O leitor deve conhecer a peça teatral de Ariano Suassuna “O Auto da Compadecida”, pelos menos através do filme e da minissérie. E principalmente deve lembrar do ápice final no qual os protagonistas ficam perante o acusador (Satanás) e a Compadecida (a Santa defensora dos réus), combinando religiosidade católica com a crítica social das injustiças e desigualdades econômicas. Se assistir ao filme “Limbo – Entre o Céu e o Inferno” (2019), certamente lembrará dessa obra de Suassuna: um homem desperta no Limbo para se encontrar num julgamento, preso entre um promotor amargo e uma advogada de defesa inexperiente. Deus e Lúcifer têm um estranho interesse por um caso que poderia ser mais um entre milhões de almas condenadas. O diretor/escritor Mark Young vai além de um conto moralista sobre culpa, perdão e redenção - desconstrói o conto moral através do niilismo gnóstico: e se este julgamento for uma farsa para encobrir que na verdade o homem é um mero joguete de uma guerra entre Deus, anjos celestes e anjos decaídos? Será que o Universo tem um plano divino para a humanidade ou tudo não passa de uma grande piada cósmica? Filme sugerido pelo nosso colaborador Felipe Resende.
O Filme Limbo – Entre o Céu e o Inferno (2019) é uma pequena joia perdida nas produções cinematográficas do ano passado.
Mal cotado no IMDB (4,7), pouco divulgado, com praticamente nenhuma resenha crítica no meio especializado, exibido em poucos festivais do gênero Fantástico (único destaque, apenas junto ao público, no Manchester Film Festival no ano passado), esse filme dirigido por Mark Young a princípio parece um conto moral no melhor estilo Além da Imaginação: depois a morte um homem desperta no Limbo, pronto para o início de um julgamento em que ele é o réu. Tem diante dele um amargo e vingativo promotor que quer condená-lo a todo custo.
Em sua defesa, uma advogada inexperiente – na verdade, aquele é o seu primeiro caso. E Lúcifer, em pessoa, tem um surpreendente interesse nesse caso em particular... e mais tarde descobrimos que até Deus... só que envia uma “advogada” iniciante e insegura. Por que?
O que está em jogo em torno daquele homem infeliz, com uma vida pregressa de crimes como roubos e homicídios? O que deveria ser mais um julgamento rotineiro para jogar mais uma alma infeliz nas chamas do Inferno, transforma-se numa espécie de disputa cósmica envolvendo anjos e demônios.
Como disse, Limbo é uma pequena joia fílmica. Não por aspectos técnicos, formais ou de linguagem. É uma produção de baixíssimo orçamento, com uma narrativa convencional e atores desconhecidos para o grande público, com performances medianas.
Limbo surpreende pela torção narrativa que retira o filme do campo dos contos morais para entrar na ambiguidade gnóstica na qual nada é aquilo que parece – ninguém é inocente, nem mesmo anjos e Deus.
Nas primeiras sequências, Limbo lembrará bastante ao leitor a peça teatral de Ariano Suassuna “O Auto da Compadecida” (que se tornou filme e minissérie), drama com elementos moralizadores e comédia fortemente inspirado na religiosidade católica. Principalmente no ápice final com o julgamento dos protagonistas perante o acusador (Satanás), a Compadecida (a Santa defensora dos réus) e Emmanuel – o próprio filho de Deus.
“O Auto da Compadecida” fazia uma sátira dos poderosos e uma crítica à discriminação dos pobres – uma crítica materialista inspirada na ética cristã: perdão, compaixão e amor ao próximo.
Mas Limbo vai além disso – faz uma surpreendente desconstrução desse clássico conto moral, entrando no campo do, por assim dizer, niilismo gnóstico: e se este julgamento for uma farsa para encobrir que na verdade o homem é um mero joguete de uma guerra entre Deus, anjos celestes e anjos decaídos? Será o homem prisioneiro de uma piada cósmica sem nenhum plano altruísta de salvação?
O Filme
Limbo acompanha um infeliz chamado Jimmy (Lew Temple) que desperta em uma pequena sala de escritório empoeirada, com gavetas de arquivos velhos, desarrumados e estranhos tubos de papel alumínio dependurados ou desarrumados nos cantos.
Ele não sabe como parou ali e eventualmente descobrirá que a sala não tem saídas: há apenas uma luz vermelha que brilha por trás das vidraças opacas e uma pequena cadeia anexa com homens e mulheres ensanguentados, como se estivessem à espera da sua vez.
Logo entra em cena Balthazar (Lucian Charles Collier), um jovem com um terno amassado e desarrumado, olhar entediado e trazendo uma pasta na qual tem a vida de Jimmy documentado.
