Em “O Teorema Zero” (The Zero Theorem, 2013)
Terry Gilliam retorna aos temas das produções anteriores “Brazil, O Filme”
(1985) e Os 12 Macacos (1995), porém em um tom mais intimista e filosófico:
enquanto espera uma misteriosa ligação telefônica que revelaria o verdadeiro
sentido da vida, um analista de dados e programador é obrigado a comprovar
matematicamente o contrário: que um dia todo Universo acabará sugado por um
buraco negro e a vida não tem qualquer sentido ou propósito. Esse é o projeto
secreto de uma gigantesca corporação, comprovar matematicamente o “Teorema Zero” –
zero é igual a 100%. Gilliam vai abraçar alegremente esse niilismo gnóstico como
a última esperança de libertação – zero é igual a 100% se aproxima da filosofia
do filme “O Clube da Luta” de David Fincher: depois que perdermos tudo é que estaremos livres. Então encontraremos as
respostas dentro de nós mesmos.
Quem não se lembra daquela situação nas aulas de álgebra
e equações de segundo grau na escola onde você olhava para o enunciado da
equação e intuitivamente já sabia o valor de X? Você escrevia X = 15, mas o
professor não aceitava a reposta, embora correta, pois exigia que demonstrasse
o método resolutivo que fez chegar ao resultado.
Pois é exatamente sobre isso que trata o novo filme
de Terry Gilliam O Teorema Zero onde
Christoph Waltz faz um “triturador de entidades” (Qoen Leth, um analista e
programador de dados) que é incumbido de montar computacionalmente uma
gigantesca equação cujos enunciados comprovem que 0 = 100%, ou seja, que todo o
Universo um dia vai ser encolhido em uma pequena singularidade e engolir a si
mesmo em um buraco negro. Colocado em termos filosóficos, ele deve comprovar
matematicamente que a vida não possui qualquer sentido ou propósito, embora
intuitivamente suspeite (e procure negar) isso.
O torturante conflito interior de Qoen em ser
obrigado a participar de um projeto corporativo que vai contra todas suas
esperanças lembra a famosa resposta do filósofo alemão Theodor Adorno
(integrante da chamada Escola de Frankfurt) sobre o sentido da vida: “se você
faz essa pergunta é porque intuitivamente suspeita que esse sentido não
exista!”, proferiu certa vez o filósofo.
Gilliam ainda faz uma irônica alusão ao mundo em que
vivemos imerso numa enxurrada de dados da Internet como a própria comprovação
da ausência de sentido que homem procura através da tecnologia. Lembrando a
velha Teoria da Informação que diferenciava mensagem/dados de informação, em O Teorema Zero as redes digitais nada
mais fornecem do que uma caótica avalanche de dados onde caos e incerteza
dominam. Internet é 100% de dados e mensagens, mas 0 de informação, uma
quantidade caótica de dados aleatórios à espera de um filtro que reduza a
incerteza.
Qoen vive trancafiado em uma igreja abandonada
“triturando dados”, tentando encontrar a ausência de sentido, paradoxalmente
por meio de algoritmos e equações que tentam encontrar o único sentido da
existência: a sua ausência de sentido.
No mais filosófico filme da carreira de Terry
Gilliam, o diretor dá um tratamento mais sofisticado à ideia central do antigo
filme O Sentido da Vida do grupo
inglês de humor Monty Python (do qual fazia parte): a vida é totalmente banal e
sem propósito transcendente. Seu sentido se resumiria unicamente a “tentar ser bom, evitar comer gordura, ler um bom livro
e caminhar regularmente”, como terminava concluindo cinicamente o filme de
1983. Paradoxalmente, Gilliam vai afirmar o sentido da vida por meio da sua
própria negação.
Na filosofia, é a chamada via negativa: de um lado a Teologia Negativa (afirmar a existência
de Deus por meio da sua negação) e do outro a Dialética Negativa (afirmar a existência de um sentido implica na
intuição da sua inexistência). Essa espécie de niilismo filosófico acaba
lembrando a máxima de Tyler Durden no filme O
Clube da Luta “Depois que perdermos tudo é que estaremos livres” – isto é, a
inexistência de sentidos ou propósitos divinos ou metafísicos nos daria a
liberdade de construirmos um sentido realmente humano para a existência.
O Filme
O protagonista Qoen Leth parece o resultado do
cruzamento do herói Sam Lowry (Brazil, O
Filme) e James Cole (Os 12 Macacos):
um programador operário de uma gigantesca corporação chamada Mancom (“Dá
sentido às boas coisas da vida”, diz o slogan) angustiado à espera de um
telefonema que supostamente lhe dirá o sentido da vida. Pela necessidade de ter
que aguardar em casa esse chamado, Qoen propõe ao seu superior trabalhar em
casa, fazendo upload do seu trabalho diretamente para o gigantesco mainframe da
empresa – ou o “sexto sentido”, como diz o Administrador (Matt Damon).
