Se nos anos 1970 tínhamos a lenda urbana dos “snuff movies” (vídeos comercializados com sexo abusivo, violento, sadomasoquista e sempre terminando na morte da vítima), na Dark Web temos o roax das “Red Rooms” - transmissões ao vivo de estupro, torturas e assassinatos de vítimas sequestradas para um público disposto a pagar pelo entretenimento voyeurista. O filme canadense “Red Rooms” (Les Chambres Rouges, 2023), de Pascal Plante, começa com o julgamento de um pedófilo que sequestrou menores para seus shows nas Red Rooms. Mas o foco não é o julgamento, mas duas mulheres obcecadas pelo caso. Uma, uma groupie apaixonada pelo réu que virou uma celebridade. E outra fria e enigmática. Figura incômoda para o espectador, porque nunca sabemos qual o seu real interesse no caso. Uma personagem está no passado (a cultura das celebridades no século XX) e outra no futuro: o interesse insalubre e amoral pelo mal na Internet. Revivendo em pleno século XXI a máxima do velho Marques de Sade: “Para o libertino o Mal deve ser praticado sem paixão”.
A ideia de “red rooms” (“salas vermelhas") tem uma longa tradição na cultura popular, sempre associado ao sexo, violência, crime e contravenção. Na visão mais habitual, são cômodos normalmente encontrados em casas de prostituição para que duas ou mais pessoas tenham encontros sexuais. E tiveram várias versões, sempre associadas à luz vermelha, como as “Red Lights District” na Holanda, com boates e prostíbulos.
Porém, o mais sinistro é que a origem desse termo está num anagrama red rum. Lido de trás para frente, forma-se a palavra “murder” (“assassinato”). O filme O Iluminado de Kubrick explorou essa mitologia etmológica quando o garoto protagonista Danny entre em transe e repete a palavra “redrum”.
Não tardaria para essas sinistras origens etmológicas impulsionar uma nova mitologia, dessa vez na cibercultura ou, mais precisamente, na Dark Web - um conjunto enorme de páginas que não são indexadas em mecanismos normais de busca, acessível apenas por mecanismos especiais de navegação, como o browser Tor e outros similares. Um espaço na Internet que prioriza o anonimato. Quem está lá não quer ser encontrado tão aceito.
A Dark Web cria uma lenda urbana que bebe nas fontes dos “snuff movies” dos anos 1970: vídeos que eram comercializados apresentando sexo abusivo, violento, sadomasoquista que terminava na morte da vítima. Em síntese, estupro + tortura + assassinato.
São a nova encarnação das Red Rooms nas quais supostamente ocorreriam transmissões ao vivo de estupro, torturas e assassinatos de vítimas sequestradas para um público de um voyeurismo doentio disposto a pagar pelo entretenimento.
O único caso comprovado ocorreu nas Filipinas onde um pedófilo chamado Peter Scully postou na Dark Web um vídeo dele abusando sexualmente e matando uma garota de 12 anos. Atualmente preso após sentença.
Certamente o filme canadense Red Rooms (Les Chambres Rouge, 2023) inspirou-se nesse caso das Filipinas. O filme abre com o primeiro dia de julgamento de Ludovic Chevalier (Maxwell McCabe-Lokos), um homem acusado de três assassinatos horríveis. Crimes ainda mais terríveis por terem sido transmitidos ao vivo para um público pagante em uma “sala vermelha” da dark web.
Assistimos às falas introdutórias da promotoria e da defesa diante dos jurados, em uma sala cinza, clara e austera – enquanto o réu, cabisbaixo, está num cômodo envidraçado.
Porém Red Rooms engana: não é um filme sobre tribunal e batalhas retóricas e processuais de advogados diante de um júri perplexo. De certa forma, o filme faz lembrar Assassinos por Natureza, de Oliver Stone. Porém sem as câmeras alucinógenas e a edição nervosa do diretor.
Red Rooms está mais interessado nos personagens que acompanham o julgamento e estão nos assentos da galeria pública do Tribunal Superior de Quebec. Assim como no filme de Stone no qual a dupla de seriais killers, Mickey e Mallory, torna-se celebridade seguida por fãs compulsivos e principal atração de uma rede de TV, em Red Room foca numa groupie apaixonada pelo assassino chamada Clementine (Laurie Babin), que esqueceu da sua vida para acompanhar o que ela considera uma grande farsa; e Kelly-Anne (Juliette Gariépy), uma figura misteriosa e ambígua que acompanha também diariamente o julgamento por algum interesse ainda não claro.
