Barcelona.
7 X 1: sintoma de um efeito midiático |
Claro que esses dois momentos do movimento pendular do script semiótico
da mídia são resultantes das intensas discussões táticas de escalações ideais
sobre quem deveria entrar ou sair. Mas dessa vez o que ocorreu no Mineirão em
BH foi para além de qualquer fórmula de explicações. Faltou meio campo? Neymar
Jr. e Thiago Silva fizeram falta? Os jogadores alemães são mais frios e
equilibrados? Nada explica a anomalia de um 7 X 1. Pelo menos os comentários da
imprensa especializada foram unânimes: não foi placar de um jogo de futebol
profissional.
Quem lida com as conexões entre semiótica e sincromisticismo sabe que
quando eventos tornam-se bizarros e anômalos deixam de ser meros acontecimentos
para se converterem em sintomas. No
caso dessa partida, sintoma de algum fator extra-esportivo.
O enigma fisionômico do Felipão
Talvez aquela opinião dentro da imprensa especializada que mais se
aproximou desse fator foi o jornalista José Trajano do canal ESPN. Em um debate
ao vivo com Juca Kfouri e PVC logo após a goleada, Trajano criticou a imprensa
esportiva brasileira (incluindo os próprios interlocutores que, perplexos,
ouviam) de se limitar nos últimos dias a ficar discutindo o semblante do
técnico Felipão - se estava tenso, calmo, como se os jornalistas tentassem,
através da leitura da fisionomia, adivinhar a escalação do jogo decisivo.
E Felipão sabia disso: risinhos, ironias, respostas escorregadias,
enigmáticas. O técnico, como todos os jogadores e comissão técnica, demonstravam
estar conscientes e atentos aos seus rendimentos midiáticos – impacto,
performance, repercussão etc.
O script midiático começou a ser desenhado durante a semana: de um lado a
cobertura jornalística da seleção alemã destacando o planejamento, matéria
especial sobre um software que estava sendo usado de forma experimental pela
comissão técnica, jogadores tranquilos caminhando pelas areias da praia de
Santa Cruz Cabrália (BA) e interagindo com nativos etc. Signos da modernidade e
da “germanidade” – frieza, cálculo etc.
Mídia destaca software exclusivo da Alemanha: o script do "germanismo" |
Ao contrário, do lado brasileiro tensão, passionalidade, comoção e
homenagens emocionadas a Neymar Jr. Somado aos hinos nacionais cantados à
capela, close up nos olhos marejados
de lágrimas dos jogadores e micronarrativas de morte e ressurreição (Thiago
Silva desenganado por médicos no passado e agora capitão do time e a redenção
do goleiro Júlio César após o fracasso na Copa anterior), temos a finalização
do discurso do “moderno versus antigo”, agora usado para racionalizar a derrota
acachapante.
Efeito Heisenberg
Quanto mais a mídia elaborava seu trabalho semiótico, mais a Seleção
correspondia a essa construção estereotipada, criando aquilo que Neal Glaber
chamou de “efeito Heisenberg”, um efeito secundário produzido pelas coberturas
midiáticas: se o principal efeito da
onipresença midiática é transformar quase tudo que era noticiado em entretenimento,
o efeito secundário é forçar quase tudo a se transformar em entretenimento para
atrair a atenção da mídia – sobre isso clique
aqui.
O termo “efeito Heisenberg” é uma referência ao
princípio da incerteza da mecânica quântica de Werner Heisenberg (1901-1976):
quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição
necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras
palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem
influenciá-la.
Granja Comary: um estúdio de TV a céu aberto |
Desde o início da Copa esse discurso já estava em
desenvolvimento, mas seu desdobramento foi acelerado às vésperas do jogo contra
a Alemanha com o drama de Neymar Jr. Com o circo midiático 24 horas em volta da
Granja Comary, a concentração acabou se tornando um gigantesco estúdio a céu
aberto com personagens que respondiam prontamente às câmeras e jornalistas:
jogadores cantando o hino segurando a camisa de Neymar Jr., o apresentador
global Luciano Huck interrompendo treinamento para realizar um sonho de um
deficiente físico e fazer jogadores chorarem entre outros episódios.
Chegou-se ao momento paradoxal que a mídia pautou
acontecimentos que ela própria criou: questionou-se um suposto desequilíbrio
emocional de um time que chora antes de decisões, como se tudo isso já não
fosse um “efeito Heisenberg” em que os próprios jogadores entraram de cabeça –
como da mesma forma falavam de uma “Copa surpreendente” depois deles próprios
terem “previsto” que o evento seria um caos.
