Tinha tudo para dar certo: uma adaptação de
livro do célebre Stephen King e narrativa repleta de alusões gnósticas,
esotéricas e políticas. De repente, de um profundo céu azul, cai sobre
Chester’s Mill uma gigantesca redoma invisível que isola a cidade do resto do
planeta. A redoma testará seus habitantes, retirando deles o melhor e o pior
que a natureza humana pode oferecer. Essa é a série “Under The Dome”
(2013-2015), do mesmo produtor de “Lost”. Mas o intrigante argumento (com a
marca de King ao explorar culpa, medo e o pecado dos personagens) não suportou ao
roteiro: uma colcha de retalhos repleta de eventos aleatórios e ricas alusões
gnósticas e religiosas que foram apenas jogadas para esticar a série por três
temporadas, sem desenvolver de forma consequente nenhuma ideia. O “Cinegnose” analisa as oportunidades perdidas de uma adaptação mal sucedida de Stephen
King.
Under The
Dome tinha todos os
ingredientes para ser uma excelente série: uma adaptação do livro de Stephen
King, a exploração de algo misterioso e absolutamente non sense (do nada, uma redoma, ou esfera, cai sobre uma cidade
inteira aprisionando todos os habitantes), a narrativa recheada de alusões
políticas (o protofascismo que emerge na psicologia das massas em situações de
crise), místicas e esotéricas que lembravam os bons momentos da antiga série
Lost.
Foi doloroso para esse humilde blogueiro
acompanhar o mergulho da série em personagens que tornavam-se não-personagens,
eventos aleatórios usados para arrastar as temporadas e um roteiro que
constantemente se utilizou daquilo que se chama “Deus ex-machina” – termo usado
para designar soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade para solucionar
becos sem saída encontrados em roteiros mal conduzidos.
O episódio piloto e a abertura da série são
impactantes: do profundo céu azul, de repente cai uma gigantesca redoma
invisível sobre uma pequena e pacata cidade chamada Chester’s Mill. Nos limites
da redoma as imagens são impactantes: uma vaca é cortada ao meio, casas
destruídas e aviões que sobrevoavam a região naquele momento colidem na
misteriosa redoma.
A locução que abre cada episódio é poderosa:
“há algumas semanas uma cúpula invisível caiu sobre Chester’s Mill cortando-nos do resto do mundo. O porquê da cúpula estar aqui e seus mistérios, não sabemos. Todos os dias testa nossos limites, trazendo à tona o melhor e o pior de nós. Dizem que ficaremos presos para sempre. Mas nunca pararemos de lutar para descobrir uma maneira de sair”.
O próprio argumento e o pôster da série
lembram a imagem símbolo do Gnosticismo que mostra um monge tentando observar o
que existe além do mundo. Na verdade uma imagem de Camile Flammarion de 1888
que representa a cosmologia medieval. Uma metafórica ilustração que representa
ao mesmo tempo as questões místicas e científicas do conhecimento.
Chester’s Mill transforma-se em microcosmo ou
uma cidade-prisão como tantas tramas gnósticas como a Seaheaven de Show de Truman ou a cidade-laboratório
dos aliens que confinavam seres humanos em Cidade
das Sombras (Dark City, 1998).
Um início promissor
Como em todas as obras de Stephen King, em Under The Dome estão presentes os seus
temas mais caros: culpa, pecados e punição. Um dos temores dos habitantes da
cidadezinha é de estarem sendo punidos pelos céus pelos seus pecados e
corrupção de seus líderes.
Por isso, a primeira temporada da série foi
promissora: alienígenas queriam criar uma espécie de cidade-aquário para
observar os seres humanos? Seria tudo um projeto secreto militar mal sucedido?
Na primeira temporada, o roteiro optou por um
caminho que lembrou bastante narrativas como a de Guerra dos Mundos com Tom Cruise: aos invés de focar em batalhas e
conspirações épicas (as ações externas do exército para destruir a redoma e a
repercussão midiática mundial é apenas sugerida em passagens rápidas) a série
concentra-se nos conflitos pessoais em Chester’s Mill – o incidente apenas
acirra desavenças e vícios pré-existentes e ocultados no dia-a-dia.
Ao invés de se reinventar (como consegue
fazer a segunda temporada de Mr. Robot,
depois de praticamente esgotar todos os trunfos da primeira temporada), Under The Dome se arrasta na segunda temporada mantendo o
mistério do porquê da redoma. Por isso, a cada episódio, são criados soluções,
novos personagens e “revelações” das formas mais arbitrárias.
“Deus ex-machina”
Por que Angie é assassinada a golpes de
machado? Por que Sam viu nos quadros pintados pela esposa de Big Jim (prefeito
da cidade) essa “metáfora” e acreditou que matando-a a redoma iria embora. Por
que a redoma apareceu sobre Chester’s Mill? A esposa de Big Jim (Pauline –
Sherry Stringfield) teria “profetizado” o bizarro acontecimento e tudo o que
viria depois em uma série de pinturas, por assim dizer, “mediúnicas”. Alguns
personagens tentam fazer a interpretação ao pé-da-letra das enigmáticas
pinturas criando efeitos catastróficos.
