sexta-feira, setembro 13, 2024

A subversão contra a fascinação e o tédio no entretenimento em 'Yannick'


Desde que filmou um pneu serial killer rodando pelo deserto se vingando dos humanos que o descartaram em “Rubber” (2010), o diretor francês Quantin Dupieux é obcecado pela ideia da desconstrução todas as regras que regem o roteiro de cinema (principalmente a ideia de verossimilhança). Em "Yannick" (2023, em exibição na MUBI), dessa vez Dupieux volta a desconstrução para a relação do público com o entretenimento – no caso, uma plateia e os atores no palco de um pequeno teatro em Paris. Um espectador insatisfeito resolve fazer justiça com as próprias mãos – confronta os atores e, num ousado exercício metalinguístico, decide reescrever a peça em tempo real e dirigir os atores. Com uma arma na mão, pega todos como reféns da sua fúria crítica. Um filme deliciosamente subversivo que tematiza os sentimentos conflitantes de fascinação e tédio que envolvem o consumo do entretenimento comercial.

Fascinação e tédio são sensações paradoxais que permeiam a recepção dos produtos de entretenimento. Ficamos fascinados pela perspectiva de abandonar por algumas horas a rotina cotidiana, sentir-nos culturalmente enriquecidos ou, pelo menos, ter a certeza de que escolheu um ótimo passatempo. Fascinados pela própria indústria do entretenimento em si: todo esforço do que é feito para nos entreter, capturar a nossa atenção, nos manter excitados.

Por outro lado, paradoxalmente, há uma sensação de tédio. A sensação de que estamos recebendo mais do mesmo. Uma sensação de resignação, necessária para a disciplina da vida cotidiana: voltar à rotina do dia seguinte, acordar conformado de que qualquer experiência de prazer ou êxtase deve ser mantida sob controle para manter em paz a gestão entediante da rotina.

Mas não é assim que pensa o diretor francês Quentin Dupieux. Para ele a vida é caótica, incerta, sem scripts definidos, sempre nos pegando de surpresa. Nada faz muito sentido. E vamos ao cinema para assistirmos histórias onde tudo faça sentido, exatamente como a vida não é. 

A filmografia de Dupieux procura fazer o contrário: um cinema que não ofereça às pessoas a esperança de que a existência tenha algum sentido ou propósito. É a filosofia do “no reason” – uma percepção filosófica que Dupieux começou a construir a partir do surreal filme Rubber (2010), no qual um pneu com poderes telepáticos roda pelo deserto em busca de sangue e vingança.

Depois de desenvolver sua particular concepção surrealista em filmes como Wrong (2012), Realité (2014), Fumar Causa Tosse (2022) e Daaaaali! (2023), Dupieux volta a ação em Yannick (2024), uma surreal sátira metalinguística sobre o que aconteceria se o público se recusasse a sentir esse tédio final no consumo do entretenimento, e, como um consumidor lesado em seus direitos, tomasse o problema em suas próprias mãos.



Mais precisamente, estamos falando do protagonista chamado Yannick, um trabalhador comum que com muito esforço arrumou um tempo para o lazer e foi a um dos “teatros de bolso” remanescentes (pequenos teatros que, nos séculos XVIII e XIX criaram a seminal esfera pública popular com espetáculos valdeville) assistir a uma comédia chamada “O Corno”.

E os atores encontraram algo pior do que um crítico de teatro: um espectador insatisfeito que resolveu fazer justiça com as próprias mãos – do espaço da plateia, confrontar os atores e, num ousado exercício metalinguístico, reescrever a peça em tempo real.

Dupieux é obcecado pela ideia de desconstruir matalinguisticamente todas as regras que regem o roteiro de cinema (principalmente a ideia de verossimilhança), indo além do simples humor trash, cinismo, ironia e humor negro. De certa forma, ele tenta recuperar o humor de skatches e gags visuais do cinema mudo (slapstick) caracterizado pelo absurdo e surrealismo das situações.

Por isso, a situação proposta em Yannick é totalmente absurda e inverossímil, consistindo basicamente num espectador insatisfeito que sequestra público e atores para reescrever a peça inteira.

Dupieux inventou uma premissa cômica madura e, ao mesmo tempo, uma chance de interrogar o que o público espera da arte: Diversão? Entretenimento? Elevação? Provocação? Ou simplesmente fugir do tédio e da rotina? 

