sábado, outubro 07, 2023

'Na Mira do Júri': da canastrice da percepção ao fim do reality show



Reality shows e dramas sobre tribunais do júri são duas fixações da TV dos EUA. E elas se encontram na minissérie Prime Vídeo “Na Mira do Júri” (Jury Duty, 2023). Aqui acompanhamos um mix entre o mockumentary e o “media Prank” (“pegadinhas”): um voluntário se inscreve num suposto reality show sobre os bastidores de um tribunal do júri em um condado de Los Angeles. Mas o que ele não sabe é que ele é o alvo do experimento – todos ao redor, dos membros do júri ao juiz, réu e advogados, são atores profissionais. A minissérie lembra a condição de Jim Carey em “Show de Truman”. Porém, com duas diferenças fundamentais: aqui, o protagonista não nasceu no reality show. Por que então ele não percebeu a artificialidade do evento? A condição pós-moderna da “canastrice da percepção” está por trás. E se “Show de Truman” tinha muito a dizer sobre a ascensão do reality show, talvez “Na Mira do Júri” possa ser considerado o fim do próprio gênero reality show.

          A TV dos EUA apresenta duas recorrências que galvaniza as audiências: o gênero reality show (das media prankscomo o clássico Candid Camera dos anos 1950 a reality shows como Survivor ou American Idol que povoam tanto canais abertos quantos fechados) e a comoção que envolvem coberturas de julgamentos de celebridades como O.J. Simpson e as inúmeras séries e filmes concentrados nas tramas que envolvem tribunais do júri.

Está claro que o prazer voyeurista do espectador de olhar a vida de participantes involuntários é o que une esses dois gêneros que marcam a produção televisiva norte-americana.

Certamente o filme de Peter Weir, Show de Truman, foi aquele que melhor refletiu esse prazer do espectador. Principalmente a sequência final: Truman (Jim Carey) navega até o limite de sua realidade. Vivendo sua vida involuntariamente na televisão, tema de um popular reality show serializado onde ele não sabe que é o protagonista, Truman, depois de alguma suspeita crescente sobre suas circunstâncias, embarca em um veleiro para encontrar um "novo mundo". Quando Truman bate a proa do barco na borda do gigantesco cenário do show, o filme começa a levantar questões sobre a natureza da nossa realidade, a ética de como consumimos a mídia e a emoção furtiva e terrível da vigilância desse olhar voyeurista.

Se o filme de Weir tinha muito a nos dizer sobre a ascensão do reality show e suas implicações para a vida, o mais recente reality show, a minissérie Na Mira do Júri (Jury Duty, 2023, disponível na Prime Vídeo) talvez possa ser considerado o fim do próprio gênero reality show.

Se definirmos um programa reality show uma atração em que coloca não atores em situações artificiais de vigilância, a minissérie Na Mira do Júri prova que o público está querendo mais.

Na Mira do Júri revela que os espectadores podem agora querer atores executando linhas de diálogo, um enredo sob o guarda-chuva do controle da produção e uma pessoa, totalmente inconsciente, pensando que está vivendo uma estranha realidade - e fica que fica cada vez mais muito estranha - enquanto olhamos e rimos atrás de nossas telas. Se no passado ligávamos a TV para ver algo “real”, agora queremos que quase tudo seja obviamente artificial.



Na minissérie, um voluntário chamado Ronald Gladden (interpretando a si mesmo), se inscreve num suposto programa de reality show sobre um tribunal do júri. Como uma espécie de experimento social, ele vai ser colocado pela produção no interior de um júri em um condado de Los Angeles para que os espectadores acompanham a dinâmica de um tribunal de júri: o processo seletivo dos jurados e as mazelas do dia a dia em isolamento, enquanto ocorre o julgamento.

Ronald não sabe que todos ao seu redor são atores, inclusive o juiz, advogados e o próprio réu, enquanto os produtores coordenam cuidadosamente o enredo, para colocar o inconsciente protagonista em situações cada vez mais desconfortavelmente hilariantes e dilemas morais ridículos.

Por exemplo, será que uma pessoa comum assumiria a responsabilidade pelo entupimento do banheiro de um hotel pelos gigantescos excrementos do ator James Marsden (interpretando a si mesmo)? Só porque Ronald é fã do ator que fez filmes como X-Men e Sonic?

Para preencher os oito episódios, de pouco menos de meia hora cada, a produções cria uma sequência exponencial de acontecimentos engraçados, bizarros e que colocam Ronald em situações em que ele demonstra não ser o típico sociopata narcísico em busca da fama que vemos nesse tipo de programa – ao contrário, ele parecer ter empatia e sempre está solicito e tenta ajudar as pessoas em inacreditáveis dilemas.

Porém, o interessante são os limites da invenção e os meta-comentários sobre a “televisão realidade”. Em um momento chave, Ronald começa a achar as situações tão malucas que desabafa: “parece que estou num reality show!”.

Está é a questão metalinguística central em Na Mira do Júri: por que, apesar das situações malucas e bizarras, Ronald continuou acreditando que tudo era verossímil, real? Apesar de todas as canastrices, principalmente do ator James Marsden que carrega nas tintas ao interpretar a si mesmo, a sensação de “realidade” continuou estranhamente inquestionável para Ronald.

Para além da crítica sobre o esgotamento da fórmula do gênero reality show, Na Mira do Júri coloca como centro da discussão a questão da canastrice da nossa concepção de realidade: como a realidade se torna cada vez mais “real” quanto mais ela emula a narrativa ficcional.



