Assim como as animações da Walt Disney, Tim Burton tem a habilidade de transformar temas sombrios em entretenimento. Se em Walt Disney são os temas do abandono e separação, no caso de Tim Burton seus filmes transformam o Gótico americano de Edgard Allan Poe e Herman Melville em diversão para que o sonho americano dê risadas de si mesmo. Em “Os Fantasmas Ainda se Divertem” (Beetlejuice Beetlejuice, 2024), Burton retorna aos seus efeitos práticos e brinquedos analógicos para levar o Estranho, o Fantástico e o Sobrenatural para a típica família suburbana disfuncional: se no primeiro filme de 36 anos atrás a protagonista era a filha adolescente melancólica e depressiva, agora temos uma nova filha adolescente – também melancólica e depressiva, mas dessa vez pela ausência materna. Supostamente, a mãe prefere mais os fantasmas aos vivos. E Michael Keaton retorna sensacional ao rançoso e rabugento demônio, convidado a voltar ao mundo dos vivos exatamente pela disfuncionalidade do sonho americano.
O que impressiona nas animações da Walt Disney é como conseguem transformar em entretenimento narrativas recorrentes potencialmente sombrias sobre abandono e separação. Desde a animação Bambi, de 1942.
Com Tim Burton ocorre o mesmo fenômeno: como o diretor conseguiu cavar um nicho em Hollywood no qual conseguiu transformar o gótico, o humor negro e o estranho em comédia e entretenimento.
Tim Burton surge ao estrelato com Os Fantasmas se Divertem em 1988, explorando de uma forma peculiar os elementos do Estranho, do Fantástico e do Gótico: como uma produção de entretenimento daquelas que apareciam na Sessão da Tarde na TV.
O Gótico surgiu na Europa, intimamente associado com o movimento do Romantismo nos séculos XVIII-XIX. Castelos, masmorras, grandes corredores labirínticos através dos quais transitam pessoas ou personagens sobrenaturais e acontecimentos que ocorrem no limite entre o fantástico e o estranho, apagando as fronteiras entre a realidade e o imaginário. Essencialmente, é um gênero que explora o medo do desconhecido, seja diante do sobrenatural (espectros, fantasmas, demônios etc.), seja diante da psicologia do terror – loucura, medo etc.
Nos EUA o gótico deitou raízes em nomes como Edgar Allan Poe, Washington Irving, Herman Melville, até chegarmos ao século XX com H.P. Lovecraft e Stephen King.
Diferente das origens europeias, o Gótico Americano surge em uma sociedade puritana. O Fantástico e o medo do desconhecido se confundem com dramas envolvendo culpa, incesto, a sedução da inocência etc. Porém, a quintessência do subgênero norte-americano é a incapacidade do protagonista gótico de superar a perversidade pelo pensamento racional, sendo sugado pela loucura e paranoia.
O Gótico Americano é o espírito que anima Tim Burton, ao fazer o Estranho e o Fantástico invadirem as vidas familiares puritanas dos subúrbios de classe média como em Os Fantasmas se Divertem (1988) e Edward Mãos de Tesoura (1990) – uma família disfuncional novaiorquina encontra fantasmas num subúrbio e uma criatura desamparada ao estilo Frankenstein é adotada por uma família suburbana de classe média.
Em Os Fantasmas Ainda se Divertem (Beetlejuice Beetlejuice, 2024), Tim Burton retorna ao clássico de 1988 com quase todos os atores do primeiro filme (a exceção é Jeffrey Jones, queimado na indústria cinematográfica depois de ser preso em 2003 por colecionar material de pornografia infantil).
O que vemos é um Tim Burton de volta aos seus brinquedos analógicos dos anos 1980. A carreira do diretor começou como animador e criou uma identidade de Federico Fellini do gótico. Seu brilho artesanal aos poucos foi cedendo lugar ao CGI polido e calculado, fazendo seus filmes perder aquela sensação do artesanal.
Mas em Os Fantasmas Ainda se Divertem Burton está de volta aos seus brinquedos analógicos: animações em stop motion, marionetes em barro e efeitos práticos – repare nos créditos finais os inúmeros nomes de marionetistas e fabricantes de adereços. E de forma impressionante: a cada um minuto ou dois parece que Tim Burton saca de seu bolso um novo brinquedo, sempre fascinante em seus efeitos analógicos.
E de volta à fonte do seu nicho do gótico americano de entretenimento: como habilmente o diretor consegue inserir o sobrenatural na dinâmica de uma família disfuncional: a avó, uma artista performática pós-moderna sem talento; a filha, uma apresentadora de um show de TV sobre fantasmas; e uma filha que odeia a mãe ausente que parece amar mais fantasmas, além de ser uma jovem cética – só acredita naquilo que vê.
Em Os Fantasmas Ainda se Divertem fica ainda mais evidente o truque de Burton em transformar o Gótico e o Estranho numa paródia divertida: a narrativa consegue fazer uma metáfora cínica da ausência parental e dos divórcios da atualidade que, de tão perigosos, podem sugar não só o dinheiro, mas a própria alma.
