Um aplicativo que
promete para o usuário sonhos lúcidos. É o “Aurora”, criado por uma start up
californiana e previsto para ser lançado no segundo semestre desse ano, que
promete tornar os sonhos tão produtivos e eficientes que farão a terça parte da
vida que passamos dormindo valer a pena. O neurogadget Aurora é um sintoma
tanto da cultura atual dos aplicativos que cria nos usuários uma falsa ilusão
de racionalidade e planejamento de onde nem os sonhos parecem escapar; e de uma
agenda tecnognóstica que une
neurociências, ciências computacionais e Inteligência Artificial com o
propósito de efetuar a cartografia e topografia da mente com objetivos de
manipulação e controle social.
Em postagem
anterior discutíamos como o cinema parece antecipar uma espécie de agenda
tecnocientífica – sobre isso clique
aqui. Dessa vez, os diversos filmes que abordaram o tema dos sonhos lúcidos
(Vanilla Sky, A Origem, Sonhando Acordado, entre outros) parecem ter se
antecipado ou inspiraram um aplicativo criado pela IWinks, uma start up de San Diego, nos EUA: o “Aurora”,
aplicativo que promete ao usuário criar sonhos lúcidos a partir de um
dispositivo que mede as ondas cerebrais e o movimento dos olhos.
O sonho lúcido
ocorre no momento em que o sonhador começa a ter uma relação de estranheza com
o fluxo dos acontecimentos oníricos e passa a questionar a própria realidade.
Consciente que se encontra num sonho, passa então a interferir na lógica
onírica. O aplicativo “Aurora” supostamente promete criar essa situação para o
usuário a partir do momento em que o dispositivo percebe os movimentos REM e a
alteração das ondas cerebrais, enviando jogos de luzes e sons personalizados
para o usuário que, sem despertar, perceberá que está num sonho - veja abaixo o video promocional do aplicativo.
O Aurora é usado
com uma fita na cabeça que mede as ondas cerebrais e os movimentos dos olhos,
funcionando com uma ligação Bluetooth a uma app para smartphone.
O texto
promocional do produto que estará disponível para o mercado em junho desse ano
é eloquente: “A ideia de sonho lúcido tem sido perseguida por séculos. Nesse
estado tudo é possível: zoom através do espaço, combater dragões cuspidores de
fogo ou tornar-se presidente, tudo a partir do conforto e segurança da sua
própria cama” – sobre essa notícia clique
aqui e aqui.
Assim o neurocientista
e engenheiro elétrico co-criador do Aurora, Dany Schoonover, descreve sua
experiência com o aplicativo: “Eu vi as luzes e percebi que estava sonhando e,
como eu estava caindo, ao invés disso eu comecei a voar”. Para ele, os estudos
apontaram uma menor incidência de pesadelos. Com essa possibilidade de controle
dos sonhos, o sistema promete melhorar a qualidade do sono: “passamos um terço
de nossa vida dormindo. Por que não tirar o máximo proveito desse tempo?”,
questiona a IWinks.
Para Schnoover,
além da melhora da qualidade do sono e diminuição do stress, haveria uma
melhora do desempenho das atividades reais: “ao executar uma tarefa em um sonho
lúcido, como jogar basquete ou tocar piano, aumenta sua capacidade de jogar ou
tocar na vida real”.
Mas já existem
opiniões especializadas críticas ao projeto como a Dra. Rachel Salas, diretora do
Centro de Distúrbios do Sono John Hopkins. Para ela o produto apenas explora o
fascínio das pessoas pelos sonhos e que o dispositivo nada mais faz do que
insuflar ainda mais o problema da insônia.
Pode ser que tudo
seja especulação, um mero factoide promocional de uma start up californiana, mas a ideia por trás desse aplicativo é um
sintoma não só das transformações atuais da tecnociência mas principalmente da
forma como os aplicativos estão invadindo o nosso cotidiano criando uma
verdadeira cultura, uma forma de pensar e compreender o mundo a partir do ponto
de vista de um usuário de gadgets.
A ciência se transforma em gagdgets e aplicativos
Na pós-modernidade
a ciência transformou-se em tecnociência e a tecnologia em gadgets.
