Se até a
explosão do sertanejo e forró eletrônicos as músicas vivam no trinômio Festa,
Sexo e Amor, hoje a parada de sucesso parece viver uma atmosfera mais sombria: de
um lado, nas letras, processos de lutificação (perdas, separações etc.); e do outro
acumulação de uma tensão sexual neurótico-compulsiva. Se revisitarmos as
críticas que Nietzsche fez ao seu ex-amigo, o compositor Richard Wagner,
veremos que guardam uma similaridade com os tempos atuais. Nietzsche via na
música de Wagner uma arte feita para o “homem doente de si mesmo”, que
necessita de três estimulantes psíquicos para sobreviver numa cultura decadente: “a
brutalidade, o artifício e a candura idiotizante”. A estrutura musical da
música de Wagner (leitmotiv, cromatismo extremo etc.) foi precursora da moderna
música de sucesso da indústria cultural. Portanto, na atual trilha musical da
crise brasileira podemos encontrar os elementos Wagnerianos
denunciados por Nietzsche – fragmentação, a sedução, a memória sobreposta a
expressão das emoções, repetição e previsibilidade, o artifício, a brutalidade. Seriam os sinais de uma caminhada para
a “décadence” e niilismo similares a de uma Alemanha que Nietzsche via
caminhando a passos rápidos para o abismo nazi-fascista?
No seu último
ano criativo (1888) antes do colapso mental e a morte, Nietzsche fez um acerto
de contas com a música e a personalidade do compositor Richard Wagner
(1813-1883). O compositor foi o artista que mais impactou Nietzsche, a ponto de
dedicar a ele a sua obra A Origem da
Tragédia. Posteriormente, cessaram as boas relações entre os dois.
O pensador logo
percebeu que por trás da conversão de Wagner ao Cristianismo e da exaltação da
alma e do nacionalismo alemães estavam a adesão da sua arte ao mercado, à
glória, à riqueza material e ao poder econômico e militar do império de
Bismarck.
Nietzsche então
passou a empreender um crítica lúcida daquilo que chamou de “a doença de
Wagner” que será também a “doença de uma época feita de histerismo, decadência,
modernidade e dinheiro”.
Com a invenção
do “leitmotiv” (“motivo condutor”, técnica de composição com a repetição de
temas relacionados a certas passagens numa ópera – depois largamente utilizado
no cinema e telenovelas), da “obra de arte total” (o apreço à imersão e na
experiência do espectador) e na construção da “arquitetura dramática”(projetos
de Wagner de construção de teatros exclusivamente para a execução de suas
obras), Nietzsche percebia intuitivamente o novo caráter mercantil de uma arte
voltada em si mesma para a publicidade – que mais tarde Adorno definiria como
música voltada à memória na qual arte se confunde com a capacidade de
recordação e previsão através da repetição.
Para Nietzsche
era a ascensão de uma música voltada para pessoas doentes e debilitadas em
busca de “estímulos revigorantes”. Nas palavras de Nietzsche:
A arte de Wagner é uma arte doente. Os problemas que ele coloca no palco nem mais nem menos que os problemas típicos dos histéricos – o caráter convulso de suas paixões, sua sensibilidade superexcitada, seu gosto por drogas cada vez mais picantes; sua instabilidade; e não menos do que qualquer outra coisa, a escolha dos seus heróis e heroínas considerados como tipos fisiológicos (uma galeria de doentes!), todas essas coisas juntas representam um quadro clínico que não deixa lugar de dúvidas. Wagner é uma neurose. (NIETZSCHE, F. O Caso Wagner: um problema para os músicos, Companhia das Letras, 1999, p.20).
Doente de si mesmo
O homem “doente
de si mesmo” (repressor dos seus instintos, flexível e inseguro) e enfraquecido
procuraria a excitação, seja através da violência, o ressentimento ou pela
música. E para Wagner, a sua arte ofereceria três grandes estimulantes para o
homem debilitado: a brutalidade, o artifício e a candura idiotizante.
E Nietzsche
finaliza: “Hoje em dia, só se faz dinheiro com música doente”.
