Ao contrário de 2013, esse ano há poucos filmes entre os indicados ao
Oscar que abordam temas mitológicos, místicos ou religiosos. Se no ano passado
tivemos “Django Livre”, “As Aventuras de Pi”, “O Mestre” entre outros, no Oscar
2014 temos apenas o filme “Gravidade”, “Ela” e a animação japonesa “Vidas ao
Vento” de Hayao Miyazaki (“A Viagem de Chihiro”, 2001). Por que essa mudança
conceitual entre os filmes indicados ao prêmio máximo da indústria do cinema?
Será que a expressão “É a economia, estúpido!” sintetizaria essa guinada de
Hollywood para esse ano?
Comparado com a premiação do Oscar do ano passado, a presença de filmes
indicados com temas mitológicos, religiosos, místicos e esotéricos é
sensivelmente menor. Em 2013 tínhamos filmes como Django Livre (o encontro do spaghetti-western de Tarantino com
temas bíblicos e vingança), Indomável
Sonhadora (a jornada do herói de uma menina lutando contra a ameaça do caos
e das águas), O
Mestre (a história da espiritualidade contemporânea através da ascensão
de uma seita chamada Cientologia) e ainda As
Aventuras de Pi (onde os relatos de diversas religiões nada mais são do
que signos diante de um cosmos hostil e violento que cria no protagonista uma
nova experiência do sagrado).
Ao contrário, nesse Oscar 2014 temos apenas Gravidade, cujo filme possui um poderoso núcleo místico-religioso
envolvendo morte e renascimento simbolicamente associado à lei da gravidade
(para ler sobre o filme clique aqui) e a animação japonesa The Wind Rises (Vidas ao
Vento) do conhecido animador Hayao Miyazaki (A Viagem de Chihiro, Oscar de melhor animação em 2003).
Vidas Ao Vento
Em Vidas ao Vento, Miyazakai
faz uma abordagem indireta dos temas fantásticos e mitológicos usados em filmes
anteriores: acompanha a trajetória de Jiro Horikoshi, o designer de uma das
máquinas mais mortíferas da Segunda Guerra Mundial, o avião de combate japonês
Mitsubishi A6M Zero. O fascínio por aviões (e todo o significado espiritual que
reveste esse aparelho) e o sonho de criar algo belo corrompido pela arma de
guerra e a máquina militar do imperialismo japonês.
Tal como nas animações passadas que exploram a natureza sombria da
humanidade, em Vidas ao Vento a exploração é litoral: o desperdício de talento
e sonhos de um fabricante de armas.
Ela
Outro filme já “Em Observação” pelo blog é o filme Ela, indicado ao prêmio de Melhor Filme, do diretor Spike Jonze.
Nesse filme, o diretor parece retornar ao tema do filme Quero Ser John Malkovich (1999), só que de uma outra forma: se no
filme de 1999 o protagonista (um titereiro fracassado) tenta conquistar seu
amor e ser alguém na vida através de um avatar representado pela mente do
próprio ator John Malkovich, em Her
um escritor deprimido acaba equipando seu computador com um sistema operacional
que possui uma inteligência artificial que aprende e evolui baseado nas
repostas que recebe, entonações de voz etc. Conectado a um fone de ouvido, o sistema
chama-se Samantha que será um avatar aperfeiçoado pelas interações com o
protagonista.
O filme levanta diversas questões tanto sobre o conceito de inteligência
artificial como em relação à febre atual de aplicativos que parecem cada vez
mais definir a identidade e os relacionamentos: será que os autores do programa
Samantha de fato conseguiram criar realmente algo que associa inteligência e
emotividade, ou somos nós que rebaixamos os nossos conceitos de inteligência,
amor e emoção para que aceitemos essas máquinas e aplicativos que invadem nosso
cotidiano? Ou será que os relacionamentos humanos são assim mesmo, onde
idealizamos o outro segundo os nossos desejos e caprichos? No final as máquinas
e softwares seriam apenas espelhos da nossa própria infantilidade?
