“Glorious” (2022) é para os cinéfilos amantes dos filmes estranhos: ao mesmo tempo pomposo e sujo. Um protagonista que amarga o fim de uma crise conjugal da maneira mais alucinante e nojenta possível: em um banheiro público dentro de um local de descanso em uma estrada remota, conversando através do buraco de uma cabine adjacente com uma voz que parece vir de um ser híbrido lovecraftiano. “Glorious” merece a atenção pela originalidade de uma narrativa ambientada em um espaço claustrofóbico que parece encerrar algum tipo de batalha cósmica que definirá o futuro da própria Existência. Um filme que faz um curioso mix de arquétipos muito antigos, associados à simbologia fantástica dos buracos e... do fígado.
Em todas as culturas o buraco é um importante símbolo que possui dois aspectos principais: o nível biológico, o poder de fertilização relacionado a rituais de fertilidade – a identificação com o órgão sexual feminino. E em um nível espiritual como um portal para o Outro Mundo.
Por exemplo, a adoração por pedras furadas é muito comum em diversas culturas. Como o ideograma “Pi” entalhado no disco de jade chinês com um buraco no meio representando o céu e o seu brilho espiritual que penetra no mundo. Ou também no caso da Índia antiga na qual os buracos seriam portais para outros mundos: atravessá-los livraria a alma do ciclo do Karma, o interminável ciclo de mortes, sofrimentos e encarnações.
Ou mesmo na Grécia pré-helenismo onde buracos e cavernas eram o início de jornadas com encontros com deuses, mentores e lugares de cura.
No Ocidente, desde Sócrates e Platão, o simbolismo foi invertido: tornaram-se lugares de limitação e ocultamento da verdade (a parábola da caverna de Platão). E o catolicismo só piorou a fama dos buracos, covas, cavernas ou grutas: submundos infernais de pecado, castigo e munição.
E o cinema deu uma representação icônica a tudo isso: buracos e cavernas se transformaram em estacionamentos subterrâneos, becos escuros, metrôs etc. São locais onde encontramos o Mal – monstros, assassinos, fantasmas e assim por diante.
Glorious (2022), um filme de terror cômico e sombrio da diretora Rebekah McKendry, com um roteiro ao mesmo tempo estranho e divertido do seu marido David Ian McKendry. Um filme com a atmosfera de um conto da série clássica Além da Imaginação (daí a sua duração de apenas 79 minutos) que concentra todo o argumento da narrativa em um buraco na divisória de um banheiro público em uma área de descanso numa estrada de corta uma floresta remota.
Se a Alice de Lewis Carroll caiu num buraco de um coelho como a antecâmara de um mundo estranho e maravilhoso, em Glorious o protagonista cairá no clássico horror cósmico de HP Lovecraft (1890-1937) – Sim! Como na antiguidade, o buraco continua representando a antecâmara de mundos e deuses. Mas no filme, o protagonista entrará em contato com um mundo habitado por deuses demiurgos absolutamente indiferentes com a humanidade, colocada no meio do fogo cruzado de um conflito em escala cósmica.
Com essa curiosa conexão entre a simbologia fantástica do buraco com o horror cósmico do escritor HP Lovecraft (o autor mais adaptado e citado pelo cinema nesse século), Glorious atualiza o imaginário do arquétipo: com a monstruosidade híbrida do célebre escritor gótico norte-americano, o simbolismo do buraco não conecta mais nem para divindades sábias ou oráculos; e nem entidades infernais.
Mas o azarado protagonista descobrirá que o buraco vai concectá-lo com o horror cósmico: a monstruosidade não se origina do mal no sentido moral (seres malignos, corrompidos, com objetivos torpes e mesquinhos), mas de uma absoluta indiferença do cosmos com a existência humana.
O Filme
Glorious acompanha Wes (Ryan Kwanten), um cara cuja vida emocional está indo para o ralo devido às suas próprias ações. Mas tudo está prestes a mudar (para pior) por causa de um encontro sobrenatural através de uma situação banal.
