quinta-feira, março 30, 2023

Sangue, areia e Lovecraft no filme 'The Outwaters'



Quatro jovens vão ao deserto no Oeste americano para gravar um videoclipe. E lá encontrarão o horror cósmico lovecraftiano. A produção independente "The Outwaters" (2022) mergulha no universo simbólico de um dos arquétipos mais recorrentes na produção cultural: O Deserto, ambíguo na tradição religiosa e esotérica, mas unívoco na mitologia contemporânea: a condição humana gnóstica de exílio, alienação e estranhamento. Além do filme fazer uma metalinguagem de um gênero que já é em si metalinguístico: o “found footage”. “The Outwaters” acompanha o terror minimalista ao estilo do filme “Skinamarink” ao oferecer poucas explicações para o espectador. Um filme para cinéfilos amantes dos filmes estranhos: sangue, areia e Lovecraft.

O deserto é um tema e cenário recorrente tanto na literatura, cinema, como audiovisual. Seja em filmes com temas esotéricos como no filme El Topo, do cult Jodorowsky, na comédia dramática Bagda Café (1987), no ganhador do Oscar Nomadland (2020), numa comédia surreal Rubber (2010), do francês Quentin Dupieux ou como cenário onipresente de fabricação de metanfetamina e chacinas na série de TV Breaking Bad (2008-2013).

Mas principalmente nos videoclipes da era MTV, onde rock e música pop pareciam ter uma afinidade natural com cenários desérticos: “Man on the Moon” (REM), “Give It Away” (Red Hot Chili Peppers), “Hold Me” (Fleetwood Mac), “Painted Desert” (Pat Benetar), “Vertigo” (U2) e continua uma lista enorme em que o deserto parece ser sempre o melhor cenário para expressar o significado das letras e a intensidade musical.

O filme independente de baixíssimo orçamento (“lo fi”) The Outwaters (2022) é a mais recente filme que volta a beber na fonte simbólica do deserto (desculpem o trocadilho): um grupo de jovens se dirigem ao deserto para gravar um videoclipe – um diretor, um boom operator, a maquiadora e cabelereira e a cantora: uma aspirante a fazer carreira no mercado de música pop-folk-hippie.

É um filme de terror que segue os passos de Skinamarink ao oferecer uma experiência fílmica minimalista e alucinante que desafia a imaginação do espectador a preencher as lacunas de informação para tentar descobrir o que está acontecendo com os amaldiçoados protagonistas.

Por que o deserto é um símbolo tão recorrente na cultura? Dos relatos bíblicos das tentações que Jesus sofreu no deserto ao percurso que um iniciado percorre para descobrir o Divino Ser por trás das aparências na tradição esotérica, o deserto comporta dois sentidos simbólicos essenciais: ou é o lugar da vida eremítica interiorizada (a busca de Deus na aparente esterilidade) ou o espaço povoado por demônios.

No século XX, o deserto tornou-se o grande contraponto à tradição filosófico-cultural europeia: com a sua horizontalidade radical dos espaços infinitos, contrapõem-se à verticalidade urbana. Ao contrário da decadência moral e econômica das cidades, o deserto é a pureza, a simplicidade minimalista, o grau zero, a promessa de recomeçar uma nova vida e deixar o passado para trás.

Os EUA criaram essa mitologia, com o mito da fronteira, a corrida para o Oeste, que inspirou, por exemplo, a literatura beatnik de Jack Kerouac no seu romance “On The Road”: apenas com a chave de um carro no bolso ou caronas nas boleias de caminhões, conhecer a verdadeira América. Bem longe das ilusões do american way of life da publicidade. 

Mas também o século XX acabou criando uma nova mitologia sobre o deserto, mais adaptada à subjetividade do pós-guerra, a partir de três eventos seminais que aconteceram quase simultaneamente no Deserto de Nevada: o boom de Las Vegas, o incidente ufológico de Roswell e as experiências da explosão das primeiras bombas atômicas. 

Como já discutimos intensamente neste Cinegnose, essa mitologia se aproximará da condição gnóstica humana ao promover três tipos de arquétipos que atravessarão a cultura pop, pulp fiction, literatura e cinema: o Viajante, O Detetive e O Estrangeiro – clique aqui.



O filme The Outwaters aprofunda ainda mais essa mitologia contemporânea do deserto, dessa vez recorrendo a uma inusitada referência: as visões góticas de H.P. Lovecraft, em pleno deserto no qual sangue e areia se misturam de forma alucinante. Do que esse humilde blogueiro pode se lembrar, é a primeira vez que a monstruosidade híbrida, combinada com o horror cósmico do escritor norte-americano, é ambientada no ambiente seco e estéril do deserto.

Paranoia, alienação, estranhamento e a sensação de não pertencimento a esse mundo são experiências que estão no centro da condição humana gnóstica da mitologia do deserto. E a referência lovecraftiana é usada em The Outwaters para tornar isso ainda mais impactante.