Por isso, o filme Her aproxima-se das discussões sobre o
que chamamos de “tecnognocticismo”, motivação mística que estaria por trás do
desenvolvimento tecnológico atual marcado pela convergência das ciências
computacionais, neurociências, Inteligência Artificial e psicologia cognitiva.
Projeto místico-tecnológico de encontrar a transcendência espiritual através de
um atalho tecnocientífico, fazendo o ser humano encontrar a imortalidade
através da digitalização da consciência e inteligência humanas.
O Lobo de Wall Street
Outro filme que
também está “Em Observação” pelo blog é O
Lobo de Wall Street do diretor Martin Scorsese, também cotado ao Oscar de
Melhor Filme. Por trás de um delírio de três horas em ritmo frenético com
drogas, bebidas, mulheres luxo e todo tipo de fantasias (anões, carros e
animais), está um tema que vai além da imoralidadeda vocação especulativa de
Wall Street: como o poder do dinheiro é capaz de moldar a realidade. De certa
forma, Scorsese retorna ao tema do filme Cassino
(1995) onde no meio do deserto de Nevada, um gangster constrói em Las Vegas uma
realidade de sonhos através de fichas de jogos.
Um ex-corretor da
Bolsa faz fortuna nos anos 1990 explorando o fugaz mercado financeiro sem
pudor, culpas ou remorso porque, no final, tudo é volátil e imaterial. “A única
coisa real é a comissão do corretor”, diz a certa altura Leonardo DiCaprio. Em
postagens anteriores o blog já tratou desse tema do fetichismo do dinheiro e a
imaterialidade da realidade econômica ao analisar o documentário Trabalho
Interno (2010) e o filme Margin
Call – O Dia Antes do Fim (2011).
“É a economia, estúpido!”
Mas por que essa
escassez de filmes que tratam de temas místicos e religiosos entre as
indicações do Oscar 2014? Conhecendo o modus
operandi da indústria hollywoodiana e os critérios político-ideológicos que
regem a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas podemos arriscar uma
hipótese: como disse certa vez James Carville sobre a campanha bem sucedida de
Bill Clinton: “É a economia, estúpido!”.
Michelle Obama em link ao vivo no Oscar 2013: esse ano não será necessário |
No ano passado, em
plena grave crise e recessão econômica nos EUA, os filmes indicados ao Oscar apresentavam
duas vertentes: de um lado, a propaganda militar e política externa
norte-americana representada nos filmes Argo
e A Hora Mais Escura, inclusive com a
participação com link ao vivo de Michelle Obama direto da Casa Branca
anunciando o Oscar de Melhor Filme para Argo;
e do outro filmes com temática mitológica e religiosa que privilegiavam a
jornada do herói, a esperança e a redenção. Guerra e esperança, duas
matérias-primas para a propaganda de governos totalitários em momentos
difíceis.
Bem diferente
desse ano, com a economia dos EUA dando sinais de recuperação: a propaganda
bélico-militar sai de cena para permitir até que o filme Capitão Phillips aborde a desproporcionalidade entre a força dos
corpulentos mariners norte-americanos e os franzinos piratas somalis.
Certamente, será
ignorado o núcleo central mais crítico explorado por Scorsese em O Lobo de Wall Street (a irrealidade do
próprio sistema econômico que produz o absurdo e delírio) para se fixar no
moralismo da irresponsabilidade de corretores envolvido com drogas e sexo.
Perdem-se os anéis, ficam-se os dedos: ponha no fogo os corretores de Bolsas
para deixar a salvo o cassino global financeiro.
Os temas mais
místicos e religiosos foram colocados de lado para privilegiar filmes sobre o
tema “humano, demasiado humano” de Trapaça,
Philomena, Nebraska e Clube de Compras
de Dallas (golpes, AIDS, filhos perdidos e norte-americanos em busca da “verdadeira
América”). Em épocas de recuperação econômica e de boas perspectivas materiais,
nada como voltar ao cotidiano e esquecer-se das dimensões espirituais. E, como
sempre, um filme “histórico” como 12 Anos
de Escravidão (no ano passado foi Lincoln)
para nos dizer que no passado tudo era muito pior...