Hitler dizia “que não se
compreende o Nacional Socialismo se não se compreende Richard Wagner”. O
pioneirismo e arrojo de Wagner em manipular as emoções através do leitmotiv, o
cromatismo extremo e a rápida mudança dos centros tonais foi o precursor da
moderno marketing, da propaganda política e da indústria cultural. E,
principalmente, da música que faz marketing de si mesma ao cativar e captar as
fraquezas humanas.
Nietzsche criticava o gosto
pelo artifício e efeitos, a falta de naturalidade, o instinto histriônico dos
seus personagens exaltados, “justaposto, calculado, postiço, um artefato” auto
promocional como “obra de arte total”.
Em síntese, para Nietzsche, Wagner
era o artista da decadência da vida moderna: pessoas enfraquecidas em uma
cultura decadente não se interessam por “arte pequena, curta, de raras e novas
plantas”, mas de tudo que aparenta ser grandioso, estimulante e excitante. Mas
que, no final, expressam “pessimismo, niilismo e neuroses”.
Se Wagner foi o precursor da
indústria cultural e mercantilização da arte, seria possível localizar essa
tríade de estímulos (brutalidade, artifício e candura idiotizante) no top 10 das músicas mais executadas pelas rádios brasileiras nesse mês de setembro?
Pois bem, para nos auxiliar vamos
nos valer de uma outra tríade, já discutida em postagem anterior sobre o hit
“Despacito” – clique aqui. Na oportunidade, adaptamos
a cínica visão existencial do cineasta Woody Allen (para ele, a existência
humana poderia ser resumida a três eventos mais significativos: nascimento, sexo, morte) a uma
metodologia para classificar as letras dos hits que parecem sempre girar em
torno dessa tríade.
A saber: Nascimento –
infância, pureza, inocência, brincadeira, jogo, amor romântico, saudades,
família; Sexo – amor erótico,
compulsão, vício, malícia, sedução, perversão, objetificação, fetiche; Morte –
violência, agressão, tristeza, melancolia, perda, separação, luto.
A tríade de Nietzsche
poderia ser aplicada no estudo da forma
dos hits; enquanto a cínica trinca conceitual de Woody Allen aplica-se ao temas
das letras, o conteúdo.
O Top 10 das músicas mais
executas no mês de setembro é esse:
1. “Ar Condicionado no 15” – Wesley Safadão
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2. “Amigo Taxista” – Zé Neto e Cristiano
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3. “Regime Fechado” – Simone e Sismaria
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4. “Avisa que eu
cheguei”- Naiara Azevedo part. Ivete Sangalo
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5. “Na Conta da Loucura” – Bruno e Marrone
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6. “Paradinha” - Anita
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7. “Despacito” – Daddy Yankee e Luis Fonsi
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8. “Cê Acredita” – João Neto e Frederico
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9. “Senhorita” – Victor e Leo
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10. “Amante Não Tem Lar” – Marília Mendonça
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A Forma da música de sucesso
A característica dominante
nessa parada de sucessos é o timbre vocal ao estilo dos cantores de axé music, de
trios elétricos e de palcos de grandes proporções – voz percussiva e com
excesso de vibrato laringo-faríngeo. São músicas de caráter vocal, deixando o
instrumental em segundo plano.
Por isso, a estrutura
musical é simples e com forte esquematismo: por exemplo, feita em Lá menor, Dó,
Mi menor e Sol, os acordes iniciam e terminam ciclicamente. Um padrão similar e
recorrente nas músicas. Nessa parada de sucessos, o mesmo esquema vocal e de
acordes está presente seja num sertanejo, funk, reggaeton, axé etc.
O artifício e a busca do
efeito são evidentes: timbre forte típico das maratonas vocais dos trios
elétricos para imprimir o efeito de força, potencia (eu posso!) e forma
histriônica de expressar sentimentos – amor, tesão, saudades, dor da separação
ou da traição etc. Se nas maratonas do carnaval da Bahia esse timbre tem uma
função e lugar certo, nos hits de sucesso soam deslocados e artificiais.
