Em “Excluídos” (The Strays, 2023) o terror racial de Jordan Peele (Corra, Nós) se encontra com o terror social de Joon-ho Bong (Parasita). Uma mulher vive uma vida aparentemente perfeita em um subúrbio de classe média alta, trabalhando como vice-diretora em uma prestigiosa escola privada e vivendo ao lado de seu marido e dois filhos. Negra, ela vive perpetuamente tensa e paranoica, querendo a todo custo tornar-se “branca” para ser definitivamente aceita pela comunidade. Quando começa a desconfiar que está sendo seguida por dois estranhos que poderão colocar em xeque sua desesperada escalada social. “Excluídos” é mais um exemplo de um novo campo aberto para o gênero: como as desigualdades sociais e de gênero podem ser propulsoras para uma nova dimensão do terror. Filme disponível no Netflix.
Nesse século o gênero terror vem abandonando sua matriz freudiana clássica (a edipiana com seus plots da culpa e sexualidade reprimida) para seguir em duas tendências: de um lado, o terror racial como em filmes como Corra e Nós (Jordan Peele) e a série Them; e do outro o terror social e de gênero como em Parasita, Barbarian e Men.
O terror originado da precarização do trabalho (veja o filme Spree, p. ex.), da combinação desse tema com a desigualdade social crescente (Parasita, Round 6), da masculinidade tóxica (Men) ou da apropriação da cultura negra pelos brancos (Corra) são temas recorrentes nos últimos anos, que apontam para um aprofundamento tão grande das desigualdades (lutas de classe e raciais) que chegam às raias do sobrenatural e do horror demasiado humano da vingança e do ressentimento.
Excluídos (The Strays, 2022) é mais uma produção dessa tendência do diretor e roteirista estreante Nathaniel Martello-White com a atmosfera de Corra e uma sequência final inesquecível com referência direta ao filme Parasita. O filme se inspira numa história ouvida pelo diretor sobre uma mãe birracial que abandono seus filhos para começar uma nova vida, branca e abastada.
Um filme que começa como um drama clássico sobre a hipocrisia e mentira que pulsa no subterrâneo do sonho americano da vida dos subúrbios de classe média, dessa vez transposto para uma pequena comunidade abastada na Inglaterra.
Em Excluídos encontramos uma mãe chamada Neve (Ashley Madekwe) que vive uma vida aparentemente perfeita num subúrbio com o marido e dois filhos. Ela é vice-diretora de uma escola particular local e está planejando uma festa de gala beneficente para arrecadar fundos para combater a fome em algum país africano. Mas sua vida cuidadosamente construída está prestes a desmoronar da pior maneira possível.
A princípio, Excluídos pode ser interpretado como uma releitura identitária do drama da desigualdade social aprofundada pela precarização do trabalho no filme Parasita – uma protagonista negra que parece ter proscrito seu próprio passado para reciclar-se como alguém que tenta ser aceita como branca, casada com um marido branco, e que faz de tudo para cumprir à risca o papel de uma comunidade rica.
Até o momento em que ouve que ela “praticamente” já faz parte da comunidade. O termo “praticamente” acende a luz amarela de que Neve deve fazer ainda algo a mais, para além de todos os sacrifícios – como, por exemplo, esconder seu cabelo natural por baixo de pesadas perucas, maquiar-se diariamente com cremes especiais para tentar clarear a pele e aprender a falar com um sotaque british mais elegante.
Apesar de tudo, uma amiga continua lembrando que ela ainda é diferente, seus filhos são mestiços e que enfrentam micro-agressões cotidianas na escola. Neve nada mais faz do que dar um “xampu especial” para a filha lavar o seu cabelo texturizado e encaracolado. Paranoica, Neve está sempre vigilante, temendo que em algum momento seus filhos abraçem a cultura negra.
Porém, ainda Freud está presente: o reprimido sempre retorna. O passado do qual tenta fugir aparentemente continua a persegui-la. Neve teme que essa perseguição seja literal. E a paranoia crescente ameaça destruir todo o seu plano de viver uma vida branca de conforto e prestígio.
