Quem não se recorda da personagem Sofia (Penélope Cruz) em Vanilla Sky (2001) despertando o
protagonista David Aymes aprisionado em uma simulação de realidade em um sonho
lúcido? Ou de Trinity (Carie-Anne Moss) que, graças ao seu amor, fez Neo
descobrir que era O Escolhido em Matrix
(1999)? Ou ainda da personagem Sylvia que fez Truman descobrir que sua vida era
uma prisão dentro de em um gigantesco reality show em Show de Truman (1998)? Personagens femininos fortes, sem história,
que surgem de repente na vida do protagonista para despertá-lo do sono das
ilusões que o prendem a esse mundo. Mulheres que muitas vezes sacrificam o seu
amor e a si mesmas pela redenção do herói e de toda humanidade.
Pois essas mulheres por trás de todos esses heróis do gnosticismo pop
cinemático descendem mitologicamente do personagem gnóstico de Sophia, o aeon que vai despertar no homem a
fagulha de luz interior (a gnose) para conectá-lo de volta à Plenitude. Mas
cinematograficamente, são devedoras de um cult
do cinema onde a mulher foi elevada a outro patamar, depois de décadas de
mulheres objetos, femme fatales e pin-ups: o filme francês L’Immortelle (1963). Aqui o diretor
Alain Robbe-Grillet (romancista e roteirista indicado ao Oscar no filme de
Allain Renais The Last Year at Marienbad
- 1961) eleva a mulher a um patamar metafísico - mas sem deixar de ser carnal e
provocante.
Uma mulher misteriosa, sem nome, história ou nacionalidade, que surge na
vida de um homem não para destruí-lo (como faziam as femme fatales), para seduzí-lo (como as pin-ups) ou para se entregar de forma perversa (as objetos). Ao contrário, através do amor
e mistério ela despertará no protagonista a consciência crítica para as formas
de ilusões que nos prendem a esse mundo material.
L’Imortelle é de uma safra de filmes gnósticos cults que
estavam sendo lançados naquele momento, como 8 ½ de Fellini (1963), filmes essencialmente baseados em narrativas
de personagens Estrangeiros, isto é, personagens metáforas da condição humana
estrangeira de alienação e estranhamento em relação à existência.
O Filme
Todos no filme têm nomes incertos, então vamos identificá-los por
iniciais: “A” viaja para Istambul, na Turquia, para assumir um emprego de
professor. Ele tem um mês de folga para se familiarizar com o país. E um
passeio ele se perde e solicita ajuda para “L” que lhe oferece carona em um
elegante conversível. “A” acaba se apaixonando por “L” pela sua sensualidade e
aura de mistério por causa de uma nebulosa conexão com um homem elegante de
óculos escuros e sempre acompanhado por dois dobermans. Esse homem parece
sempre acompanhar “L” à distância. “L” desaparece e inicia uma busca frenética
por mesquitas, vielas e boates. Ele acaba encontrando-a para depois perdê-la de
forma trágica.
O possível nome de “A” pode ser André; e é ainda menos certo que o nome
de “L” seja Lucille ou Laine. E se isso não fosse bastante confuso, há uma
suspeita de todos fazerem parte de uma rede de tráfico de escravas brancas...
Mas tudo não passa de suspeitas e aparências.
L’Imortelle é um thriller erótico sobre o engano,
aparências e ilusões. “L” se oferece para “A” como guia turística através de
Istambul, só para chamar a atenção da falsidade: para ela toda a cidade é uma
gigantesca cenografia. Sob a aparência de “recuperar” as construções milenares,
na verdade a cidade se adaptaria aos estereótipos dos visitantes ocidentais: tapetes
voadores, mistérios, misticismo, fachada recuperadas sem haver nada por trás
etc.
“L” desconstrói sistematicamente Istambul na medida em que se aprofunda
nos seus mistérios: o comerciante que vende uma peça exclusiva e “muito antiga”
e que depois outra cópia aparece na vitrine da loja; “L” finge entender turco,
mas como “N” saberá disso se nem ele entende turco? E quem é ele homem com os
dobermans? Um cafetão que faz parte da rede de escravas brancas?
A sensual “L” feita pela atriz Françoise Brion é um cifra sem substância
(nacionalidade e língua indefinida), escondendo-se atrás do sorriso sedutor e
voz de sonho. Ela é uma provocação em um labirinto cinemático no qual o
protagonista e o espectador se perdem: o filme não flui numa narrativa linear,
mas é construído em um círculo sob o efeito acumulativo de repetições. Flash
backs se sobrepõem e se repetem e cada momento percebemos um novo detalhe para
tentarmos montar o quebra cabeça.