Há uma brutalidade nas
representações dos sentimentos: o ar condicionado no 15 para evitar que tanto
tesão entre em combustão, a prisão “em regime fechado” para representar o amor
do homem casado com sua amante, um homem alcoolizado que desabafa para um
taxista as “verdades” que dirá na cara da “safada” da “mulher bandida”.
Assim como os heróis
superexcitados das óperas de Wagner, os protagonistas desses hits são
neuróticos – intensidade de comportamento e incapacidade de resolver conflitos
internos e externos.
O Conteúdo da música de sucesso
O marcante desse Top 10 é
que apenas uma música (“Senhorita”) fala de amor (categoria “Nascimento” na
categorização Alleniana); as restantes estão entre o Luto (“Morte”) ou sexo
(“Sexo”): Luto – “Amigo Taxista”; “Regime Fechado”; “Avisa Que Eu Cheguei”; “Amante
não tem Lar”. Sexo – “Paradinha”, “Despacito”, “Ar Condicionado no 15”, “Na
Conta da Loucura”, “Cê Acredita”.
De um lado, a amante que
fala que o seu amado viverá numa cela com ela e abandonará sua família, o homem
alcoolizado que pega um taxi para dizer umas verdades na cara da safada, os
lamentos de uma amante que não tem um lar. E do outro a afirmação do sexo
quente (precisa colocar o ar condicionado no 15...), o homem que sabe dar conta
das “novinhas” (“se joga pra mim que hoje vai ter”).
As músicas descrevem
processos de lutificação (predestinada em não ter lar e amor, separações não
resolvidas com viés à violência no mínimo verbal etc.) e acumulação sexual
neurótica e compulsiva – niilista.
Curiosa essa dominância
temática: até à época da explosão do sertanejo e forró eletrônico com Michel
Teló e banda Matruz com Leite vivíamos na música popular o trinômio Sexo, Festa
e Amor. Hoje, parece que vivemos o movimento pendular entre o luto da separação
com abertura para bate boca e violência e o sexo sem amanhã.
Quase uma psicose bipolar,
com extremos entre euforia hedonista e luto, melancolia, perda.
Associando-se aos elementos
da forma, com uma música composta para vocais em vibrato com timbre de música
exaltação do carnaval dos trios elétricos, forma-se um conjunto esquizoide no
qual forma e conteúdo parecem excludentes: a dor da separação e o calor dos
prazeres íntimos sob um timbre vocal de carnaval fora de época.
Nietzsche acusava Wagner de,
sob a aparência da “obra de arte total”, não haver unidade artística, mas
fragmentação.
Se no blues temos uma
unidade forma e conteúdo (a guitarra lânguida em vibrato ou slide para conotar
tanto o erótico como a dor da perda combinando com vocais) na atual parada de
sucesso vemos o extremo oposto: a estridência Wagneriana de um conjunto
fragmentado cujo único objetivo não é dar ordem ou sentido às emoções – mas
seduzi-las no sentido mais estritamente propagandístico: evoca-las, mas sem dar
uma expressão. As emoções apenas ficam presas numa estrutura musical cíclica –
a chamada “música chiclete” que cola na mente, repetitiva, sem solução do tema
musical. Uma música mais feita para a memória do que para expressão artística
dos sentimentos.
Será que a
decadência da classe C com o fim da era lulo-petista do neodesenvolvimentismo é
o contexto para esse “baixo astral” (luto e sexo rápido) na parada de sucesso?
Preparação psíquica em massa para os tempos ainda piores que virão?
Nietzsche acusava Wagner de
ser o artista da decadência - como a sua música expressava o contexto de uma cultura doente que no século seguinte desembocaria no nazi-fascismo.
Por isso, é preocupante
encontrar na atual trilha musical da crise brasileira aquelas características
da música Wagneriana – fragmentação, a sedução, a memória sobreposta a
expressão das emoções, o artifício, a brutalidade.
Sinais de uma caminhada para
a décadence e niilismo similares a de
uma Alemanha que Nietzsche via caminhando a passos rápidos para o abismo?
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