A Minissérie


Ronald Gladden aparece no Tribunal Superior de Huntington Park, condado de Los Angeles, para cumprir seu dever cívico como um potencial jurado. Ele conhece alguns estranhos excêntricos, todos esperando para serem selecionados para servir em um julgamento, incluindo o ator James Marsden, que performa uma versão exageradamente egoísta de si mesmo.

Gladden está ciente das câmeras ao seu redor, supondo que ele esteja participando de uma série de documentários para a televisão pública. Sem o conhecimento de Gladden, todos ao seu redor, incluindo o juiz, oficial de justiça, advogados e colegas jurados, são todos atores profissionais. Até mesmo o julgamento em si é falso. 

Gladden é selecionado para compor o júri e encerrado em um hotel com seus colegas jurados, sem qualquer conexão com o mundo exterior por três semanas. Ele também recebeu a responsabilidade de ser o presidente do júri. Como esperado, Gladden começa a perceber que aquele não será apenas o um julgamento comum.

A comédia decorre quase inteiramente das reações naturais de Gladden, à medida que o julgamento e as tarefas ao longo das semanas em isolamento se tornam cada vez mais estranhas. Gladden faz amizade com seus colegas jurados, independentemente de suas idiossincrasias. Quanto maiores as responsabilidades recebidas por Gladden à medida em que o julgamento avança mais ele conhece os jurados ao seu redor, fazendo amizades e ajudando-os em várias tarefas com empatia e bondade de seu coração. 

Por exemplo, ele ajuda James Marsden a repassar as linhas de diálogo de um roteiro para uma audição que o ator passará para um novo filme. Também se liga a um nerd obcecado por gadgets transhumanos introvertido e o ajuda a sair de sua concha de timidez. Além de ajudar um rapaz (com problemas com a namorada) a perder a virgindade, ajudando-o a ficar com uma colega jurada que tem uma queda por ele.



Os episódios são uma sequência de cenas de humor físico, ataques de paparazzis, mal-entendidos e situações surreais, sempre com Gladden no centro de tudo.

Tudo foi meticulosamente planejado pela produção, enquanto uma equipe de controle de câmera liderada pelo diretor Jake Szymanski se esconde em uma sala próxima. 

A minissérie encontra um bom ponto de equilíbrio: Gladden nunca é colocado como alvo da piada (como tradicionalmente ocorrem na media prank ou “pegadinhas”). Ao contrário, ele passa o tempo inteiro rindo e se surpreendendo com as tolices e idiossincrasias dos personagens no seu entorno.


Canastrice da percepção


Porém, esse é o ponto crítico de Na Mira do Júri. Apesar da perplexidade de Gladden ao afirmar a certa altura de que “isso parece um reality show!”, por que ainda sim aceitou tudo como uma realidade dada? Por que ainda assim não desconfiou de nada?

Pelo menos em Show de Truman, o infeliz protagonista praticamente nasceu na gigantesca cidade cenográfica de Seaheaven – ele cresceu aceitando a realidade perceptual como dada por não possuir alguma referência de contraste.

Em Na Mira do júri temos uma situação completamente diferente. Gladden foi convidado e aceitou participar de um suposto documentário sobre um tribunal do júri, sem desconfiar da dinâmica dos eventos: todos os fatos engraçados giravam ao seu redor, sempre cobrando dele uma reação. Os eventos somente aconteciam quando Gladden estava presente. Essa recorrência parece ter passado longe da consciência.



Temos aqui o fenômeno pós-moderno da canastrice da percepção, isto é, da maneira como a imagem precede a realidade – para nós a realidade torna-se mais verossímil na medida em que emula a ficção. Na verdade, ao entrar naquele tribunal, Gladden parece ter tomado como referência todos os clichês de filmes e séries sobre julgamentos e tribunais. Ao ver como a “realidade” confirmava todos os clichês do inconsciente coletivo (a indústria do entretenimento dos EUA tem uma verdadeira obsessão por dramas sobre tribunais do júri), sequer desconfiou da coreografia daqueles personagens estereotipados ao seu redor. 

Clichês canastrões da anos de indústria de entretenimento que nos envolve acabaram moldando nossa percepção, de tal forma que somos incapazes de percebermos a falsidade de constructos, simulações, pseudo-eventos. As implicações no campo da comunicação política parecem óbvias.

Por outro lado, Na Mira do Júri pretende explorar tanto no protagonista como no espectador os melhores sentimentos: aquele grupo de estranhos peculiares e coloridos com quem o protagonista interage quer sempre passar a mensagem da força do relacionamento e da amizade dentro dos corredores de um tribunal. O que revela o talento de improvisação de um grupo de atores pouco conhecido pelo público. É delicioso acompanhar o talento de atores que devem interagir com cada resposta de Gladden, sem perder de foco que devem ocultar todo o artificialismo das situações.

Essa é a grande virtude da minissérie: evita cair no riso fácil (e regressivo) das “pegadinhas” dominantes na TV em que sempre uma vítima inconsciente reage de forma humilhante a situações artificiais, concebidas para o prazer voyeurista do público.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Na Mira do Júri (série)

Criação: Lee Eisenberg e Gene Stupnitsky

Roteiro:  Tanner Bean, Katrina Mathewson< Lee Eisenberg

Elenco:   James Marsden, Alan Barinholtz, Susan Berger, Cassandra Blair, Bean Seaward

Produção: Freevee

Distribuição: Prime Video

Ano: 2023

País: EUA

   

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