“Não há lógica na perda de tempo de trabalharmos
isolados em cubículos quando poderíamos aumentar a produtividade trabalhando em
casa”, argumenta Qoen para o Administrador. Como condição para aceitar o pedido
de Qoen, a empresa o coloca no projeto secreto Teorema Zero. A partir de então,
Qoen ficará em casa diante do seu console retro-futurista lidando com equações
tridimesionais, mas sempre a espera da ligação que supostamente lhe daria todas
as respostas.
Interconectividade gera isolamento e solidão
Dessa maneira Gilliam inicia o filme com o tema de
como o poder da interconectividade tecnológica atual pode produzir ao mesmo
tempo isolamento e solidão. O homem depositaria na tecnologia toda a esperança
de encontrar um propósito na existência, quando na verdade o isola cada vez
mais.
Câmeras da Mancom monitoram 24 horas o trabalho
domiciliar de Qoen, e uma psiquiatra on
line tenta manter sua sanidade mental à distância. Muitos críticos
observaram que O Teorema Zero parece ser o terceiro filme de uma trilogia composta
por Brazil, O Filme e Os 12 Macacos. Gilliam parece revisitar
todos os temas das produções anteriores (máquinas de vigilância, o homem contra
o Estado, imaginação versus realidade etc.), porém com uma abordagem mais
intimista e filosófica.
Para o diretor, o protagonista Qoen é a síntese do
homem pós-moderno: vive em uma igreja abandonada infestada de pombas e tudo ao
redor é formado por cacos de iconografias de um mundo que parece ter
desmoronando e o sentido desaparecido. “Chateado com o Budismo? Não suporta
filosofia religiosa? Então a Igreja do Batman pode ser a resposta”, diz um dos
anúncios publicitários customizados que acompanham as pessoas nas calçadas no
estilo do filme Minority Report.
A religião transformou-se em mais uma mercadoria à venda,
associada a ícones pop. A mais simbólica imagem do filme é a estátua de Jesus
crucificado no interior da igreja abandonada, cuja cabeça foi substituída por
uma câmera de vigilância da Mancom, sempre monitorando o trabalho de Qoen. O
poder de vigilância e controle da Igreja foi substituído pela dominação
tecnológica das corporações. Em busca de um propósito da existência não mais
através da religião, mas agora pela tecnologia, inadvertidamente o homem pulou
da frigideira para cair no fogo.
O jogo perverso de Terry Gilliam
O jogo ironicamente perverso que Gilliam propõe no
filme é esse: Por que a Mancom foi entregar o projeto Teorema Zero, que
pretende matematicamente provar a ausência de sentido da existência, nas mãos
de uma pessoa que mora numa antiga igreja e, tal qual um monge, procura um
sentido religioso em tudo?
Terry Gilliam vai encontrar a resposta na via
negativa da filosofia, como ele próprio admitiu em entrevista:
“Não há sentido para a vida: minhas células se dividem, as coisas estão acontecendo, as estruturas estão sendo formadas, outras coisas estão comendo outras coisas. É o maravilhoso caos organizado. Então o que significa que existe para a vida é o que você dá à sua vida. Você tem que fazer o trabalho, você não pode ficar esperando por um telefonema que vai dizer-lhe. O que eu sempre pensei que era engraçado em “O Teorema Zero” foi que o filme está tentando provar uma negativa positivamente. Essa é a coisa estranha quando você está tentando provar que 100% deve ser igual a zero, ou zero deve ser igual a 100%. Construímos essas estruturas que se mantêm caindo aos pedaços, que não conseguem produzir resultado”(The Meaning of Life: Terry Gilliam on the Zero Theorem in “The Skinny”).
Por que o Administrador (Deus?) entregou o mais
secreto e importante projeto da Mancom para um homem perturbado por recorrentes
imagens mentais onde vê o universo sendo sugado por um gigantesco buraco negro?
Por que um homem como Qoen que tenta encontrar o sentido religioso da
existência através da tecnologia (telefone e Internet) é ao mesmo tempo tentado
por um site de sexo à distância (“sexo bio-telemétrico”) oferecido por uma
mulher que conheceu numa festa?
Para Gilliam, Deus escreve por linhas tortas o
caminho da sua própria negação. Quando o homem busca o sentido da existência é
porque secretamente sabe que esse sentido não existe. O Teorema Zero abraça alegremente esse niilismo gnóstico como a
última esperança de libertação – 0 é igual a 100% é a filosofia do filme Clube da Luta: quanto perdermos todas as
esperanças de respostas, então as encontraremos dentro de nós mesmos.
Ficha Técnica |
Título: O
Teorema Zero
|
Direção: Terry Gilliam
|
Roteiro:
Pat Rushin
|
Elenco: Christoph Waltz, Mélaine Thierry, Matt Damon, Tilda Swinton,
David Thewlis
|
Produção:
Voltage Pictures
|
Distribuição:
Imagem Filmes
|
Ano: 2013
|
País: EUA,
Reino Unido
|
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