quinta-feira, março 20, 2014

Documentário "O Abraço Corporativo": o jornalismo está nu

Uma das maiores barrigas da grande mídia passou despercebida para o grande público e na época sua repercussão acabou restrita a veículos especializados em jornalismo e revistas acadêmicas. O documentário “O Abraço Corporativo” (2009) do jornalista Ricardo Kauffman descreve o passo a passo da criação de uma “pegadinha” sobre um suposto executivo de Recursos Humanos que estaria introduzindo no Brasil uma revolucionária terapia motivacional baseada nos poderes curativos de um simples abraço. Explorando os vícios de uma imprensa baseada no jornalismo declaratório que está sempre em busca de bons personagens, o suposto representante da chamada “Confraria Britânica do Abraço Corporativo” expôs as mazelas de um jornalismo onde a ambição de ascensão na carreira de jornalistas está na relação direta com a sua precarização profissional.

O filósofo Louis Althusser dizia que ideologia é quando as respostas precedem as questões. Se isso for verdade, então a prática jornalística se tornou a maior indústria de produção ideológica, mais perigosa que o entretenimento porque opera sob a chancela da informação e da realidade. Raramente o jornalista “descobre”. Na maioria dos casos ele sempre encontra o que procura: tenta confirmar uma ideia, uma hipótese ou, então, encaixar acontecimentos a um certo script que já tem em mente.

E para mostrar que não está enganado, a melhor forma é produzindo um personagem por meio de uma calculada busca de “desconhecidos”. Seus rostos na tela podem ser desconhecidos, mas seus personagens são familiares. Um atentado? Procure um bombeiro heroico e uma pessoa que por um lapso do destino não estava no local da explosão porque acordou naquela manhã cinco minutos mais tarde. Uma manifestação? Procure o líder (mesmo que ele não exista) ou aquele manifestante que saiu às ruas pela primeira vez. Greve de ônibus? Procure uma mulher simples e ofegante, desesperada porque seu patrão pode despedi-la caso não chegue ao trabalho.


Foi pensando nisso que o jornalista Ricardo Kauffman investiu cinco anos na produção de um documentário que provocou uma das maiores “barrigas” (gíria jornalística para designar uma grave bobeada de um jornalista que pensa estar publicando um “furo” quando não passa de engano ou má fé do próprio repórter) da imprensa brasileira. Convidou o ator Leonardo Camillo e criou um personagem que seria irresistível para os jornalistas: Ary Itnem Whitaker (um anagrama para a palavra “mentira”) que desempenharia o papel de um executivo de Relações Humanas que estaria no Brasil representando uma suposta Confraria Britânica do Abraço Corporativo (CBAC).

Kauffman montou esse personagem a partir de um pastiche de ideias da bibliografia motivacional corporativa (criou uma tal de “Teoria do Abraço” como técnica de cura para a “inércia do afastamento” provocado pelas novas tecnologias) e de vídeos que anos antes circularam na Internet mostrando pessoas que ofereciam “abraços grátis” em cidades americanas e europeias como terapia para humanizar as metrópoles aproximando as pessoas.

Criou um evento público para divulgar a Teoria do Abraço Corporativo e postou o ator na Avenida Paulista em São Paulo com um cartaz no qual pedia abraços e fornecia o endereço na Internet do site da CBAC.

Não sem antes registrar em um cartório em Barueri/SP um documento no qual descreve a CBAC como “uma invenção que visa demonstrar à sociedade que, muitas vezes, ideias inconsistentes e/ou inverídicas ganham espaço na mídia. (...) criamos o personagem Ary Itnem, a Teoria do Abraço Corporativo, a CBAC e o documentário ‘O Abraço Corporativo’”. Ou seja, a ironia dessa barriga é que a verdade da razão social da CBAC estava disponível para consulta pública, assim como o próprio anagrama do nome do personagem. E nenhum repórter pensou em checar a procedência da tal Confraria e sequer da própria teoria.

Através do marketing viral, o vídeo de Itnem transformou-se em grande sucesso, fazendo o factoide chegar nas redações da grande mídia. Com o sucesso viral no Youtube, Ary Itnem se transformou em um personagem, uma isca perfeita para o jornalismo declaratório sempre em busca de tipos perfeitos que se encaixem nos scripts pré-estabelecidos pelas editorias.
A grande mídia mordeu a isca de um personagem que se
encaixava nos scripts pré-estabelecidos pelas editorias

O documentário mostra passo a passo como Ary Itnem e sua Teoria do Abraço Corporativo chegaram a programas de rádio e TV e nas entrevistas concedidas a jornais, revistas e portais de Internet. Depois disso o próximo passo: a “teoria” inventada passou a ser aplicada como prática motivacional por departamentos de recursos humanos e Ary Itnem passou a ser convidado a dar palestras em empresas que terminavam com todos trocando abraços, sempre ovacionado pelas plateias.

“O Abraço Corporativo” foi apresentado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2010. As imagens do efeito dominó midiático produzido pelo personagem foi um vexame geral. Por razões óbvias, a imprensa fez pouco alarde, mantendo a discussão sobre o documentário em veículos especializados consumidos apenas por profissionais do Jornalismo e publicações acadêmicas.