Em um episódio há uma praga de lagartas –
alusões a pragas bíblicas são feitas, mas logo é esquecido; no outro a redoma
move-se acelerando as estações do ano; de repente a redoma começa a encolher;
inesperadamente a redoma começa a ficar opaca... em outra calcifica... em um
episódio cidadãos comuns, orientados por uma professora de ciências escolar,
constroem em uma hora um enorme eletroímã em um moinho de vento para combater
uma anomalia eletromagnética; e assim por diante, numa sucessão inacreditável
de “Deus ex-machina” que faria corar
qualquer roteirista.
E o pior fica para a terceira temporada em
uma miscelânea de realidade alternativa, chuva de meteoros e planos malignos
alienígenas associado aos propósitos inconfessáveis de uma empresa energética
que vê na redoma uma fonte inesgotável de energia.
O protofascismo de Big Jim
Portanto, Under
The Dome deve ser analisado em torno das oportunidades que foram perdidas
para desenvolver temas bem interessantes.
Para começar, as manipulações e fabulações do
personagem Big Jim (Dean Norris). Ele parece ser o representante daquilo que
pior a natureza humana pode oferecer em momentos de crise. No fundo, Big Jim
não tem nenhuma curiosidade metafísica sobre a redoma. Ele vê na crise a
situação perfeita para manipular o medo e a ignorância para tornar-se um líder
ditatorial.
Em uma das crises tiradas da cartola dos
roteiristas, uma praga de lagartas ameaça dizimar as plantações, matando
Chester’s Mill de fome. Big Jim acredita que somente ele deve decidir que vive
e quem morre. Decisão difícil, com a comida rareando.
Mas entra em ação Rebeca, a professora de
Ciências escolar que desenvolve um vírus que, espalhado na água, faria todos
adoecerem. Somente os mais fortes sobreviveriam, criando, dessa forma, um
controle populacional por seleção natural.
Essa é apenas uma das maquinações de Big Jim,
sempre em busca do poder inquestionável, criando golpes e crises para criar
unanimidade em torno de si.
Big Jim é o típico “Red Neck” proto-fascista
do Meio Oeste norte-americano. Mas também representa a genérica psicologia de
massas fascista que emerge em crises sociais e políticas – a busca de uma
liderança autocrática que aponte o culpado, o bode expiatório para o mal estar
coletivo.
Ciência versus Religião
Um tema subjacente e pouco explorado ao longo
da segunda temporada é a oposição entre as personagens Rebeca (Karla Crome - a
Ciência) e Julia (Rachelle Lefevre - Religião e Misticismo). Para Julia e
muitos habitantes a redoma começa a se tornar um ser senciente: tem exigências,
vinga-se, pune etc. Praticamente torna-se o Deus do Velho Testamento bíblico –
punitivo e intolerante.
Rebeca tenta utilizar os conhecimentos
científicos para enfrentar as anomalias e a natureza da redoma. Em vários
capítulos essa tensão fica latente e pouco desenvolvida.
A não ser nos momentos em que Big Jim tenta
manipular tanto uma quanto a outra para alcançar seu objetivo político
principal: o poder autocrático.
Melhor desenvolvido, o tema da natureza
divina da redoma transformaria Chester’s Mill definitivamente num microcosmo da
condição humana: criacionismo, evolucionismo, a hipótese alienígena da criação
humana, Gnosticismo, todos são temas apenas jogados e jamais desenvolvidos.
O que tornou toda a série uma colcha de
retalhos de temas interessantes, mas desperdiçados.
Gnose e salto de fé
A certa altura na segunda temporada, Julia e
seu namorado Barbie (Mike Vogel) involuntariamente descobrem uma saída: numa
caverna sob a escola (a Ciência) descobrem um precipício. Barbie cai
acidentalmente para sair em um parque na cidade vizinha chamada Zenith.
Mais um “Deus ex-machina” para fazer a série
andar, porém com um simbolismo gnóstico em potencial que não foi explorado.
Toda a cidade poderia escapar pelo precipício, desde que cada um aceitasse o
“salto de fé”, expressão usada pelos personagens – ter coragem para saltar em
um buraco escuro e sem fundo.
“Salto de fé” é uma expressão com evidente
sabor gnóstico: saltar para o vazio numa decisão de fé. É a única forma que os
personagens vislumbram para escapar daquele microcosmos que representa (ou
deveria representar) a condição humana.
O salto da fé é o “estado de suspensão” da
consciência – se a racionalidade confina a mente em dualidades (bem/mal, realidade/ilusão
etc.), a suspensão das dualidades e da racionalidade permitiria o silêncio e a
abertura da consciência para o chamado “tertium quid”, o terceiro elemento para
além das dualidades e que supere a ilusão dos opostos. A gnose.
Em si a sequência seria rica em simbolismos:
o precipício para o salto de fé está no subterrâneo de uma escola: o
inconsciente da Ciência?
Uma pena os desperdícios de Under The Dome. Ainda mais sabendo que
um dos produtores da série (Brian K. Vaughn) foi também produtor da bem
sucedida série Lost, também rica em
alusões gnósticas.
Ficha Técnica |
Título:
Under The Dome (série)
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Criador:
Brian K. Vaughan
|
Roteiro:
Brian K. Vaughan baseado no livro de Stephen King
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Elenco:
Mike Vogel, Rachelle Lefevre, Alexander
Koch, Colin Ford, Dean Norris
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Produção: Amblin
Television, Baer Bones, CBS Television Studios
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Distribuição:
CBS Television
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Ano:
2013-2015
|
País:
EUA
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