terça-feira, julho 07, 2020

Em "Buscando..." as mesmas mídias com as quais nos comunicamos também nos dividem


Não são apenas todas as mídias que estão convergindo para o meio digital. Nossas vidas também. Transformando-se em “media life” que pauta nossas identidades em bolhas marcadas pelo tautismo (autismo midiático + tautologia): espalhamos fragmentos de nós mesmos por redes e plataformas sem conseguirmos juntar num todo. Mídias supostamente criadas para aproximar as pessoas, mas que na verdade promovem ainda mais a divisão. “Buscando...” (“Searching”, 2018) é um filme que trata desse tema tanto na forma quanto no conteúdo - um thriller narrado inteiramente dentro dos limites dos dispositivos eletrônicos, nos permitindo sentir como se estivéssemos logando, clicando e digitando junto com os personagens em tempo real. Através das janelas de aplicativos e plataformas acompanhamos o desespero de um pai em busca de sua filha desaparecida. Descobrirá como as mesmas mídias com as quais nos comunicamos, também nos dividem e nos alienam dos outros.

 

Era uma vez a World Wide Web, idealizada nos anos 1980 por Tim Berners-Lee para ser um sistema que tornasse mais fácil o compartilhamento de documentos de pesquisas. Sua ideia revolucionária de juntar o conceito de hipertexto (originado de projetos nos anos 1960) com a Internet, tornava a Web como uma promessa de ser uma janela aberta para o mundo. 

Seria uma incrível biblioteca universal de conhecimentos livremente partilhados entre os usuários da rede de computadores em torno do planeta. O Capitalismo e a sua entidade onisciente e onipotente chamada Mercado até tentaram monetizar esse serviço.

Mas o crash da Nasdaq e das empresas “ponto com” no início do século XXI mostraram que a Web poderia ser tudo. Menos capitalista. Até alguns pesquisadores, como o historiador Richard Barbrook, falava em “cibercomunismo” – ele e uma leva de outros pensadores como Pierre Levy pensavam em futuro promissor em torno de “máquinas pensantes”, “aldeia global”, “inteligência coletiva” etc.

Mas a entidade metafísica chamada mercado descobriu uma coisa mais preciosa em termos capitalistas do que a mera socialização de informações e conhecimentos: os próprios usuários são a maior riqueza da Web: seus hábitos, costumes, atitudes, comportamentos e toda a produção de conteúdo mais popularizado com o advento da Web 2.0: falar de si mesmo em postagens, fotos, gifs animados, memes etc.

Turbinada pelos dispositivos de convergência (laptops, tablets smatphones etc.) a Web 2.0 tornou-se tautista (autismo tecnológico + tautologia) – usuários por todos os lados falando de si mesma, criando bolhas tautológicas refratárias ao mundo externo.


Pronto! Criamos a chamada “Media Life”, expressão de Mark Deuze – não vivemos mais com as mídias, mas vivemos nas mídias nossas relações com as mídias se tornaram onipresentes, universais, quase que codificando os nossos genes. “Gostemos ou não, todos os aspectos de nossas vidas têm lugar nos meios de comunicação”, afirma Deuze.

Buscando... (Searching, 2018) talvez seja, até o momento, o filme que mais ambiciosamente explora esse tema no sentido mais amplo: tanto em conteúdo como em narrativa. A começar pelo título ambíguo do filme – “Buscando...” pode ser tanto a mensagem de um mecanismo de busca de um navegador, como também a busca de um pai desesperado pelo desaparecimento de sua filha.

E, claro, a busca se dará menos no mundo real do que nas pistas deixadas pela filha nas redes sociais e plataformas de vídeos. Portanto, a narrativa do filme só poderia ocorrer inteiramente dentro dos limites dos dispositivos eletrônicos, nos permitindo sentir como se estivéssemos logando, clicando e digitando junto com os personagens em tempo real.

Nesse sentindo, Buscando... lembra um thriller recente também centrando a narrativas nas janelas de aplicativos, Unfriended: Dark Web (2018), no qual a ação se desenrola contínua na tela de um computador em tempo real, com suas várias janelas e textos.



Ambos os filmes foram produzidos pela Bazelevs, produtora dirigida pelo produtor e diretor Timur Bekmambetov, que está desenvolvendo uma série de mais de vinte filmes em tela de computador. Segundo ele, essa tendência fílmica refletiria “uma nova realidade”, novas formas narrativas sem mais as regras clássicas da narrativa cinematográfica tradicional.

O Filme

A história segue o caminho familiar de um pai viúvo, David Kim (John Cho), um próspero engenheiro do Vale do Silício, cuja filha de quinze anos, Margot (Michelle La), desaparece após estudar na casa de amigos. Depois de entrar em contato com a polícia, ele é aconselhado pela investigadora, Rosemary Vick (Debra Messing), a participar das investigações.