Red Room explora um ângulo intrigante – aprofunda naquilo que Oliver Stone considerou apenas mais um detalhe na saga de Mickey e Mallory. O diretor e roteirista Pascal Plante (Nadia, Butterfly) aprofunda a preocupação insalubre da sociedade com o mal – como a sofisticada tecnologia da Internet do tempo real e da forma de comunicação mais globalizada da História, não nos transformou. Apenas repercutiu exponencialmente o demasiado humano: a World Wide Web apenas fez um mashup das mazelas humanas que já estavam lá, nos meios de comunicação de massas do século XX.
O Filme
Grande parte do enredo já aconteceu quando o filme começa. Enquanto os créditos de abertura rolam sobre acompanhamos uma jovem chamada Kelly-Anne acordando e pegando um ônibus para um prédio alto e estéril. Kelly-Anne passa pela segurança e se senta em uma sala de tribunal brilhante, branca e iluminada por uma luminosidade fluorescente. Em julgamento está Ludovic Chevalier, também conhecido como “O Monstro de Rosemont”, que é acusado dos assassinatos brutais de três meninas entre 13 e 16 anos. Dar a Chevalier notoriedade parece ter sido o propósito de seus crimes: as vítimas foram sadicamente torturadas antes de serem mortas, e para o benefício de um público pagante que viu isso acontecer, ao vivo, na dark web.
O julgamento baseia-se em dois vídeos de meia hora, já que o terceiro não pode ser encontrado, mas a equipe de defesa de Chevalier afirma que ele é um homem injustiçado, “um cidadão modelo” que nunca teve problemas com a lei. A principal falha no argumento da acusação, acrescentam, é que nenhuma quantia passou por sua conta, além de nunca ter demonstrado sinais de viver além de suas possibilidades.
Apesar da quantidade esmagadora de evidências circunstanciais, nem todos estão convencidos da culpa de Chevalier. Em seu segundo dia no julgamento, Kelly-Anne conhece Clémentine, uma groupie do assassino que se apaixonou por Chevalier, alegando que os vídeos foram falsificados e que o julgamento é “um grande show”.
As duas se tornam aliadas improváveis, mas o equilíbrio da sua amizade torna-se instável quando a sala de tribunal é fechada e os dois vídeos de “snuff” existentes são apresentados ao tribunal. Para surpresa de Clementine, Kelly-Anne não só já os viu, mas também os tem em um pen drive. Como ela já possui os vídeos que estão no processo?
Aqui conhecemos um pouco mais a figura enigmática de Kelly-Anne: é uma mulher independente, com uma carreira de modelo para sites fetichistas. E uma hábil jogadora de poker on line, capaz de, por exemplo, pagar a conta em um restaurante com as bitcoins que acabou de ganhar em um rápido jogo de poker em seu smartphone.
Enquanto a ingênua Clementine se apaixonou pelo pedófilo-celebridade, Kelly-Anne é fria, capaz de mergulhar nos horrores inimagináveis na Internet: entrar em leilão virtual para adquirir o terceiro vídeo perdido de Chevalier. Enquanto na outra tela, joga uma partida de poker on line para ganhar as bitcoins necessárias para vencer o leilão.
São duas personagens intrigantes, capazes de dormir na rua, em frente ao tribunal, para conseguir pegar o melhor lugar na galeria pública.
O que elas querem? Clementine, é a groupie clássica do século XX: apaixona-se pela celebridade para esquecer da própria vida.
Já Kelly-Anne é muito mais complexa. Alguém que pode muito bem de ter gostado de assistir aos três terríveis vídeos de imolações, enquanto ao mesmo tempo fornece as provas que faltavam para incriminar de vez o acusado.
Parece ser dotada de um voyeurismo radical, bem diferente da sociedade do espetáculo do século passado: sem paixão, amoral. Kelly-Anne parece reviver da Dark Web o princípio do velho Marques de Sade: “O Mal deve ser praticado sem paixão”, filosofava Sade no livro “120 Dias de Sodoma”.
Para ele, o verdadeiro libertino deve ser neutro, melancólico, apático, estoico, muito longe do senso comum dos seres malignos enlouquecidos, obcecados ou selvagens.
Assim como Sade, Kelly-Anne quer levar os princípios morais e filosóficos da cultura burguesa (do estoicismo ao empreendedorismo) às últimas consequências, mostrando que podem ser revertidos no oposto: a barbárie.
Ficha Técnica |
Título: Red Rooms |
Diretor: Pascal Plante |
Roteiro: Pascal Plante |
Elenco: Juliette Gariépy, Laurie Babin, Elizabeth Locas, Maxwell McCabe-Lokos |
Produção: Nemesis Film Productions |
Distribuição: Utopia |
Ano: 2023 |
País: Canadá |