Filosoficamente isso significa dizer que no passado o desenvolvimento científico
era impulsionado por aquilo que podemos chamar de topos projetado, uma consciência inquieta que queria enxergar
longe, transpor o estado atual do sonhador para uma utopia futura realizada
pela ciência. A ciência era impulsionada por uma ideia de totalização, aspirava
a um projeto de planejamento global seja social, urbana etc. Uma invenção como,
por exemplo, o automóvel não era uma mera criação de um gadget, mas implicava
numa concepção global de organização espacial por meio do planejamento urbano,
industrial e de transportes.
Hoje, esse topos projetado está sendo substituído
por um logos concêntrico. A tecnologia
até continua sofisticada, porém perde o seu caráter de planejamento,
totalização e controle. A Ciência abandonou
qualquer projeto que aspirava à universalidade, ao planejamento da totalidade
global, social ou urbana. Ao assumir a forma de tecnociência, ela privatiza e
individualiza seus propósitos. Abandona o macro para concentrar-se no micro: gadgets tecnológicos sofisticadíssimos e
prédios inteligentes conectados com velozes fibras óticas enquanto as ruas e o
entorno público são dominados pelo caos da poluição, trânsito e lixo.
A
tecnologia transforma-se em gadget:
as pessoas lidam com sofisticados aparelhos a partir de complexas telas,
manipulam telematicamente eventos distantes, perscrutam, vigiam e controlam.
Porém, diferente das utopias e distopias de controle e totalização do passado,
apenas intervêm pontualmente, fragmentariamente, o que só fomenta o caos e a
desordem.
E
isso cria uma forma de pensar por gadgets fragmentários: o crime e violência
crescem nas cidades? Blinde-se o carro. O trânsito está caótico? Baixe um
aplicativo para android como o Waze de mapeamento de trânsito. Você está
estressado e já acorda cansado? Compre o neurogadget Aurora? E assim por
diante... Dessa maneira os aplicativos e gadgets criam uma falsa sensação de
racionalidade, de segurança e planejamento. Suas ações pontuais e circunscritas
à esfera privada do usuário renunciam a qualquer busca das causas públicas ou
macrosociais da violência, do caos urbano e da péssima qualidade de vida. A ciência
converte-se em tecnociência materializada por gadgets de ação pontual, fragmentada e privatizada, acelerando
ainda mais o caos e desordem.
Um sono sem sonhos
O fascínio humano pelos sonhos e o seu controle |
Se os sonhos foram
o leit motiv de muitos insights científicos e motivador das
utopias através quais a história da ciência se orientou, agora essa
matéria-prima das descobertas deve ser disciplinada e orientada pelos mesmos
princípios de eficácia e produtividade do mundo real: aprender a tocar piano ou
jogar basquete com mais eficiência.
Curioso efeito de
retroalimentação: uma espécie de sono sem sonhos que retira da ciência uma das
suas principais inspirações e que, por isso, acaba se convertendo em gadgets
para tentar solucionar desordens provocadas por um mundo igualmente sem sonhos.
O antigo
movimento centrífugo das descobertas científicas em que as energias da
imaginação nos conduziam para lugares “onde nenhum homem jamais esteve”
inverte-se em movimento centrípeto, de contração em direção ao centro, ao presente.
Isso é o que estamos chamando de logos
concêntrico que, acreditamos, é a essência dessa cultura dos aplicativos e
gadgets.
Portanto, pouco
importa se esse neurogadget promete mais do que pode cumprir. Somente a sua
concepção e interesses dos usuários pelo fascínio de controlar seus próprios
sonhos (e o que é pior, confundir sonhos lúcidos com sonhos controlados) por si
só já representa um sintoma de um duplo fenômeno: de um lado, um subproduto da
agenda tecnognóstica que une neurociências, ciências computacionais e
Inteligência Artificial com o propósito de efetuar a cartografia e topografia
da mente com objetivos de manipulação e controle social; e do outro a cultura
cotidiana dos gadgets e aplicativos que prometem trazer racionalidade e ordem à
vida privada e manter distância do caos e desordem social.