Indicado ao Oscar de Melhor Filme, Diretor e Atriz, “Tár” (2022) é um filme sobre uma brilhante maestra e compositora chamada Lydia Tár (numa interpretação visceral de Cate Blanchett) cuja vida e carreira desabam após chegar ao topo da cadeia alimentar no circuito promocional altamente predatório da música clássica. O diretor Toddy Field quer discutir algo que vai muito além da cultura de cancelamento: como a criação artística brilhante e original pode se perder num labirinto em que a necessidade de ser personalista e arrogante faz parte essencial do negócio para acumular capital simbólico num mercado tão competitivo. Por isso a simbologia do labirinto é central (recorrente em diversas cenas): virtudes públicas e vícios privados combinados com o mix da arte, poder e influência criam o inferno para a protagonista, enquanto a genialidade vai se perdendo pelos becos sem saída de um labirinto.
As redes sociais parecem ter criado outros tribunais, para além daqueles constituídos pelo Estado de Direito: os “tribunais” de cancelamento, nos quais quase instantaneamente através das redes pessoas podem ser julgadas, sentenciadas e executadas – uma malha fina cujas evidências contra o acusado sempre se originam do próprio ecossistema de informações das redes sociais. Portanto, ponto de vista da ecologia informacional, a cultura do cancelamento parece ser mais uma evidência do solipsismo do fenômeno da “Media Life”, como descrito por Mark Deuze – clique aqui.
Se na cultura do cancelamento a acusação automaticamente já implica em culpa, o resultado é a expulsão sumária do condenado de uma posição de influência, fama ou poder pelas atitudes consideradas questionáveis.
A cultura do cancelamento já foi criticada como a versão virtual de fenômenos como censura, macarthismo, linchamento etc.
Porém, o mais preocupante não é apenas o banimento de uma pessoa (seja artista, cientista etc.), mas o cancelamento da sua própria obra intelectual pelo fato de supostamente estar contaminada pelas más condutas éticas e morais do autor. Ou pior, até pela sua própria nacionalidade, como vem acontecendo com a obra do compositor Tchaikovsky, banida do circuito das orquestras filarmônicas ocidentais pela sua nacionalidade russa – algo imperdoável, desde que a Rússia respondeu ao avanço da OTAN em direção das suas fronteiras invadindo a Ucrânia.
Será que os 50 filmes dirigidos por Woody Allen devem ser condenados ao esquecimento depois que o #MeToo ressuscitou uma antiga acusação feita por sua ex-mulher Mia Farrow, em 1992, de que o diretor teria abusado da filha adotiva do casal, então com 7 anos? Seria então impossível separar a dimensão pública da privada nesses casos? O trabalho intelectual que aspira à virtude universal estaria corrompido por supostos vícios da vida privada?
O filme Tár (2022) toma como pano de fundo essa cultura do cancelamento para contrapor a extensa e genial produção artística da regente, compositora, musicóloga e etnóloga Lydia Tár (Cate Blanchett) e o questionamento dos valores e ações pessoais como assédio e abuso valendo-se da sua posição de poder e influência. Até que ponto os pecados privados podem atrapalhar a avaliação artística da contribuição da obra de Tár para a música universal?
Tár é a regente titular de uma grande orquestra alemã, tratada pelos colegas como “maestro”. Ela é apaixonada, exigente, autocrática, com prestígio de rockstar e um estilo de vida itinerante internacional próximo ao dos super-ricos, e é casada com a primeira violinista da orquestra, Sharon (Nina Hoss) com quem tem uma filha adotiva.
Mas há problemas na vida de Tár. Ela dirige um programa de bolsas de mentoria para mulheres (Tár quer trazer a diversidade de raça e gênero para o ambiente da música clássica), administrado por um aspirante a maestro Eliot Kaplan (Mark Strong) e há rumores de que Tár utiliza-se da oportunidade para, com seu poder e influência, assediar jovens músicos com quem ela tem casos – e aparentemente a esposa Sharon sabe disso, e apenas tolera.
