Era uma vez os velhos dispositivos panópticos de vigilância e punição: do Deus monoteísta ao Estado e Polícia. Mas tudo mudou com a Internet, novo dispositivo que, paradoxalmente, vigia e controla através de uma estratégia de não só facilitar, mas também premiar quase todos os antigos pecados capitais: inveja, ira, ganância, orgulho e, principalmente, a luxúria. Um gigantesco confessionário anônimo no qual os metadados de redes sociais, geolocalizadores e plataformas de relacionamentos poderão voltar-se contra nós. A série Netflix “Clickbait” (2021) sugere essa discussão ao acompanhar um homem de família aparentemente decente que desaparece a caminho do trabalho. Para horas depois aparecer em um vídeo na Internet no qual admite, aparentemente sob coação, ter abusado de mulheres. Segurando um cartaz indicando que será morto quando o vídeo atingir 5 milhões de visualizações.
O “Dispositivo” é um conceito de Foucault para se referir aos diversos mecanismos institucionais, administrativos e de conhecimentos que potencializam o controle e o Poder na sociedade. Ao lado do conceito de “panóptico” de Jeremy Bentham (a penitenciária ideal em que um único vigilante observava todos os prisioneiros) é o próprio atributo do Deus monoteísta secularizado.
Isto é, aquele que tudo vê, pune e premia (tanto no judaísmo, cristianismo e islamismo), dessa vez atualizado nas sociedades seculares – no Estado, polícia, escola, hospitais etc., os chamados aparelhos ideológicos de estado. Dispositivos que vigiavam e puniam todos os pecados, fossem morais, políticos, criminais etc.
Porém, o final do século XX trouxe a World Wide Web, a Internet multimídia e hipertextual que, desde o início, passou não só a facilitar, mas inclusive a estimular quase todos os antigos pecados capitais punidos por Deus e pelo Dispositivo/Panóptico: inveja, ira, ganância, orgulho e, notavelmente, a luxúria.
Assim como o Deus monoteísta morreu, também estão feridos de morte os velhos dispositivos panópticos – no lugar, a Internet que estimula e premia os pecados capitais. Isso não quer dizer que a vigilância e o controle terminaram: tornaram-se mais eficientes através dos metadados, os rastros que os próprios “pecadores” deixam pelo ciberespaço.
É como se, de repente, os obscuros impulsos do Id se aliassem com o Superego, o controle através do estímulo do pecado, numa síntese perversa.
Essa é a discussão por trás da série Netflix Clickbait (2021), co-produção EUA/Austrália criada por Tony Ayres e Christian White. Uma série que descreve como impulsos perigosos e descontrolados são estimulados nessa era das mídias sociais e as consequências no mundo real: as fraturas cada vez maiores entre as relações sociais e pessoais, sejam elas virtuais ou reais.
“Clickbait” é um conceito que se refere ao conteúdo da Internet que se destina imediatamente a geração de receita de publicidade on-line, às custas da qualidade e precisão da informação. Muitas vezes explora a compulsão ambígua da curiosidade voyeurística combinada com repulsão.
Uma série composta de oito episódios com vilões invisíveis em uma Internet anônima e viral, de redes sociais e plataformas de encontros onde deep fakes e perfis falsos são as iscas para os pecados capitais.
É justamente essa ambiguidade da repulsão combinada com o prazer voyeurístico que é o ponto de partida de Clickbait: um homem de família aparentemente respeitável é sequestrado e forçado a aparecer em um vídeo viral admitindo comportamento abusivo, exibindo um cartaz anunciando que morrerá se chegar a cinco milhões de acessos.
Como a família de Nick poderá impedir que o vídeo alcance a marca fatal de visualizações, se o conteúdo é perversamente viral? Quão cúmplices somos todos nós em uma situação como essa que requer a indiferença ou a participações de milhões de anônimos?
Clickbait vai abordar essas questões e muitas outras num bom ponto de partida que vai se diluindo ao longo dos episódios, transformando-se num thriller policial quase comum. Não fosse o tema de fundo que a série suscita: sempre a polícia (o velho dispositivo panóptico) está a um ou dois passos atrás de hackers e usuários de aplicativos de geolocalização. Ou mesmo dos usuários de plataformas de relacionamentos.
Câmeras de vigilância nas quais baseiam-se as investigações policiais versus os metadados da Internet que fazem vigilantes e jornalistas sensacionalistas (que buscam fazer justiça com as próprias mãos ou almejarem clickbaits) sempre estarem à frente.
A Série
Clickbait começa com uma interessante premissa: Nick Brewer (Adrian Grenier), um homem de família aparentemente gentil e decente, desaparece uma manhã a caminho do trabalho. Horas depois, surge um misterioso vídeo na Internet no qual Nick admite, aparentemente sob coação, ter abusado de mulheres – com o rosto ferido, segura um cartaz indicando que ele será morto quando o vídeo atingir 5 milhões de visualizações.
