Como um título em português pode estragar a exata compreensão de um filme! É o caso da produção argentina “Cuando Acecha la Maldad” (2023), de Demián Rugna (“Aterrorizados”), que mereceu em português o título “O Mal que Nos Habita”. Rugna impacta com sua brutalidade anárquica. Principalmente porque rompe com tabus e o cânone do gênero da representação do Mal e da monstruosidade. No filme, o Mal não é mais moral, punindo pecadores de forma exemplar. Mas ontológico, gnóstico. Uma combinação visceral de possessão demoníaca como fenômeno viral e epidemiológico num lugar remoto no interior da Argentina. Ele não nos habita, mas nos cerca e nos espreita. O Mal está na Criação, não em nós. O filme leva essa ideia a uma poderosa metáfora política da Argentina atual.
É notável como na maioria das vezes o título em português de uma produção estrangeira muda completamente o sentido do filme. O título original “Cuando Acecha la Maldad” (“Quando o Mal Persegue”) recebeu em inglês o título “When Evil Lurks” (Quando o Mal Espreita”), mantendo o sentido original.
Mas no Brasil recebeu um terrível título que corrompe totalmente o sentido original (gnóstico) dado pelo diretor/roteirista argentino Demián Rugna: O Mal que Nos Habita (2023), que teve sua estreia mundial no Midnight Madness do Festival Internacional de Toronto, impactando pela sua brutalidade anárquica – não respeita nenhuma das normas dos cânones do gênero: nem as crianças e os cães estão livres da brutalidade do Mal e a insanidade sangrenta que acompanham as sequências do filme.
O filme abre as portas do Inferno e o espectador tem que estar disposto a seguir onde a jornada o leve. Porém, é um tipo de inferno bem particular: a visão do Mal pelo ponto de vista gnóstico – perdido pelo título em português.
O filme O Mal que Nos Habita nos apresenta o Mal ontológico, bem diferente na noção religiosa e moral do Mal. Na concepção religiosa, o Mal de fato nos habita: é o “demasiado humano”, nossas imperfeições, nossa predisposição ao pecado e a insistência em corromper tudo de bom que foi criado por Deus. Não por acaso, a humanidade foi expulsa do Paraíso no início de tudo. Pagamos pelo erro de Adão e Eva.
Ao contrário, para o Gnosticismo, a criação do mundo já foi a Queda pela presença ontológica do Mal na sua própria constituição, existência e dinamismo. Identificar o Mal com a existência material não significa incorrer na concepção religiosa tradicional da oposição entre matéria/espírito, Verdade/Mentira, Bem/Mal etc., num dualismo onde a matéria é considerada moralmente má por ser a fonte do pecado e da decadência espiritual. Ao contrário, o Mal para o Gnosticismo tem uma concepção ontológica e não moral, isto é, o Mal é a essência constitutiva do próprio cosmos físico. Isso significa que ele possui algo de corrompido e falso desde o início.
Por isso o título engana. O Mal que Nos Habita não trata do Mal presente no cânone dos filmes de terror – o Mal que vem punir os pecados humanos. Pelo contrário, trata do Mal que nos cerca e nos espreita porque constitutivo da realidade. Ele nos observa e nos espreita à espera de um momento para se inserir, ser gestado e eclodir. Para destruir, já que o cosmos é governado pela seta do tempo da entropia.
As únicas coisas que nos protegeria são a Ciência e o Conhecimento, para impedir que essa falha cósmica da Criação faça eclodir o Mal e nos destrua.
Esse é o cerne da combinação visceral que Demián Rugna faz entre possessão demoníaca, o infeccioso-viral e ameaça zumbi. E ainda por cima, deixando clara a metáfora política do contexto atual da Argentina: a possessão de corações e mentes pela viralização do Mal - o fascismo e extremismo de direita que teve sua tradução política com a vitória de Javier “El Loco” Milei.
Acompanhando a tendência inaugurada pelo terror espanhol REC (2007), aqui a disseminação do Mal numa pequena cidade no interior da Argentina é um problema sanitário – algo que está para eclodir do corpo apodrecido (ou possuído), mas ainda vivo, e que poderá arrasar a vida de todos na região. Uma abominação hedionda cujas autoridades policiais e sanitárias locais não fazem nada, travadas por protocolos burocráticos.
Mas parece que é exatamente isso que o demônio quer para desencadear o mal para fazer mais mal. Para começar, tomar conta das crianças em uma escola, tornando-as em um exército zumbi. Diante da bandeira argentina, símbolo principal da escola local. É o momento que O Mal que Nos Habita se transforma numa poderosa metáfora política atual.