A partir daquele momento Jimmy estará em julgamento naquela sala que faz parte do Limbo (uma região astral limite entre o Céu e o Inferno). Para Balthazar é mais um caso de condenação automática. Seu gerente, o demônio Belial (Peter Jacobson) espera que seu subordinado resolva a pendência o mais rápido possível para melhorar os números e a produtividade do Inferno. Há até uma promoção em vista, prometido pelo próprio Lúcifer (James Purefoy).
Mas de repente entra naquela sala Cassiel (Scottie Thompson), um elegante anjo de tailler e um rosto entre assustada e insegura. Ela é o advogado de defesa de Jimmy, inexperiente e sem saber direito porque Deus a tirou do tranquilo Departamento de Registros e Arquivos para o agitado Departamento de Clemência e Vindicação.
Cassiel terá a dura missão de conseguir uma Redenção para o criminoso Jimmy – seu último ato em vida foi o assalto a uma loja de conveniência envolvendo a morte da proprietária, deixando órfão duas crianças.
A advogada terá que encontrar no caso alguma brecha que redima Jimmy de seus pecados – encontrar na sua trajetória na Terra algum auto-sacrifício, algum ato altruísta e desmotivado de qualquer ganho pessoal.
Mas logo vamos percebendo que não estamos diante de um mero tribunal no qual promotor e defesa têm um confronto técnico: Cassiel e Balthazar são anjos e irmãos, filhos de Deus. Ele, um anjo que decaiu e agora trabalha como acusador no Inferno. Nutre uma profunda desilusão pelas almas humanas (para ele não passam de “macacos” que sempre rumam para o Inferno). E Cassiel, um tímido anjo que não consegue entender o porquê de Deus estar tão interessado num caso aparentemente perdido.
Mas se o Pai a designou, terá que dar o melhor de si mesma.
O Inferno é meritocrático
Porém, o caso vai ficando cada vez mais difícil para Cassiel com a chegada das testemunhas de acusação designadas por Balthazar: as próprias vítimas de Jimmy, cheias de ódio e sedentas por vingança.
Ao longo do filme vamos descobrindo dois interessantes pressupostos da narrativa: (a) os únicos que podem julgar são os anjos decaídos – os diabos apenas implementam a dor e o sofrimento; (b) o Céu lembra mais uma organização estatal burocrática, com Departamentos ocupados por cargos vitalícios. Enquanto no Inferno reina a competitividade e meritocracia para arrancar dos anjos e diabos a ambição e os piores sentimentos – há premiações e promoções pela produtividade e desempenho.
Tal como a Compadecida na peça teatral de Ariel Suassuna, Cassiel tentará provar a vida dura e injusta dos humanos como forma de justificar e perdoar os crimes – Jimmy era filho de uma mãe drogada que o obrigava a ajuda-la no vício, inclusive com pequenos assaltos para conseguir mais dinheiro. Mas tudo se mostra insustentável e a condenação de Jimmy é certa, ainda mais quando Cassiel joga a toalha ao descobrir que o próprio Jimmy matou a mãe – uma das testemunhas de acusação.
Piada cósmica? – Alerta de Spoilers à frente
Mas, como dissemos acima, Limbo não é mais um conto moralizante: nada é o que parece – a atmosfera noir do filme parece nos querer dizer isso a todo momento.
Como sabemos, Deus escreve certo por linhas tortas. Seus “caminhos misteriosos” são sempre oblíquos ou labirínticos, nunca diretos. Assim como no recorrente tema na cinematografia atual. Por exemplo, em filmes como Prometheus ou Êxodo: Deuses e Reis, ambos de Ridley Scott, a humanidade nada mais é do que um peão entre o verdadeiro conflito: aquele entre os deuses.
Sempre a humanidade ao final descobre que nada foi uma questão sobre o seu destino como criaturas feitas aparentemente à imagem e semelhança de Deus. Do pó e do barro fomos criados para sermos os joguetes das lutas entre deuses nas quais, cada um, tenta provar o seu ponto de vista. E a Terra nada mais é do que o palco da deliberada simulação de eventos para os deuses observarem como reagimos para comprovar ou não as teses dos promotores e defensores.
Esse é o mesmo niilismo gnóstico de Ridley Scott proposto por Limbo de Mark Young: Deus, anjos e demônios não nos amam. Aliás, nada somos diante deles para despertar algum sentimento como “ódio” ou “amor”. Para eles, nada mais seríamos do que fantoches criados para as suas discussões particulares.
Definitivamente, Limbo não é um filme para religiosos: é gnosticamente ofensivo – o Universo não possui um grande Plano. É apenas uma gigantesca piada cósmica.
Ficha Técnica
|
Título: Limbo – Entre o Céu e o Inferno
|
Diretor: Mark Young
|
Roteiro: Marke Young
|
Elenco: James Purefoy, Scottie Thompson, Lucian Charles Collier, Lew Tmple, Peter Jacobson
|
Produção: Limbo Entertainment, Alternate Ending Films
|
Distribuição: A2 filmes
|
Ano: 2019
|
País: EUA
|
Postagens Relacionadas |