O Filme
Para quem não estava vivo quando o primeiro filme foi lançado há 36 anos, a ideia básica é que uma adolescente chamada Lydia Deetz (Winona Ryder) e sua família se mudaram para uma casa recém-assombrada por fantasmas desajeitados e ainda não conscientes da sua condição pós vida e a inadvertida invocação do brincalhão demoníaco “Beetlejuice”.
O que o leitor precisa saber, realmente? Lydia Deetz, a adolescente gótica que foi forçada a se casar com o demônio trapaceiro Beetlejuice (Michael Keaton) no original de 1988, retorna agora como uma médium profissional viúva na casa dos quarenta anos, que apresenta uma popular série de TV baseada em Nova York chamada “Ghost House with Lydia Deetz”, e tem uma filha adolescente chamada Astrid (Jenny Ortega, da série da Netflix de Burton Vandinha) que a odeia – Astrid acha que a mãe ausente gosta mais de fantasmas do que da própria filha. Além de não acreditar em fantasmas.
Lydia tem um namorado chamado Rory (Justin Theroux), que também é produtor do seu programa. A madrasta de Lydia, Delia Deetz (Catharine O'Hara), se tornou uma artista de galeria multimídia e influenciadora, o que parece perfeito, considerando quem ela era no primeiro filme – uma fracassada aspirante a artista performática. Mas aqui ela continua com o mesmo descompasso entre um ego desproporcional e uma cruel falta de talento.
Todos eles acabam de volta a Winter River após a morte repentina do marido de Delia, Charles (interpretado originalmente por Jeffrey Jones).
E, claro, todos acabam se envolvendo com Beetlejuice, agora enfrentando a sua própria ameaça existencial – a ex-mulher desenfreada Delores (Monica Bellucci). Delores é um demônio sugador de almas que se casou com “The Juice”, como ele se autodenomina, no século XIV, quando estava roubando os túmulos de vítimas da peste. Ela quer se reunir com ele novamente e está indo para a seção do submundo de Beetlejuice tramando algum tipo de vingança.
Delores é o elemento de enredo através do qual Burton e os co-roteiristas Alfred Gough e Miles Millar (também da série Vandinha) dão ao filme surtos a energia macabra. Principalmente na cena em que seu cadáver dividido em pedaços distribuído em diversos caixotes é apresentado se recompondo membro por membro usando um grampeador.
Aqui Burton faz uma deliciosa metáfora do quão perigosos podem ser os divórcios: da drenagem financeira à drenagem da própria alma.
Esse parece ser o núcleo da estratégia de Tim Burton para transformar o Gótico Americano em entretenimento: o Estranho não está mais em castelos ou mansões mal-assombradas que são de repente invadidas inadvertidamente por pessoas “normais”. Agora o Estranho emerge de famílias disfuncionais, nesse e no outro mundo.
Burton traz os elementos do Gótico para os subúrbios de classe média nos quais demônios como Beetlejuice não habitam mais porões, depósitos ou estacionamentos subterrâneos (ou calabouços, como no Gótico europeu), metáforas do inconsciente como locais em que largamos detritos, objetos antigos ou descartáveis. Para Burton um demônio pode emergir, por exemplo, de uma maquete esquecida no sótão – um brinquedo de hobby se transforma num portal entre o mundo real e o submundo dos mortos.
O curioso é como o Mal invade a família. Na, por assim dizer, ética gótica o Mal só pode entrar na vida dos vivos se for convidado – na sua forma clássica, o Mal seduz e manipula os elementos inconscientes das vítimas: o sexo reprimido pela sociedade vitoriana, os desejos recônditos, as fantasias proibidas, fazendo-as permitir a entrada o demônio sedutor.
Em Burton, é a disfuncionalidade da família que permite a intromissão do Mal Beetlejuice: a ausência dos pais que cria o gap geracional – no primeiro filme, os pais Charles e Lydia estão perdidos nas suas próprias “ego trips” e a adolescente Winona Ryder consumida pela própria melancolia e depressão.
E no filme atual, o gap só amplia: Lydia está totalmente imersa nas histórias de fantasmas em seu programa de TV no qual criou um personagem para si mesma, uma espécie de ghostbuster; enquanto a filha Astrid se considerada abandonada pela mãe, acusando-a de estar imersa em um mundo imaginário e narcísico.
Astrid é cética, enquanto a mãe é uma crente.
Nas trapalhadas e perigos criados por essas disfuncionalidades, a invocação do Beetlejuice torna-se a única solução para resolver os problemas. Como sempre, querendo algo em troca: obrigar Lydia a casar com ele diante de um altar infernal, assim como há 36 anos.
Tim Burton nos faz rir de nós mesmos: pais ausentes e divórcios que se assemelham a sugadores da própria alma é a maneira como o diretor insere inteligentemente os elementos do Gótico europeu no sonho americano da classe média.
Ficha Técnica |
Título: Os Fantasmas Ainda se Divertem |
Diretor: Tim Burton |
Roteiro: Tim Burton, Milles Millar, Alfred Gough |
Elenco: Michael Keaton, Winona Ryder, Catherine O’Hara, Jenna Ortega |
Produção: Warner Bros |
Distribuição: Warner Bros Pictures |
Ano: 2024 |
País: EUA |