Mas David não fará da forma tradicional da investigação policial de campo:  ele passará horas e dias vasculhando os contatos em seu laptop, questionando as pessoas que ela conhece e descobrindo aspectos da vida dela que ela mantinha escondida do pai. Aspectos que podem ter desempenhado um papel em seu desaparecimento.

Toda a ação do filme ocorre - ou melhor, é vista em - telas de computadores. O filme é abre com uma exibição de um protetor de tela de paisagem genérica e um cursor.

A ação começa com o computador reproduzindo uma longa montagem de cenas da vida de Margot, do nascimento à adolescência, e incluindo os detalhes da morte de sua mãe. 

Ao mesmo tempo acompanhamos a evolução tecnológica e de design da informação: do Window7 até chegarmos ao Mac OSX e as atuais plataformas de vídeos e de videoconferências. 



Assustado, David vai descobrindo cada vez mais facetas desconhecidas da filha. A morte da sua esposa Pamela Nam Kim (Sara Sohn), causou um dano emocional muito maior do que imaginava. Margot na verdade era solitária e reclusa, apesar da sua aparência alegre e comunicativa

Antes de seu desaparecimento, Margot se comunicou com o pai pelo FaceTime e por mensagens de texto – o ponto de partida para navegar entre as janelas de aplicativos e plataformas do ser laptop e da filha.

 A partir desse ponto, Buscando... nos leva a uma série de reviravoltas. O filme encontra caminhos narrativos inovadores através das configurações dos laptops – desde as maneiras como David descobre as senhas bloqueadas das mídias sociais de Margot até a planilha que cria para interrogar seus amigos.

Apesar da crescente e inevitável ansiedade, David mantém-se metódico. Acompanhamos ele sempre em plano médio e close-up, sempre com a tela dividida com quem esteja falando. Percebemos tudo o que sente – é uma experiência surpreendente, como se estivéssemos mergulhando nas vulnerabilidades do protagonista.



Quanto mais David descobre as postagens secretas de Margot no Tumblr até as imagens on line do último lugar em que o carro foi visto, mas ele percebe que realmente não conhecia sua filha única.

Esse é o triste paradoxo das tecnologias de informação e comunicação, supostamente criadas para aproximar as pessoas, mas que na verdade parecem promover ainda mais a divisão.

Outro ponto fascinante, e ao mesmo tempo assustador em Buscando..., é que todos os segredos e características contidas e dispersas na identidade digital de uma pessoa, não oferece quase nada da identidade dos personagens do filme. Acompanhamos personagens vitualmente sem rosto e sem inclinações, interesses e idiossincrasias. Quando os segredos de Margot emergem são meras engrenagens em uma trama.

Além disso, o filme é marcado por uma narrativa intensa e acelerada, Assim como os computadores aceleram o ritmo do trabalho (uma viagem à biblioteca é substituída por alguns cliques; folhear livros é substituída por uma pesquisa através de um motor de busca etc.). Os incidentes da vida cotidiana que cercam os traços digitais são filtrados; o contexto desaparece. centrado no computador é paradoxalmente alienante e emocionante - não há diversidade suficiente na tela do computador nem atividade física suficiente para colocar em contexto a premissa do próprio filme.

Em Buscando... tanto o cinema como a mídia tradicional como a TV (o sumiço de Margot se transforma numa pauta sensacionalista do telejornalismo) são absorvidos pelas plataformas digitais que acompanhamos na narrativa. 

Mas também chegamos à conclusão que a convergência não é apenas um fenômeno tecnológico. Mas principalmente cognitivo: nossa própria identidade está pautada pelas mídias digitais. 

Porém, de forma tautista – as telas dos computadores que deveriam ser janelas abertas para o mundo (a “biblioteca universal”) nos cercaram como bolhas, dentro das quais postamos fragmentos das nossas identidades.

Produzindo o velho problema da alienação humana: são tantos fragmentos que perdemos a visão do todo (e de nós mesmos). Por isso, as métricas das big datas de empresas e movimentos políticos como a alt-right parecem conhecer mais sobre nós do que nós mesmos.

Buscando... revela como a “media life” (a mídia está para o homem assim como o mar está para o peixe) está centrada no paradoxo da incomunicabilidade: estamos nos alienando de nós mesmos e aprofundando as divisões.


 

Ficha Técnica 

Título: Buscando...

Diretor: Aneesh Chaganty

Roteiro: Sev Ohanian, Aneesh Chaganty

Elenco: John Cho, Debra Messing, Sara Sohn, Michelle La, Joseph Lee

Produção: Bazelevs Productions

Distribuição:  Sony Pictures Releasing

Ano: 2018

País: Rússia, EUA

 

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