O Filme

Para além dessas referências mitológicas e simbólicas, o filme também é uma experiência metalinguística do gênero de terror found footage (vídeo encontrado). Através de letreiros introdutórios, somos informados que todos os protagonistas desaparecerão, e que tudo o que veremos é resultante de vídeos gravados em cartões de memória, colocados em ordem cronológica pela investigação policial.

A questão é que progressivamente as imagens se tornam tão alucinantes que parecem mais experiências subjetivas, e não vídeos perdidos encontrados. Se todas aquelas imagens são objetivas, o que então está acontecendo? Essa é a ambiguidade que atravessa The Outwaters, uma experiência sensorial (áudio + imagem) na qual lutamos para criar o auto distanciamento necessário para tentar entender o que está acontecendo. Mas a experi6encia é imersiva.



O primeiro quarto do filme é bem iluminado e apresenta a predominância de planos em close-up. Mas o restante do filme é visto principalmente por meio de uma pequena lanterna, do tipo da iluminação de câmera que fornece apenas iluminação limitada na escuridão total.  

The Outwaters não oferece nenhuma explicação e leva o espectador a uma jornada distorcida que mistura o found footage com elementos inspirados em H.P. Lovecraft. 

O filme começa com uma ligação arrepiante para o 911, onde uma operadora tenta se comunicar com uma pessoa que está gritando a plenos pulmões. Há ruídos perturbadores ao fundo, mas o interlocutor está apavorado demais para falar. Embora esse prólogo seja excelente, depois por um bom tempo apenas acompanhando os preparativos para a gravação do videoclipe e as relações entre familiares e amigos. Até a viagem para o deserto começar.



Os personagens principais, Robbie (Robbie Bandfitch), Michelle (Michelle May), Scott (Scott Schamell) e Ange (Angela Basolis), são apresentados enquanto se dirigem ao deserto para gravação. Robbie, também o diretor do próprio filme, também é o diretor de fotografia e editor, dando ao filme uma sensação de imediatismo que faz parecer que os atores estão interpretando variações de si mesmos. Os quatro personagens vão para o meio do nada e vão morrer lá. O tom do filme é estabelecido desde o início, e os espectadores devem se sentir tão desorientados e assustados quanto o próprio Robbie. 

O pesadelo começa com sons inócuos no deserto, seguidos por um número incomum de abelhas e a ameaça de clima extremo com misteriosos trovões. O design de som é uma mistura de gritos, grunhidos e o som de vísceras batendo no chão. A pouca luz que ilumina os personagens revela coisas horripilantes como carne e dentes sangrentos. O filme foi projetado para ser aterrorizante, confuso e perturbador. A narrativa sobrecarrega o espectador com um terror confuso e tem algumas passagens incrivelmente eficazes.



A referência a H.P. Lovecraft não é gratuita: a mitologia contemporânea do deserto acaba encontrando o horror cósmico do escrito gótico americano: se o universo é indiferente à presença humana, o deserto parece ser a melhor expressão dessa condição – o abandono, o estranhamento e a sensação de ser estrangeiro nesse cosmo ao qual não pertencemos. No deserto, a sensação de exílio (ponto central na cosmologia gnóstica) é literal.

Principalmente quando seres lovecraftianos parecem estar à espreita fora do foco das lanternas dos pobres protagonistas.

Em meio ao caos e o horror, uma placa semienterrada na areia estampado “proibida a entrada de pessoas não autorizadas” é outra referência à paranoia, outro tropo na mitologia do deserto: será que inadvertidamente eles caíram em algum experimento secreto do Governo? Estão nessa rápida cena ecos das experiências atômicas secretas do governo, Área 51, Roswell etc. 

A paranoia é a consequência lógica da sensação de exilio nesse cosmos: mais do que indiferença, parece que todo o Universo conspira contra nós.

A ambiguidade proposital das imagens found footage do filme (os vídeos são objetivos, mas as imagens parecem delírios subjetivos de alguém aterrorizado) muitas vezes sugerem que todos estão presos em algum tipo de loop temporal – a certa altura no terço final Hobbie registra eles próprios chegando no deserto como no início: Hobbie faz um vídeo mostrando a si mesmo empunhando uma câmera!

The Outwaters não pretende dar nenhuma explicação – afinal tudo que vemos não passa de uma investigação policial inicial ao tentar colocar em ordem cronológica vídeos de três cartões de memórias.

Esse irritante exercício metalinguístico para espectadores que buscam explicações finais lembra o exercício zen de David Lynch no filme Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006): depois de três horas e meia tentando entender logicamente a narrativa, descobrimos que assistimos a um filme não editado, com imagens em sequências aleatórias.


  

Ficha Técnica

 

Título: The Outwaters

 

Direção: Robbie Banfitch

Roteiro: Robbie Banfitch

Elenco:  Robbie Banfitch, Angela Basolis, Scott Chamell, Michelle May

Produção: 5100 Films, Fathom Film Company

Distribuição: Cinedigm Entertainment Group

Ano: 2022

País: Reino Unido

 

 

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