Wes está há horas guiando por uma estrada remota, quase dormindo no volante, até que vislumbra uma parada de descanso com um banheiro público. Um lugar perfeito para estacionar seu carro abarrotado de objetos: lembranças de um relacionamento desfeito com quem seria a mulher da sua vida, Brenda (Sylvia Grace Crim). Um relacionamento que parece ter acabado muito mal.
Wes fica naquele ponto remoto bebendo até o anoitecer. Ao longo da noite permanece ali, remoendo lembranças, remorsos e arrependimentos. Até decidir queimar todas os objetos que façam lembrar dela, em uma fúria bêbada que não poupa nem as próprias calças que acabam chamuscadas pela fogueira. Wes esvazia a garrafa e cai até dormir ao relento. Para acordar no dia seguinte, sem calças e de ressaca. Cambaleando, vai até o banheiro para vomitar, para encontrar na divisória entre os vasos sanitários um estranho grafismo de alguma entidade híbrida (Lovecraftiana) com um buraco da qual sai uma estranha voz da cabina adjacente.
Seu nome é Ghat (JK Simmons), num início de conversa que é até divertida e engraçada. Surreal, naquele banheiro imundo. Wes que olhar através do buraco, o que é advertido fortemente por Ghat. A voz utiliza toda uma gama de ressonâncias para tornar ainda tudo cada vez mais misteriosa.
No começo, Ghat é gentil e curioso, com um humor até certo ponto piegas. Mas aos poucos ele vai se tornando cada vez mais insistente e sinistro. Será uma pessoa real? Uma alucinação de alguém embriagado? Ou será o próprio demônio?
Pior! Será uma entidade lovecraftiana.
O fígado como arquétipo – Alerta de Spoilers à frente
Toda a ação se passa no espaço restrito do banheiro (principalmente) e no estacionamento da área de descanso. Um espaço não apenas repleto de sangue, mas de germes e sujeira fecal num lugar imundo em que nem torneiras e vasos funcionam.
Quanto mais Wes cai em si de que por trás da divisória da cabine ao lado há algum tipo de entidade (ou divindade) sobrenatural, mais o conjunto imagético parece estar criando um simbolismo mais geral: naquele banheiro está sendo decidida uma batalha cósmica motivada unicamente por interesses mesquinhos na qual Wes (ou a humanidade) é o que menos importa: uma testemunha que apareceu no lugar errado e na hora errada, num banheiro tão decadente quanto o próprio planeta e o Universo.
Ghat é mais do que um monstro lovecraftiano: é uma divindade em luta titânica contra o seu pai-demiurgo que não pode ser descoberto naquele banheiro. Se Ghat completar a sua materialização, se tornará visível e a fúria vingativa do pai-demiurgo destruirá a própria existência.
A não ser que Wes faça um último gesto sacrificial: ofereça um pedaço do seu fígado (!!!) para salvar o Universo! Um pedaço inserido pelo buraco através do qual Ghat fala.
Nesse ponto, o simbolismo de Glorious fica ainda mais curioso: não só pelo fato de que Ghat quer um pedaço do fígado de alguém que na noite anterior bebeu até cair, mas do antiquíssimo simbolismo do fígado, tão antigo quanto do buraco.
Do islã ao cristianismo, da Grécia ao Extremo Oriente, o fígado possui um simbolismo unânime: o fel, à animosidade e às intenções deliberadamente venenosas, o que explicaria o sabor amargo da bílis.
Mas ao mesmo tempo na tradição, o fígado está associado à força da coragem e da cólera – por exemplo, na China antiga costumava-se comer o fígado dos inimigos.
Fel, coragem e cólera parecem ser as emoções contraditória que Glorious explora. De como a tragédia conjugal de Wes seria apenas o microcosmo de uma tragédia em escala cósmica indiferente à existência humana.
Ficha Técnica |
Título: Glorious |
Direção: Rebekah McKendry |
Roteiro: David Ian McKendry |
Elenco: Ryan Kwaten, J.K. Simmons, Sylvia Grace Crim |
Produção: AMP International, FallBack Plan Productions |
Distribuição: Shudder |
Ano: 2022 |
País: EUA |