Corremos
diariamente contra o tempo para atender aos valores da eficiência, desempenho e
produtividade que regem a sociedade atual. Ao contrário, na música o tempo é
uma ferramenta de expressão artística e não um inimigo. E também um meio para a
improvisação e surpresa. Mas no filme "Whiplash" o tempo não é musical: é
disciplina e performance – um baterista de Jazz iniciante tem que tocar cada
vez mais rápido até sangue e suor caírem sobre o set do instrumento. Em um
conservatório de Nova York, alunos de Jazz vivem sob o fascínio dos grandes
virtuoses do passado sob a regência de um professor ditatorial e manipulador.
Para eles, a música é disciplina e os mestres do passado se tornaram virtuoses do Jazz porque
foram disciplinados através aprendizado pela dor e humilhação. Em "Whiplash", a
música se rende ao “no pain, no gain” – “sem dor, sem recompensa”, ao pé da letra – princípio
opressivo da meritocracia atual.
Na
música, e principalmente no Jazz, a expressão artística manifesta-se através de
quatro recursos: Tempo, Sensação,
Dinâmica e Prática. O Tempo é um
recurso, é o ritmo através do qual nos entregamos à música; a Sensação é como o Tempo nos envolve – a
sensação sinestésica da batida transformando o corpo do músico e o instrumento
em uma coisa só; a Dinâmica são as
forças que produzem o movimento determinando o quanto tal alto ou baixo tocamos
ou cantamos; e a Prática tem a ver
com disciplina e tenacidade.
A Prática refere-se a como o músico vai passar incontáveis
horas aperfeiçoando sua arte para comunica-se sem esforço com aqueles ao redor,
plateia e outros músicos. Assim como na linguagem oral e fonética, o músico
passa muito tempo desenvolvendo seu vocabulário para ter capacidade de
expressar sentimentos e emoções em um nível mais profundo.
E qual a melhor forma de aprender uma linguagem, seja a oral
ou musical? Estar na companhia daqueles que já aprenderam a falar ou tocar um
instrumento.
É por isso que Whiplash
é um filme sobre qualquer coisa... menos sobre música! Acompanhamos o protagonista Andrew Neimann (Miles Teller), um baterista
de jazz iniciante de 19 anos, em um conservatório musical de Nova York em uma
sala de prática isolado, tentando tocar a bateria (ou a “swingada dobrada”, o
grande desafio proposto pelo professor) cada vez mais rápida.
A sala de prática pode ser até um local solitário onde
desenvolve-se o vocabulário, a leitura e a escrita das partituras. Mas, em
última análise, precisamos sair para conversar com as pessoas e desenvolver
dialetos.
Mas em Whiplash
quando isso acontece, Andrew se depara com uma sala onde músicos calados e
cabisbaixos acompanham a regência de um professor ditatorial chamado Terence Fletcher
(J.K. Simmons), um verdadeiro metrônomo humano, capaz de manipular seus alunos
por meio de abusivos jogos mentais para produzir neles desconfianças mútuas,
desprezo e atitudes competitivas.
Música, abuso e humilhação
Se a música é uma linguagem que, como todas, aprendemos
conversando com pessoas, ao contrário, o filme mostra uma suposta “busca pela
perfeição” (aliás, um péssimo título em português para o filme) através da
superação de limites e a capacidade individual de resistir ao abuso e
humilhação.
Todos parecem estar ali não por gostarem de música, mas
movidos pela ambição de fazerem parte da orquestra de um Lincoln Center ou
assinar um contrato com a gravadora Blue Note. Whiplash não nos mostra um conservatório musical: há músicos,
instrumentos, partituras, mas tudo parece ser mais uma daquelas salas de
processos seletivos de candidatos a um emprego onde maquiavélicos gerentes de
RH inventam dinâmicas de grupo arbitrárias para selecionar aqueles que melhor
resistem à humilhações, stress e a pressão do tempo.
Aliás, Whiplash
parece tratar sobre o Tempo. Mas não o Tempo musical (o ritmo) como vimos
acima, mas o tempo disciplinar, performático – Andrew tem que tocar cada vez
mais rápido até que sangue e suor caiam sobre os pratos e tambores do set de
bateria. As mãos encharcadas de sangue não se prestam para um baterista
tecnicamente competente.
Em Whiplash os
grandes mestres do jazz como Charlie Parker, Buddy Rich e Jo Jones não são
reverenciados, mas tornam-se fantasmas que determinam o sucesso ou o fracasso
dos estudantes de músicas Por que? Porque Andrew e os outros estudantes do
conservatórios são oprimidos pelo virtuosismo dos mestres do passado, traduzido
em rapidez, performance, desempenho, precisão etc. É como a sociedade atual,
regida pelo princípio da disciplina como performance, interpreta o virtuosismo
artístico – pelo princípio corporativo do desempenho e a filosofia de autoajuda
do “no pain, no gain” – “sem dor, sem recompensa”.