O 7 X 1: sintoma da despressurização virtual
Sem terem consciência os jogadores entraram em um
espaço virtual, um discurso autista da grande mídia que mostrava o que ela
mesma criava e, por outro lado, a seleção que prontamente confirmava o
personagem previsto no script midiático. Nesse mundo virtual de pregnância
entre o script e a realidade, os jogadores certamente sentiam a excitação de
ver cada gesto repercutido pela confirmação midiática do personagem do script.
Portanto, o bizarro placar pode ser encarado como o
sintoma de uma espécie de “disbarismo”, o mal da descompressão quando um
indivíduo é exposto a uma rápida redução da pressão do ar que rodeia o corpo
como na despressurização de cabines de aviões ou ascensão rápida à superfície
de mergulhadores: confusão cerebral e paralisia.
A tragédia estava anunciada pelo último ato do
script: ao enfrentarem o personagem semioticamente oposto (a Alemanha da
“germanidade” e “modernidade”), ocorreu nesse momento a violenta
“despressurização” e disbarismo – a cena virtual repentinamente se desfez
quando os jogadores foram arrancados do conforto de um sistema virtualmente autista.
Caíram na real em um só golpe. Black out,
vanish point!
A esquizofrenia midiática
Máfia dos ingressos da Copa: vai sobrar para a Seleção? |
Mas esse sintoma expressou também outro traço da
grande mídia: a esquizofrenia. Como dispositivo de comunicação que se converteu
em oposição política diante da ineficácia dos partidos de oposição ao Governo,
conviveu doentiamente com o duplo papel: faturar publicitariamente com a Copa
do Mundo e, ao mesmo tempo, detoná-la e no seu íntimo aguardar por uma “bala de
prata” que inviabilizasse ou pelo menos prejudicasse o evento.
Mas nada aconteceu e não só a Copa do Mundo começou
como foi um êxito esportivo e organizacional. Restou a situação ainda mais esquizofrênica
de secar” a seleção e, ao mesmo tempo, enaltecê-la como garoto-propaganda das
verbas publicitárias.
O estúdio de vidro da SporTV e a academia de ginástica da Granja Comary: Efeito Heisenberg |
Essa condição patológica passou a produzir tanto
desgaste na opinião pública e queda de audiência que a TV Globo (ponta de lança
da grande mídia) teve que reformular a estética de programas e telejornais com
muita autorreferência e metalinguagem. Acusada de manipulação, passou
obsessivamente a perseguir a estética da transparência como forma de simular
que a Globo nada tinha a esconder. Primeiro, a grotesca simulação de reunião de
pauta no Fantástico, como se o telespectador pudesse discutir o viés das matérias
pautadas – sobre isso clique
aqui.
O estúdio de vidro da SporTV no Rio de Janeiro para
a cobertura da Copa foi o último esforço em criar signos de transparência –
acreditar que a transparência literal contaminaria a transparência informativa.
Sincronicamente, em um exemplar “efeito Heisenberg”, a Granja Comary também se
tornava transparente como, por exemplo, a academia de ginástica envidraçada
para que todos pudessem ver os jogadores nas bicicletas ergométricas. O que só estimulou os jogadores a performarem
o script construído laboriosamente pela mídia.
O auge dessa esquizofrenia se verificou a cerca de
48 horas antes do jogo fatídico. O programa Fantástico
da TV Globo faz matéria especial (reapresentada em um resumo no Jornal Nacional no dia seguinte) sobre a
máfia dos ingressos e a FIFA e, de passagem dentro do espírito do “testando
hipóteses”, falam de suposto envolvimento de “alguém de dentro da concentração
da seleção” e que “poderia ser um jogador”.
Isso dá o que pensar, principalmente de uma emissora que turbinou os
protestos Anti-Copa.
Enquanto isso na ESPN o jornalista PVC sustentou em
um debate (com direito a imagens de arquivo enquanto falava) que a seleção
“sentia um peso sobre os ombros” com o nacionalismo das “manifestações nas
ruas” para explicar o “descontrole emocional” dos jogadores.
Por isso a anomalia do 7 X 1 não foi um evento
esportivo. A bizarra goleada só pode ser compreendida como um evento onde as
mídias não se limitam apenas a transmití-lo, mas também criam uma relação
simbiótica onde discurso e realidade, signo e referência se misturando até
chegar a surreal imagem proposta pelo escritor Jorge Luís Borges: um mapa que acaba
se confundindo com o próprio território ou, no caso da Seleção, os personagens
que se confundem com o próprio script ficcional.
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