Sobre o pano de fundo do cancelamento, o filme quer discutir algo mais além: Lydia Tár desenvolve uma obra artística brilhante e original, mas num território em que a necessidade de ser personalista e arrogante faz parte essencial do negócio: é a condição estrita para acumular capital simbólico (prestígio, distinção, status e influência) num campo midiático altamente competitivo.
As reflexões do pensador Theodor Adorno sobre o fetichismo da música no pós-guerra já apontavam para o papel sobrevalorizado dos líderes na música, do estrelismo do maestro ao front leader de uma banda de jazz – reproduzem a própria desigualdade social e verticalização do controle do trabalho pelo Capital – Leia ADORNO, Theodor. “Sobre a Música Popular” In: COHN, Gabriel (org.) Theodor Adorno, Coleção Grandes Cientistas Sociais 54, Ática, 1986.
Livros, capas de discos e CDs e pôsteres promocionais destacam os maestros estelares e cantores de ópera pop-stars – um mercado em que o valor artístico em si da música deve ser empacotado com a grife do compositor-regente celebridade.
O Poder corrompe? Essa é a discussão mais profunda em Tár: até que ponto alguém artisticamente brilhante pode se perder no labirinto da acumulação de capital simbólico, jogo que a protagonista obrigatoriamente teve de aceitar. Não é à toa que o labirinto é um símbolo recorrente na narrativa.
O Filme
Conhecemos Lydia Tár enquanto ela é apresentada a uma multidão no Lincoln Center, para uma conversa no palco com um escritor da revista The New Yorker. O repórter lista o currículo impressionante de Tár como pianista, compositor ae maestro de renome mundial - embora o fato de a assistente pessoal, Francesca (Noémie Merlant), saber dessa introdução de cor sugere que o elogio foi pré-escrito pela assessoria da regente (talvez, até, escrito por Francesca), e não pelo escritor da New Yorker.
Mais tarde, vemos Tár editando sua própria página da Wikipedia para adicionar a afirmação do The New Yorker de que ela é uma das “figuras musicais mais importantes de nossa era”. Essa uma pequena introdução para mapearmos o campo da música clássica, altamente personalista e baseado na promoção de estrelas. Nada diferente da música pop.
Logo também sabemos que ela não é uma pessoa, digamos, muito legal. Quando palestrava como convidada na Julliard School, em Nova York, ela humilha um jovem estudante de composição musical negro que diz não se interessar em compositores brancos, misóginos e heteros como Bach. Tár exorta os alunos de forma bem erudita a não avaliar o gênio de Bach a partir da sua vida privada. Mas acaba sugerindo de forma passivo agressiva que o aluno só se interessa por compositores com quem queira dormir – ofendido, o aluno se retira da sala. Esse será um dos fios soltos deixados pela protagonista que, mais tarde, será usado contra ela.
Enquanto isso, a assistente, Francesca, está preocupada com uma jovem chamada Krista Taylor (Sylvia Flote), que era bolsista do programa “Tár's Accordion Foundation”, que ela fundou para ajudar aspirantes a regentes e incentivar a diversidade no campo da música clássica.
Krista tem enviado e-mails cada vez mais desesperados a Francesca, que Tár dá ordem para ignorar. Mais tarde, fica implícito que Tár teve um relacionamento sexual com Krista que terminou mal - ou, talvez, que Krista tenha rejeitado os avanços de Tár, o que nunca fica claro. O que resultou numa resposta agressiva: colocou Krista na lista negra do mundo da música. Isso não é diferente de como o estuprador condenado e ex-chefe de Hollywood, Harvey Weinstein, colocou na lista negra atrizes que o acusaram de má conduta sexual.
A ascensão de Lydia Tár foi sempre constante e segura: de regente titular na Orquestra Filarmônica de Boston, passou à Filarmônica de Nova York para alcançar o topo da montanha: a Filarmônica de Berlim. Além de ter sido uma das poucas a ganhar os principais prêmios da indústria do entretenimento: Grammy, Oscar, Emmy e Tony.