O Filme
Andrew pratica até tarde da noite, solitário, na melhor
escola de música de Nova York quando o som da sua bateria cai nos ouvidos do
temido professor Terence Fletcher, o condutor da banda de jazz mais importante
do conservatório. Ele para, ouve, dá
ordens para que execute compassos e swingados (obviamente rápidos), vira as
costas e vai embora, aparentemente decepcionado com o que ouviu.
Sem saber, Andrew participou do primeiro momento do “método
de ensino” de Fletcher: jogos mentais que pretende “empurrar o aluno até o
limite”. E esse limite é o do stress, humilhação e dor.
Fletcher costuma contar uma história que justificaria o seu
pouco ortodoxo método pedagógico: a história de como Jo Jones jogou um prato de
bateria na cabeça de Charlie Parker após uma péssimo desempenho. Para Fletcher,
a humilhação fez Parker voltar para casa, praticar até o limite para depois se
tornar o legendário “Bird”. Para ele, se esse prato não tivesse sido disparado
na cabeça do músico, a história do Jazz não seria a mesma.
Por isso, Flecther usa uma técnica bárbara que envolve
chantagem, terror e tortura física tais como solos de bateria repetitivos até o
sangue se espalhar sobre o kit, como fosse uma espécie de octógono do UFC do Jazz.
A narrativa descreve a família de Andrew como a de um loser: filho de um pai professor de
literatura de uma escola secundária (Jim Neimann feito por Paul Raiser),
abandonado pela esposa, que passa o tempo com o filho assistindo filmes
enquanto come pipoca.
No seu quarto, Andrew se cerca com posters dos grandes
virtuoses do Jazz, enquanto se entrega a exaustivos exercícios no set de
bateria. Fletcher sabe disso, e usa a condição de “perdedor” da vida familiar
de Andrew para sadicamente estimulá-lo à competição com os outros bateristas do
conservatório.
“No Pain, no Gain”
Assistindo ao filme, não há como deixar de lembrar de O Cisne Negro (Black Swan, 2010) onde o diretor artístico de uma companhia de balé
chamado Thomas Leroy (Vincent Cassel) manipula Nina e Lily para arrancar delas
a melhor performance para escolher qual delas será bailarina principal da
montagem de O Lago dos Cisnes.
Mas enquanto nesse filme o diretor Aronofsky nos mostra uma
abordagem crítica de como a arte pode ser dominada por técnicas abusivas de
manipulação para buscar resultados corporativos para uma companhia de balé, em Whiplash o resultado é ambíguo, cujo
subtítulo em português (“Em Busca da Perfeição”) é sintoma – podemos achar
horríveis e antiéticos os abusos de Fletcher, mas no final até poderemos nos
convencer de que o “no pain, no gain” é correto porque eficiente. O elogio da
educação pela dor.
Em termos musicais é incômodo como o filme interpreta o
virtuosismo dos mestres do Jazz pela perspectiva do princípio da educação pela
dor e pela performance. Será que Charlie Parker teria ido para casa e refinado
seu estilo através da violência física? Será que o Tempo no Jazz e na música se
resume à questão de precisão, repetição e velocidade?
Whiplash não trata do Tempo, Sensação, Dinâmica e Prática
musicais, mas de como os valores da sociedade da performance e da disciplina em
que vivemos (eficácia, eficiência, produtividade etc.) invadem todos os
recônditos da cultura, seja o dos sonhos (tornar nossos sonhos produtivos para
o trabalho – sobre isso clique
aqui) ou até do Jazz, talvez o mais intuitivo dos gêneros musicais
baseado no improviso dos solos e das “jam
sessions”.
Na sociedade de performance, os valores da eficácia,
eficiência, rapidez e produtividade são disciplinares e impostos para construir
controle, hierarquias e estruturas de poder e dominação em todos os níveis.
Isso começou desde os tempos das linhas de montagem do
fordismo como bem retratou Tempos
Modernos de Chaplin. Mas com uma diferença: enquanto lá no passado a
necessidade de repetição e rapidez era experimentado como dor que provoca
alienação e mal estar, agora essa mesma dor é vivenciada como lição de vida
como divulga a pseudo-literatura da autoajuda corporativa – devemos ser
empurrados ao limite da dor, da humilhação e do stress para supostamente
encontrarmos nossas verdadeiras qualidades.
De filmes como Karatê
Kid a animações como Kung
Fu Panda, o cinema imortaliza essa ideologia. Por outro lado,
filmes como Kill Bill do diretor
Quantin Tarantino ridicularizaram essa “filosofia”, relegando-a ao trash das narrativas pulp fictions. Mas filmes como Whiplash ainda levam isso a sério.
Ficha Técnica |
Título: Whiplash:
Em Busca da Perfeição
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Diretor:
Damien Chazelle
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Roteiro:
Damien Chazelle
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Elenco: Miles Teller,
J.K. Simmons, Melissa Benoist, Paul Reiser
|
Produção:
Bold Films
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Distribuição:
Sony Pictures
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Ano: 2014
|
País: EUA
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