Yannick nos faz pensar nessas perguntas, ao mesmo tempo em que cumpre a própria ideia de Dupieux sobre o que um filme deve ser: um processo constante de desconstrução da linguagem cinematográfica que deveria repercutir na desconstrução da própria vida.



O Filme

Existe um contrato tácito entre os atores e o público quando as pessoas vão ao teatro. Você compra seu ingresso e se senta em silêncio enquanto o elenco faz suas coisas no palco. O riso é incentivado, aplausos são sempre bem-vindos. E a tosse é até permitida.

Mas falar (ou mesmo sussurrar) é estritamente proibido. Se você não suporta a peça, espere até o intervalo e vá embora, em vez de estragar o show.

Yannick (Raphaël Quenard) não hesita em estragar o show. 

No palco desenrola a peça chamada “O Corno”: um marido (Pio Marmaï) acaba de conhecer o homem (Sébastien Chassagne) com quem sua esposa (Blanche Gardin) está tendo um “caso platônico”. 

Yannick não está se divertido. Então ele se levanta no meio de uma pequena plateia (apesar de pequeno, o teatro está com pouco espectadores – um indício da qualidade do espetáculo), interrompendo o espetáculo. “Eu não acho isso divertido”, ele anuncia. “Eu estou me sintindo pior do que quando entrei.”

Os três atores simplesmente ficam sem ação para Yannick, sem saber como responder. Este intruso — um atendente de estacionamento, da classe trabalhadora, com pouca paciência e uma compreensão limitada do que seria a “arte”. 

Yannick explica que tirou o dia inteiro de folga do trabalho para poder vir ver aquela peça. Levou uma hora para chegar da periferia de Paris, e não aceita simplesmente o seu dinheiro de volta - ele quer que o valor pago resulte num entretenimento de qualidade. 

Os atores até se divertem um pouco com a situação, apoiando-se no relacionamento que estabeleceram com o público, conseguindo algumas risadas às custas do intruso. Depois educadamente pedem que ele saia.



Yannick relutantemente sai do teatro, mas retorna alguns momentos depois de pegar seu casaco (e a pistola que ele havia escondido no bolso) do saguão. Com a arma na mão, ele assume o controle da situação mais uma vez, tratando os atores e o público (do teatro, dentro do filme) como seus reféns. 

O público do filme de Dupieux poderia sair quando quisesse... mas por que eles sairiam? Dupieux cria uma situação deliciosamente subversiva.

Yannick pede emprestado um laptop de alguém da plateia e uma impressora da administração do teatro. E, no palco, passa a escrever o que ele considera ser uma peça superior àquela pela qual ele acabou de criticar. O resultado pode não ser melhor, mas parece divertir o público. E talvez isso seja o suficiente.

O que a situação surreal gera é uma espécie de quebra da ordem – um tipo de epifania sociológica e estética.

Estética, porque Yannick é a arte do ponto de vista de um trabalhador anônimo que vê no teatro um lugar para “se sentir melhor do que quando entrou”. “O Corno” é uma peça realista demais, mas no pior sentido: o da banalização da existência.



Mais uma vez, Dupieux faz uma homenagem ao cinema na época do slapstick: a forma como no início da indústria do entretenimento, o cinema era um acontecimento pela relação com o filme não como realista, mas transcendente – relação projetiva, isto é, ver na tela (ou mesmo no palco do teatro) tudo aquilo que a realidade deveria ser ou a projeção de tudo aquilo que gostaríamos de ser, mas a realidade não permite.

A subversão de Yannick é de não mais querer ver no palco a banalidade da vida, mas um vislumbre do que a vida poderia ser. 

E uma epifania sociológica: ao serem desafiados por um proletário que supostamente nada entende de arte, involuntariamente a situação faz os atores da peça tomarem consciência da própria condição de classe – são artistas frustrados que preferiam fazer cinema... mas tudo o que têm é o trabalho numa comédia teatral popularesca que não consegue preencher o assentos de um “teatro de bolso”. 

 

  

Ficha Técnica

 

Título: Yannick

Diretor:  Quantin Dupieux

Roteiro: Quantin Dupieux

Elenco: Raphaël QuenardPio Marmaï, Blanche Gardin, Sebastién Chassagne

Produção: Chi-Fo-Mi Productions

Distribuição: MUBI

Ano: 2023

País: França

 

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