Agora, espera a sua consagração final para a história da música: a gravação ao vivo da Quinta Sinfonia de Mahler em Berlim, fechando um ciclo completo. Mas chegar ao topo da cadeia alimentar aumenta a paranoia. Tár parece ser imprudente, deixando muitas linhas soltas ao longo da sua vida pessoal. Chegam a e-mails ameaçadores de Krista para a assistente Francesca, mas Tár continua querendo evitar qualquer interação. É inegável que uma bomba relógio foi disparada, e que explodirá eventualmente durante as quase duas horas e meia do filme.
Ela torna-se insone. Acorda sempre no meio da noite ouvindo estranhos sons, como se alguém estivesse invadindo seu minimalista apartamento de concreto em Berlim. Ela teme algum tipo de conspiração, às vésperas do grande evento que fechará o mais importante ciclo da sua carreira.
Essa bomba explodirá na situação clássica da cultura do cancelamento: após o escândalo do suicídio de Krista, todas as atenções dos desafetos da maestra se voltam contra ela nas redes sociais. Todas as pontas soltas da vida de Tár como predadora sexual são expostos em vídeos cuidadosamente editados – inclusive o episódio com o aluno na Julliard School.
Tár e o significado do labirinto – alerta de spoilers à frente
Com a escalada do cancelamento, cujo ápice é a sua substituição por outro maestro na gravação da Quinta Sinfonia de Mahler, só resta para Tár retomar os contatos do outro lado do mundo, bem longe do Ocidente: nas Filipinas, termina regendo ao vivo uma orquestra que executa o tema do game Monster Hunter, para uma plateia cosplay dos personagens do jogo eletrônico. Final irônico, contrastando com o início de glória, com a The New Yorker fazendo o elogioso currículo de Lydia.
O labirinto certamente é o simbolismo explorado pelo filme que parece querer sintetizar a condição da protagonista: um gênio da música que aceitou cair na confortável armadilha dos jogos de poder de um meio tão verticalizado.
Tár recebe um livro pelo correio com uma mensagem cifrada: um labirinto desenhado na página inicial do livro; insone, Tár levanta no meio da noite para encontrar em seu apartamento outro labirinto desenhado, semelhante ao livro enviado por Krista; outro labirinto reaparece na cena em que Lydia descobre o metrônomo no meio da noite; em papéis espalhados em outro apartamento em Berlim, Lydia encontra o labirinto desenhado em papéis jogados pelo chão.
Será que essa recorrência simbólica significa que Lydia ficou prisioneira de um labirinto que ela própria criou?
Na tradição simbólica, o labirinto tem duplo significado antagônico. No Palácio cretense de Mino, de cujo labirinto Teseu só conseguiu fugir com o auxílio do fio de Ariadne, o labirinto representa o entrecruzamentos de caminhos, impasses e becos sem saída. E na tradição cabalística, o labirinto conduz o homem a uma viagem interna, busca de um santuário interior no qual reside o mais misterioso da pessoa humana. E o centro do labirinto como o final da Iniciação espiritual.
Portanto, a discussão que o diretor e roteirista Todd Field que propor vai muito além da cultura do cancelamento. O brilho genial de Lydia Tár acabou prisioneira em um confortável labirinto que em troca da genialidade oferece poder e influência. Um sistema que extrai o pior de nós mesmos: a tentação de desfrutar de forma amoral dos prazeres que o poder oferece; e a pulsão paranoica de tentar a todo custo se manter no topo de cadeia alimentar em que se transforma muitos campos profissionais.
Esses são os dois lados da moeda que se retroalimentam. Enquanto a genialidade da protagonista se dispersa pelos corredores desse labirinto. O velho drama cosmológico gnóstico: o ser humano somo prisioneiro de um sistema que obtém de nós a energia vital; enquanto arranca o pior de nós para nos manter prisioneiros desse mesmo sistema.
Ficha Técnica |
Título: Tár |
Direção: Todd Field |
Roteiro: Todd Field |
Elenco: Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss, Sophie Kauer, Mark Strong |
Produção: Focus Feature, Standard Film Company |
Distribuição: Focus Feature |
Ano: 2022 |
País: EUA |