Às vésperas de uma
Copa do Mundo no Brasil, fica evidente que existem dois tipos de inimigos do
futebol: os mortais e os morais. Ambos professam uma nova religião em ascensão
graças a ética da penúria favorecida pelo quadro de recessão internacional. Uma
religião que vê a realidade como uma existência dura e triste e que o pecado do
futebol é proporcionar a alienação e fuga dessa verdade. Mas não percebem que na atualidade
o futebol, tanto no estádio como na TV, transformou-se no espelho da decadência
do entretenimento dominical – o futebol não afugenta a realidade, mas, ao
contrário, a reproduz de forma repetida e amontoada. O futebol atual deixou de
ser uma festa de participação popular, um teatro grego ou alguma espécie de
catarse coletiva para ser conectado ao quadro de austeridade global. O futebol
deixou de ser um espaço lúdico de fuga da realidade para ser algo inseparável
do dia-a-dia.
Às vésperas da
realização da Copa do Mundo no Brasil, podemos perceber que existem basicamente
dois inimigos do futebol: os mortais e os morais.
Os inimigos
mortais dizem que o futebol é uma fuga. Para eles nada deve escapar da
realidade. O único tipo de vida reconhecível seria o fardo da vida adulta, o
chumbo da razão. Quem lograr fugir será morto pela inconsistência e
infantilização.
Todavia, os
inimigos mortais não estão só: têm como parentes os inimigos morais. Eles se
diferenciam dos mortais pela maneira mais articulada (político-ideológica) de
fundamentar os argumentos. Consideram que todo mal do futebol não está apenas
em considerá-lo como fuga. Mais do que isso, o futebol incentivaria a fuga da
realidade, o que seria mais grave. O torcedor seria um alienado ou, pior ainda,
um fugitivo das necessidades reais que a realidade reclamaria – políticas,
econômicas etc. Cidadãos evasivos, fugitivos da moral que não viriam o
escândalo de como a educação e saúde estariam sendo esquecidos em nome de uma
política pão e circo em ano eleitoral.
Hostilidade pela vida
A austeriadade econômica imposta pela elite cria a ética da penúria que o futebol midiatizado reproduz |
Tanto os inimigos
mortais como os morais parecem ter uma hostilidade pela vida. Explicando
melhor: eles parecem ter montado uma próspera e rentável religião que explora a
percepção de que a realidade é um bem escasso. Religião que nesse momento é
favorecida pela crise financeira internacional onde a elite mundial pretende
espalhar pelo mundo políticas de austeridade econômica – desemprego, desaquecimento
do consumo interno, suspensão de benefícios e direitos – sobre isso leia
HOUSSEIN-ZADEH, Ismael, “A Guerra dos
Plutocratas é para Impor a Austeridade Global”.
Enfim, essa ética
da penúria chega num momento especial para impulsionar essa nova religião que
explora a Realidade.
Como certa vez o
filósofo Deleuze afirmou, vivemos em um mundo onde os poderes têm interesse em
comunicar, com um ar entristecido, que vivemos em um mundo desagradável.
Tiranos, sacerdotes e sequestradores de almas têm necessidade de persuadir-nos
de que a vida é dura e pesada para diminuir nossas forças e nos tornar
escravos. Mais do que nos reprimir, os poderes têm a necessidade de nos
angustiar através da gestão dos nossos terrores íntimos (leia DELEUZE, G. e
PARNET, Claire. Diálogos, Escuta,
1998).
Mas será mesmo que
o futebol é esse ópio do povo como pretendem os inimigos morais? Será que o
futebol tal como ele se organiza na atualidade em torno dos princípios de
gestão empresarial é mesmo esse alucinógeno que injetaria sonhos de irrealidade
e ferocidade como acusam os inimigos mortais?
Gilles Deleuze: mais do que reprimir os poderes têm a necessidade de nos angustiar |
Como pode
testemunhar qualquer torcedor, na verdade o futebol não afugenta a realidade,
mas, ao contrário, a reproduz de forma repetida e amontoada. O futebol atual
deixou de ser uma festa de participação popular, um teatro grego ou alguma
espécie de catarse coletiva para ser forçosamente conectado a essa ética da
penúria global. O futebol deixou de ser um espaço lúdico de fuga da realidade
para ser algo inseparável do dia-a-dia da cotidianidade.
No sentido
estrito, o torcedor não foge no futebol mais do que poderia dizer de alguém que
foge da esposa chata se afundando no trabalho, ou quem foge da rotina do
trabalho através de uma orgia sexual num motel ou quem foge de um passado
comprometedor por meio das conquistas do dinheiro e do poder. Nesses três casos
não podemos falar de fugas por que os destinos (trabalho, sexo e poder) não são
menos reais do que a procedência (vida conjugal, o emprego e a memória). Tanto
a origem quanto o local de fuga estão encerrados no cerco da Realidade.
Tanto no futebol
como nesses casos de “fuga”, se trata de valorizar um tipo de vida onde a
realidade se restringe a pequenas oportunidades de alegria, pequenas doses de
vivacidade e prazer numa realidade dura de penúria.
Uma olhada na
decadência do entretenimento dominical confirma essa transformação do futebol
em um simulacro tosco do cotidiano, um lugar de desencantamento e de constante
promessa de alegria não realizada. Assim como no dia-a-dia.
O espelho da decadência dominical
O domingo de
futebol deve ser analisado através de dois pontos de vista: o da recepção (o
espectador) e do conteúdo da transmissão ou do esporte em si.