Precarização do Jornalismo


No documentário vemos entrevistas com profissionais e acadêmicos que se dividem em duas posições opostas: de um lado nomes como o jornalista Bob Fernandes e o consultor de empresas Thomas Wood que denunciam a barrigada como o resultado de uma evolução perversa das empresas jornalísticas e as relações promiscuas entre mídia e ambiente corporativo; e do outro lado nomes como os professores da ECA-USP Manuel Chaparro e Eugenio Bucci e o jornalista Heródoto Barbeiro (uma das vítimas da “pegadinha”) que tentam recolher os pedaços e salvar a dignidade da grande mídia.

Para Bob Fernandes as razões da barrigada do Abraço Corporativo estariam na década de 1990: “a mídia estranhamente acreditava no que escrevia nos anos 1990, nos anos Fernando Henrique Cardoso. Por isso, se endividaram para se lançarem em aventuras como TV a cabo, companhias telefônicas e satélites. Quando se caiu na real com a maxidesvalorização da moeda, a mídia se viu quebrada”. Resultado: perda de qualidade nas redações jornalísticas convivendo com as novas tecnologias em tempo real, aceleração dos processos de produção de notícia, precarização profissional e afrouxamento dos controles dos critérios jornalísticos.

Ao contrário, Chaparro e Bucci tentam justificar que a “barriga” do abraço corporativo se deve a um jornalismo ainda em crescimento em uma democracia que ainda se desenvolve após um longo período de regimes autoritários.

O personagem em cena


O que impressiona nos primeiros contatos dos repórteres e produtores com Ary Itnem é a forma como tentam moldar seu personagem através de recursos ficcionais nas captações de imagens para as matérias jornalísticas. Repórteres se transformam em diretores de cena orientando gestos, simulando exercícios de relaxamento em um parque, repetindo tomadas até que vídeos e fotografias ficassem perfeitos e encaixassem na pauta pré-estabelecida pelos editores etc.

Há momentos impagáveis em que Ary Itnem posa abraçado em árvores para fotógrafos, fazendo pseudoposes de Yoga, meditando e olhando para o céu ao som dos cliques da máquina fotográfica. Além do desaparecimento do conceito de fotojornalismo (cada vez mais as fotos são posadas e produzidas) há uma bizarra situação nesses momentos do documentário. Uma estranha metaficção: a ficção do abraço corporativo sendo encaixando em narrativas ficcionais inventadas pelas redações dos jornais e revistas.

O jornalista Ricardo Kaufmann ofereceu ao jornalismo declaratório um personagem estereotipado perfeito, pronto para ser encaixado nas metanarrativas do clichê do executivo estressado que descobre os valores zen da filosofia oriental e do empreendedorismo ocidental ao supostamente criar um serviço para os RHs de empresas. O abraço zen-corporativo.

Após ter uma conversa pelo telefone com uma jornalista representando o personagem Ary Itnem, a certa altura o ator Leonardo Camillo desabafa: “sabe o que eu senti nas perguntas dela? Ela queria uma reposta minha pra ver se encaixava na matéria dela!”.

O Jornalismo está perdendo a credibilidade?


Após assistirmos ao documentário, podemos chegar a seguinte projeção em relação ao futuro: a grande mídia está perdendo progressivamente o capital da credibilidade acumulado em tempos heroicos do chamado “jornalismo literário”, gênero de resistência à censura dos governos militares de veículos como Realidade, O Pasquim e Jornal da Tarde.

O jornalismo literário brasileiro foi inspirado no chamado New Journalism dos EUA surgido na década de 1960 que misturava a narrativa jornalística com a literária como em publicações como a New Yorker – Tom Wolfe, Norman Mailer, Truman Capote foram os principais expoentes. Narrativas imaginativas onde eram privilegiados personagens utilizando citações e o ponto de vista subjetivo desses protagonistas dos fatos.  Matérias eram lidas como ficção, mas não eram ficção: as vezes a apuração das fontes e pesquisas duravam cinco anos, como no caso de “A Sangue Frio” de Truman Capote.

É exatamente isso que entra em declínio com as novas tecnologias que comprimem o tempo entre a coleta dos dados, redação, edição e publicação: não há tempo para apurações como destaca o jornalista Juca Kfouri no documentário.

As experiências inspiradas no New Journalism fizeram a imprensa brasileira acumular um capital de credibilidade com matérias críticas e algumas de importância histórica, textos que procuravam colocar personagens importantes em destaque como contraponto a um período de censura. A busca de personagens acabou se transformando em clichê e se deteriorou em jornalismo declaratório sem checagem de fontes ou pesquisa.

Além do mais há um fator subjetivo do jornalista em meio a um ambiente de trabalho cada vez mais precarizado: a ambição do jornalista parece estabelecer relação direta com a sua insegurança profissional. A busca de um bom personagem (e não mais de uma boa história) muitas vezes é vista como um veículo para a projeção profissional.

Mais do que isso, muitas vezes os jornalistas ficam fascinados pelos personagens, principalmente por aqueles poderosos e bem sucedidos. Admiração e até inveja pelo personagem corrói qualquer tipo de isenção resultando em perigosas relações turbinadas ainda pela falta de malícia e má formação de jovens profissionais.


Ficha Técnica


Título: O Abraço Corporativo
Diretor: Ricardo Kauffman
Roteiro: Ricardo Kauffman
Elenco: Leonardo Camillo, Heródoto Barbeiro, Prof. Dr. Manuel Chaparro, Prof. Dr. Mauro Wilton, Juca Kfouri, Bob Fernandes, entre outros
Ano: 2009
País: Brasil



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