Neve se submete a uma tortura diária, perpetuamente nervosa e paranoica. Ela está à espera da redenção com a festa filantrópica politicamente correta que ela planeja com todos os detalhes – quem sabe se ele abraçar a caridade hipócrita dos brancos, poderá ser integralmente aceita por eles?
O Filme
Este aspecto do filme é uma reminiscência de Nós , de Jordan Peele , na forma como é encenado e filmado. Até mesmo algumas das cenas iniciais do bairro lembraram de Corra. Está claro que Peele é uma inspiração cinematográfica para Martello-White.
Na primeira sequência de Excluídos conhecemos Cheryl, insatisfeita com a sua vida social e financeira – vemos faturas vencidas de cartão de crédito enquanto conversa ao telefone reclamando a sua condição financeira. Apesar de ter sido premiada por três anos seguidos a “melhor vendedora” em seu trabalho.
Ela está deixando um bilhete na porta da geladeira para o seu marido, avisando que está abandonando tudo. Ela sonha por mais, nem que seja para negar sua própria cor.
Corta! O filme nos desloca vinte anos depois para vermos a nova encarnação de Cheryl: agora ela é Neve, tentando viver a esposa troféu em um subúrbio branco enquanto ouve Beethoven saindo de sua ampla casa para o seu trabalho.
Seu novo marido chama-se Ian (Justin Salinger) e seus novos filhos são Mary (Maria Almeida) e Sebastian (Samuel Paul Small).
Tudo que Neve faz é meticulosamente calculado para esconder seu passado e a própria cor, ansiosamente esperando ser definitivamente aceita pela comunidade branca.
A primeira fissura no seu sonho suburbano é uma coceira insistente na cabeça por tanto usar sua coleção de pesadas perucas. Para depois suspeitar que está sendo perseguida por figuras negras sombrias – alguma coisa está invadindo o seu sonho de consumo: serão intrusos reais ou delírios de uma crescente paranoia?
Excluídos não oferece ao espectador uma narrativa linear – através de flashbacks, aos poucos as diversas camadas de Neve e seu passado denegado começam a ser revelados. Principalmente a identidade daquelas figuras que a perseguem – Marvis (Jorden Myrie) e Abigail (Bukky Bakray).
Nesse ponto, o filme incorre no tradicional tropo dos filmes de terror: sempre o Mal tem que ser primeiramente convidado pelas próprias vítimas – veja, por exemplo, todos os contos sobre vampiros. Dessa maneira, Excluídos começa a se enveredar no horror de casa invadida e como um plano de vingança lentamente se constrói a partir da sedução pelo fascínio “étnico” pela cultura negra das própria futuras vítimas– no caso, os filhos Sebastian e Mary.
No premiado filme Parasita do diretor coreano Joon-ho Bong o cenário era o aprofundamento da desigualdade social provocada pela precarização do trabalho de pessoas com subempregos terceirizados, às voltas com seus celulares, aplicativos e tutoriais,
Já nesse filme do diretor Nathaniel Martello-White, a desigualdade racial é deslocada para o campo da desigualdade cultural – um subúrbio de classe média alta branca no qual uma negra tenta embranquecer denegando seu passado e evitando que seus filhos tenham qualquer contato com a cultura negra.
Mas ainda sim, tanto na abertura quanto no fechamento do filme, está lá presente a onipresente precarização do trabalho: como Cheryl, ela estava endividada e vivendo num pequeno apartamento, apesar de ser uma vendedora premiada pela sua empresa. Ela achava que merecia muito mais na vida. Portanto, a única maneira que vislumbrava era deixando de fazer parte de uma família negra.
E o irônico desfecho: como Neve, foge mais uma vez. Dessa vez, como carona na moto de um entregador do Uber Eats.
Se o leitor for fã dos filmes de Jordan Peele e de Joon-ho Bong, encontrará em Excluídos um curioso meio termo.
Ficha Técnica |
Título: Excluídos |
Direção: Nathaniel Martello-White |
Roteiro: Nathaniel Martello-White |
Elenco: Ashley Madekwe, Bukky Bakray, Jorden Myrie, Justin Salinger |
Produção: Air Street Films, The Bureau |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2023 |
País: Reino Unido |