Quem é Nick Brewer? Clickbait ataca essa pergunta de dois ângulos diferentes. A primeira consideração vai para a família de Nick: sua chocada e enfurecida irmã Pia (Zoe Kazan) e sua mãe Andrea (Elizabeth Alexander), e sua entorpecida e confusa esposa Sophie (Betty Gabriel) e seus dois filhos Ethan (Camaron Engels) e Kai (Jaylin Fletcher).
Os Brewers vivem em uma pequena comunidade de Oakland onde todos parecem se conhecer, e logo o que está acontecendo com Nick assume o controle de suas vidas. Os colegas professores de Sophie sussurram atrás dela; os colegas de turma de Ethan e Kai se voltam contra eles; e os repórteres acampam do lado de fora de suas casas. E a pergunta que ninguém pode responder é: por que isso aconteceria com Nick? Ou, por outro lado: o que Nick fez para que isso acontecesse?
A impulsiva Pia, que a narrativa a impregna com uma energia nervosa, recusa-se a ficar de lado e esperar que a polícia faça seu trabalho. “Este vídeo não é uma confissão. É uma ameaça de morte”, diz ela, e recorre ao amigo hacker Vince (Jack Walton) para investigar a vida online de Nick e ajudá-la a investigar por conta própria. Seu outro aliado é o detetive Roshan Amiri (Phoenix Raei), um detetive que investiga desaparecidos, mas vê nesse caso a grande chance para ser promovido a detetive de homicídios.
Enquanto perseguem uma série de pistas - Nick foi visto em algum lugar; onde foram filmados os vídeos dele; ele desapareceu no caminho para o trabalho? – todos caem em uma toca de coelho que sugere que Nick não era o homem de família amoroso que parecia ser. Um perfil de aplicativo de namoro aparece, depois outro e outro. Com Nick sequestrado e incapaz de falar por si mesmo, cabe aos membros de sua família e aos outros envolvidos em seu caso tentar descobrir quem Nick realmente era.
Cada um dos oito episódios é focado em um dos personagens da trama, com títulos como “A Irmã”, “O Detetive”, “A Esposa” e assim por diante. A primeira é Pia, que leva tudo para o lado pessoal e se sente culpada por sua última interação com Nick. A próxima é Sophie, que tem um segredo e está tentando manter a família unida. Mais tarde, estão Ethan e Kai, cujas vidas se passa inteiramente nas redes sociais. E Roshan e o jornalista Ben Park (Abraham Lim), que veem neste caso uma oportunidade de avançar em suas carreiras, também têm seus próprios episódios.
É sintomático o detetive Roshan ser de família muçulmana – nas horas vagas das investigações, recorre a uma mesquita para rezar voltado a Meca. Enquanto a família de Nick é protestante anglicana. A série coloca essas duas instituições tradicionais (polícia e família) engolfadas pelas redes sociais e plataformas de relacionamentos – com as suas iscas que incitam orgulho, ira, ganância e, finalmente, a luxúria que, como o leitor perceberá, é o pecado que será o desfecho do enigma.
Enquanto a polícia tenta montar o quebra-cabeças a partir dos tradicionais dispositivos de vigilância (câmeras de ruas e banco de dados legais da polícia), hackers e investigadores amadores da Internet fuçam metadados. E sempre estão à frente da equipe do investigador Roshan, que sempre tem que correr atrás do estardalhaço dos furos que aparecem no jornalismo on-line.
Aliás, o episódio “O Jornalista” é o epicentro da série, que conecta com o próprio título “Clickbait” – um repórter de jornalismo on-line que vive no limite da ilegalidade e da invasão de privacidade, recorrendo a Deep Web para trazer conteúdos sensacionalistas para aumentar o tráfego e ir muito além da condição de estagiário.
“Mas isso é legal?” é a pergunta que mais se ouve na série, diante da manipulação dos metadados dos rastros que todos nós deixamos na Internet – “Dark Data”.
Os episódios estão repletos de análise de dados para encontrar pistas de comportamento, geolocalização, análises de padrões de tráfego que podem ajudar nas investigações free-lancers. E como as instituições do Dispositivo foucaultiano estão perdidas diante dessas novas formas de controle e vigilância.
Novas formas que não funcionam mais dentro do velho esquema panóptico de vigilência/punição, mas da premiação da incitação do pecado para alcançar clickbaits.
Na série começamos a imaginar a Internet como um gigantesco confessionário onde, anonimamente, praticamos e confessamos nossos próprios pecados. E, eventualmente, os rastros das nossas confissões poderão voltar-se contra nós.
Ficha Técnica |
Título: Clickbait (série) |
Criador: Tony Ayres e Christian White |
Roteiro: Tony Ayres e Christian White |
Elenco: Zoe Kazan, Betty Gabriel, Phoenix Raei, Adrian Grenier, Camaron Engels, Jaylin Fletcher |
Produção: Master Key Production, Matchbox Pictures |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2021 |
País: EUA |