Para muitos torcedores
a tarde de domingo se destina, com uma frequência que a esposa bem conhece, ao
futebol, seja assistindo no estádio ou diante da TV. Senta-se no sofá e ali
fica salpicando sua imobilidade com alguns saltos segundo o compasso dos
acontecimentos mostrados na transmissão do jogo. Pelos interiores da casa trabalha
a esposa entre a vassoura, o gosto de abrir e fechar armários e a sua
impotência em manter as crianças caladas. De vez em quando se ouve, entre a
gritaria, escapando do dormitório ou do corredor, algum suspiro.
Futebol no domingo: prepara a tomada de consciência da segunda-feira |
O que pode passar
pela alma do torcedor nesse momento? Uma cavalgada pela irrealidade? Uma catarse?
As alegrias que
eventualmente a equipe oferece encobrem plenamente a mediocridade cotidiana.
Exceto os seguidores das grandes equipes, o resto aspira menos vencer do que
não ser vencido ou rebaixado para divisões menores do esporte. A tendência de
concentração financeira (auxiliado pela grande mídia com os pagamentos de
transmissão concentrados em poucos clubes) amplia essa alegria do sobrevivente
em um campeonato de pontos corridos onde o prazer da vitória é o mesmo do
alívio de não ter entrado na zona de rebaixamento. A possibilidade de derrota
que toda partida esportiva trás em si é transformada em ética do sobrevivente
onde o desejável é substituído pelo possível. Moral resignada da expressão
“assim é o futebol”, paráfrase do “assim é a vida”.
Quando se levanta
do sofá pelo fim da tensão nervosa, tristemente mareado pela cerveja, licores
ou bebidas mais fortes e roído pela hipercloridria é um homem convencionalmente
preparado para a tomada de consciência de que o dia seguinte é segunda-feira e
que o domingo acabou.
Estádios vazios, retrancas...
Por outro lado, do
ponto de vista da qualidade esportiva do entretenimento oferecido, é um espelho
da decadência dominical. Partidas televisionadas com pequenos grupos rodeados
de vazio nas arquibancadas, primeiros planos de torcedores que saúdam seus
parentes ou erguem cartazes com mensagens em grotescas simulações de bem-estar.
Microfones que são abertos para transformar os débeis gritos das arquibancadas
em vozes possantes para que preencham o constrangedor vazio do silêncio.
Jogadores tropeçando em gramados esburacados ou patinando no barro e poças
d’água.
O depressivo cenário sobrevivencialista do futebol |
Quando
eventualmente surgem jogadores ou times que fogem do espírito
sobrevivencialista com dribles ou táticas arrojadas são logo tratados como
“exóticos”, “laranjas mecânicas”, “carroséis” ou qualquer termo excêntrico, assim
como na vida real tratamos todos aqueles que se desviam da normalidade. Isso
quando não aparecem jogadoras que encarnam a ética da penúria cotidiana e
agridem física e moralmente esses jogadores como “irresponsáveis”.
Futebol como metáfora
Quando o já falecido
Cláudio Coutinho, técnico da seleção brasileira em 1978, falou em “ponto
futuro”, “overllaping” e “polivalência” para descrever esquemas táticos foi
ridicularizado pela crônica esportiva. Na verdade ele foi o profeta, um dos
primeiros sacerdotes da transformação do futebol em extensão da realidade que
ocorreria no futuro. Na década de 1990, o técnico Vanderlei Luxemburgo com seus
ternos e expressões como “qualidade do passe”, “excelência tática” e psicólogos
trazidos para “motivar” times transformou o futebol numa metáfora da rotina
corporativa com seus delirantes “controles de qualidade”.
Dos jogadores que
montavam altares ou acendiam velas nos vestiários no passado aos atuais que
falam em linguagem de gerundismo dos telemarketings e professam a teologia da
prosperidade das igrejas midiáticas neopentencostais, é a distância percorrida
por um esporte que pertencia ao campo do imaginário para, na atualidade, fazer
parte da realidade e da justificação da Ordem cotidiana. Embora o torcedor mantenha
a esperança de que um dia um milagre aconteça e ocorra algum tipo de ruptura,
distorção ou contradição que rompa a Ordem. Isso ainda o faz ficar diante da TV
ou se deslocar com dificuldades aos estádios.
Futebol e a atrofia do imaginário
Portanto,
diferente do que os inimigos morais e mortais do futebol professam, há muito
tempo o futebol deixou de ser alienante e um narcótico da política. A
decadência do imaginário desse esporte não é simplesmente pelo fato de ter sido
simplesmente “mercantilizado” ou ter virado “um negócio”. Se pensarmos dessa
forma entraremos no campo da crítica moral.
Há algo de mais
profundo e filosófico: a atrofia do próprio imaginário e a deterioração da
realidade nas nossas vidas. Para que exista real é necessário que exista uma
réplica no imaginário: para que o trabalho se torne real é necessária a
fantasia do ócio, para que exista a produção industrial (real) deve opor-se a
ela o jogo e a arte, para que exista a realidade religiosa é necessária a
possibilidade da ausência de Deus.
Com a atrofia do
imaginário como uma dimensão que se opunha ao cotidiano, tudo se transformou em
realidade. Não há mais intercâmbio simbólico: trabalho e lazer, razão e
loucura, sociedade e espetáculo, domingo e segunda-feira se fundem num
continuum onde lazer, prazer e loucura nada mais são do que reforços
motivacionais para azeitar a eficácia e eficiência no dia-a-dia de trabalho.
Se os críticos
mortais e morais do futebol apresentam o esporte como uma fantasia irreal, é
para nos fazer crer que o real é tudo aquilo que está ao seu redor, salvando
assim o princípio de realidade que cada vez mais nos deprime e nos afunda na
ética da penúria global que está em ascensão.