O Filme
Dois irmãos adultos na Argentina rural — o Pedro mais velho (Ezequiel Rodríguez) e o mais jovem Jimmy (Demián Salomón) — descobrem que um de seus vizinhos se tornou um “podre” (corpo asqueroso inchado de pus) , infectado com um demônio que está tentando nascer. Tal demônio pode ser exorcizado, mas precisa ser feito corretamente, por um especialista chamado de “faxineiro”. Se não for feito corretamente, o demônio pode se espalhar, como um vírus. E os infectados são perigosos.
Rugna só revela muito lentamente as regras sobre como lidar com podres, e como não. E essas regras são bastante contrárias ao que fomos treinados para acreditar nos filmes de terror tradicionais... o que torna tudo ainda mais perturbador.
Tiros de espingarda não funcionam e as luzes elétricas devem ser desligadas – interessante metáfora da crítica ao Iluminismo: as potentes luzes elétricas iluminam, mas também criam sombras.
As primeiras sequências já começam aceleradas, com os irmãos ouvindo tiros na floresta e a descoberta de um corpo cortado pela metade – era um faxineiro com um intrincado dispositivo subexplicado no filme, que auxilia no processo de limpeza-exorcismo.
Parecem que os personagens daquela localidade, cercada de crenças e teorias assustadoras sobre o fenômeno sabem muito mais do que o espectador sobre o que está acontecendo. O que cria uma interessante imersão na narrativa: teremos que juntar indícios e evidências para entender a dinâmica e as pretensões do demônio naquela localidade tão remota.
Não podendo matá-lo, porque só pioraria as coisas, junto com um vizinho decidem movê-lo para bem longe da cidade. Mas isso só espalha o contágio e o medo, forçando Pedro e Jimmy a pegar as suas famílias e fugir.
No caminho encontram uma mulher mais velha (Silvia Sabater) que foi no passado uma faxineira e é uma das poucas que sabe como usar aquele dispositivo estranho para matar as criaturas que se tornam zumbis, e é sua determinação astuta de mãe-protetora que impulsiona o trecho final frenético do filme.
É quando a faxineira se torna quase uma narradora para garantir que o público possa entender e acompanhar o que deve acontecer a seguir – o primeiro caso de possessão aconteceu na cidade grande, em Buenos Aires, numa Igreja. Mas foi confundido com um caso de possessão demoníaca tradicional. E o demônio escapou para a Argentina remota, perseguido por faxineiros que tentam debelar essa nova forma de manifestação do Mal: viral, quase como um problema sanitário.
O Mal viral e político
Do ponto de vista da Cineteratologia (o estudo da evolução das representações do Mal e da monstruosidade no cinema), O Mal que Nos Habita é bem coerente com o filme anterior de Demián Rugna, Aterrorizados (2017): o Mal emerge nas casas de um bairro de classe média de Buenos Aires: pela torneira, ralo da pia, frestas das paredes, canos, fundo de armários etc. O Mal viral que se apossa de pessoas vivas e mortas.
O Mal como problema epidemiológico e de vigilância sanitária é a evolução da representação da maldade não mais como algo monstruoso, disforme e feio como os monstros do cinema e as criaturas demoníacas como os vampiros. Agora são instáveis, caóticos, sem simbolismo moral (punição, confrontar Deus e o Sagrado etc.), mas dotados de uma amoralidade e indiferença: buscam apenas a reprodução, disseminação, viralização de si mesmo, como força destrutiva da própria Natureza. Como um vírus ou uma patologia qualquer.
Ao lado disso, outra poderosa metáfora do filme é a política: crianças que se tornaram zumbis em uma escola, todas sentadas em suas carteiras na sala de aula, como à espera de algum comando para agirem. Ao lado de uma bandeira da Argentina e do busto do fundador da escola, nossos heróis ao lado da faxineira observam aterrorizados o cenário.
“Isso é muito diferente do que eu já vi”, exclama perplexa a faxineira, que vê alguma espécie de mutação que ocorreu no vírus demoníaco. Teme que seus conhecimentos sejam insuficientes no confronto final.
O Mal que eclodiu na capital para apodrecer pessoas no interior do país. Proposital ou não, Demián Rugna sintoniza o filme com o zeitgeist atual: a contaminação viral do fascismo e o extremismo de direita como sua tradução política. Argentina vive hoje um quadro parecido com a vitória de Javier Milei no ano passado.
O Mal que Nos Habita é uma perfeita combinação da consciência cultural e histórica com um senso de terror popular... o que estragou foi o terrível título em português, traindo a compreensão essencial do filme.
Ficha Técnica |
Título: O Mal que Nos Habita |
Diretor: Demián Rugna |
Roteiro: Demián Rugna |
Elenco: Ezequiel Rodriguez, Demián Solomon, Silvina Sabater |
Produção: Machaco Films, Aramos Cine |
Distribuição: Paris Filmes (Brasil) |
Ano: 2023 |
País: Argentina |