Nada é o que parece ser: Istambul, as mesquitas (na verdade iscas dos
comerciantes para atrair turistas ocidentais), a srta. “L” e, acerta altura,
até o próprio professor coloca em xeque sua identidade diante de espelhos. As
cenas são cortadas abruptamente no que poderíamos considerar como erros de
continuidade.
O filme é assim propositalmente construído para mostrar a fugacidade e
imperfeição das memórias, a tal ponto de desconstrução que tudo parece ser
sonho e ilusão.
A realidade é feita para nos enganar
Paradoxalmente, em um mundo de ilusões a única pessoa em quem o
protagonista tenta se apoiar será em uma mulher com aparência misteriosa (será
que ela também é uma ilusão?) que lhe dá verdadeiras aulas sobre o ilusionismo
de uma cultura (a muçulmana) que ironicamente atrai os ocidentais naquilo que
eles têm mais prazer: o apego das ilusões dos estereótipos e simulacros. Danças
do ventre, véus sendo retirados e toda a atmosfera erótica que perpassa o filme
são armadilhas para atrair os ocidentais.
Outra ironia é que o protagonista é um professor, aquele que faz da
racionalidade a sua profissão. Aqui
começa a narrativa gnóstica do filme: L mobilizará todo o seu discurso e
sedução erótica para subverter, minar e desmontar todo o tropos da Razão.
A aproximação da mitologia de Sophia fica clara com a figura ambígua de “L”:
ela desmistifica todas as aparências de Istambul para “A” mas, ao mesmo tempo,
parece fazer parte de tudo aquilo com a suspeita de fazer parte do tráfico de
escravas brancas. “L” parece ser igualmente prisioneira daquela realidade.
O mito de Sophia
Na mitologia gnóstica, Sophia (na tradição gnóstica
simboliza simultaneamente o aspecto feminino de Deus e a alma humana) foi um
“aeon” responsável pela transição do imaterial para o material, do numenal ao
sensível, causado por uma falha – uma paixão que produziu um filho ( o
Demiurgo, Yaldabaoth, o “filho do caos”). Sophia decai no mundo material
conseguindo infundir alguma fagulha espiritual no cosmos físico produzido pelo
Demiurgo. Por isso Sophia torna-se prisioneira mas, ao mesmo tempo, confere ao
mundo físico dinamismo, vitalidade e sentido pela luz espiritual infundida por
Sophia. Ela consegue ascender de volta à Plenitude. Porém,
observa os homens (inconscientemente portadores dessa fagulha de Luz) e deseja
que eles alcancem a gnose, se libertem do mundo físico e alcancem o mundo
espiritual.
Por isso, a construção da personagem “L” simultaneamente sensual e
etéria, concreta e abstrata. O filme dá pouca informação sobre a personagem:
durante um passeio na floresta “A” pede para “L” seu endereço. Ela pede algo
para escrever seu endereço e uma caneta. Escreve alguma coisa sobre, mas joga o
papel fora, dizendo-lhe para não se preocupar, porque o que escreveu era falso.
Depois que ela desaparece na metade do filme, “A” procura o papel com o suposto
endereço, mas quando o encontra, está em branco. “L” nunca escreveu nada sobre
ela. Sempre o filme aponta para a irrealidade e falsidade de tudo.
E para completar a nítida influências das fontes gnósticas em L’Imortelle, os protagonistas são
típicos Estrangeiros: personagens que convivem com uma constante sensação de
alienação e estranhamento. Eles são seres carnais, amam e são seduzidos
eroticamente, mas são prisioneiros em uma Istambul abstrata, ilusória, repleta
de armadilhas sensoriais. Assim como a realidade fora do cinema, onde nossa
vitalidade, desejos e fantasias são capturados pelo jogo de aparências e
abstrações da indústria do entretenimento.
A ironia consciente do diretor e escritor Allain Robe-Grillet é que ele
também faz parte dessa indústria. Por isso a metalinguagem na qual o espectador
é jogado: Istambul é uma ilusão, assim como também parece ser o labirinto que
edição do filme propõe. Nada é o que aparenta ser, assim como a vida.
Ficha Técnica |
Título: L’Immortalle
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Direção: Alain Robbe-Grillet
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Roteiro:
Alain Robbe-Grillet
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Elenco: Françoise
Brion, Jacques Doniol-Valcroze, Guido Celano
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Produção:
Cocinor, Como Films
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Distribuição:
Grove Press
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Ano: 1963
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País: França
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