Desde o início, com a invenção do daguerreótipo, a fotografia esteve envolvida com o misterioso e o esotérico: afinal, em todas as culturas, ver o próprio duplo é um evento misterioso podendo até mesmo ser o prenúncio da morte. Com a fotografia, para começar, a possibilidade de ter a própria alma roubada. E na Rússia? Onde a Ciência e antigas crenças conviveram no período czarista. Esse é o universo que inspira o terror russo “A Noiva” (Nevesta, 2017): uma garota está prestes a se casar com seu namorado e é levada por ele para conhecer sua família numa região remota que parece ter parado no tempo. Uma família de gerações de fotógrafos, especializados em fotografar mortos, antiga crença de que isso os manteria vivos. Logo será incomodada com a estranheza dos seus anfitriões: algum tipo de experimento deve ter saído do controle em algum momento da história daquela família.
Em todas as culturas, ver o próprio duplo é uma experiência terrível e às vezes até mesmo o prenúncio da própria morte.
Do espelho à fotografia, a contemplação de uma réplica de si mesmo sempre foi considerada um evento misterioso, como, por exemplo, todo o misticismo que cerca os espelhos ou os primórdios da fotografia – as pessoas ficaram assustadas com a fidelidade do resultado, só se tornando popular depois que descobriram que era possível retocá-las. Ou seja, depois de que elas passaram para o campo da simulação.
Porém, a fotografia talvez tenha sido a invenção da vida moderna que mais infundiu ansiedade e medo nas pessoas. Por exemplo, o escritor francês, autor de A Comédia Humana e Ilusões Perdidas, Honoré de Balzac (1799-1850) tinha fortes objeções contra a fotografia. Ele só se permitiu ser “daguerreotipado” (o primeiro nome dado à fotografia a partir do nome do inventor Louis Daguerre) uma vez, uma pouco antes da sua morte.
Influenciado por tradições esotéricas, Balzac acreditava que a fotografia praticava uma espécie de “crime espectral”: cada fotografia roubaria uma camada das inúmeras da nossa alma – na realidade, exposições sucessivas nos fariam perder a própria essência da vida.
Seja do ponto de vista da física ótica, seja do ponto de vista da semiótica, essas especulações de Balzac ou mesmo o medo milenar em ver o seu duplo tem um fundo factual – afinal, o que é capturado no negativo são as partículas de luz refletidas pelos corpos ou objetos. Do ponto de vista semiótico, há um fenômeno de contiguidade entre o objeto e sua imagem: temos, portanto, um índice, o signo que aponta para si mesmo por ser um fragmento físico do objeto representado. Em outras palavras, de fato, algo foi tirado do objeto representado. Pelo menos como fenômeno físico ou semiótico.
Não por menos, todo esse mistério e controvérsia em torno da invenção da fotografia no século XIX inspirou uma longa filmografia: Espíritos: A Morte está ao Seu Lado (2004), Shutter (2004),
Imagens do Além (2008), Invocation (2013), Skew (2014), Imagens do Mal (2017), Polaroid (2019) etc.
E quando temos uma produção dentro desse tema, mas fora do circuito de produção e distribuição hollywoodiana, mais precisamente da Rússia, torna-se um filme ainda mais curioso para nós. É o exemplo do filme A Noiva (Nevesta, 2017) que, além de claramente se inspirar nessa mitologia esotérica construída em torno da fotografia desde os tempos do daguerreótipo, explora simbolismo históricos do país: a velha “Mãe Rússia”, personificação nacional da Rússia que aparecia em pôsteres patrióticos e estátuas no período soviético, em contraste com a Rússia capitalista moderna e ocidentalizada.
Mas principalmente o paradoxo histórico: o século XIX no qual o país produzia muitos cientistas notáveis, como o inventor da tabela periódica (Dmitri Mendeleev) ou o descobridor do vírus, Dimitri Ivanovski, porém num país no qual grande parte estava mergulhada numa estrutura feudal sob o sistema imperial do czarismo.
Por isso, A Noiva parte desse paradoxo: a articulação entre a Ciência e antigas crenças populares: Em 1832, um médico químico chamado Iosif Gamel apresenta sua tese à Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo, que diz que um novo tipo lente e negativo feitos a partir de um novo tipo de prata pode não apenas capturar a luz, mas também a alma de uma pessoa. Isso resultaria na atualização (ou tecnologização) de um antiquíssimo ritual no qual as almas dos mortos são transferidas para outro corpo.
Um fotógrafo rico, proprietário de um grande casarão com ascendência sobre os aldeões de um vilarejo, resolve colocar em prática a tese de Gamel, após a morte de sua esposa. E como se espera em um filme de terror, o resultado não será como ele esperava.
O Filme
Barin (Igor Khripunov) é um fotógrafo especializado em fazer fotos de familiares mortos – um costume de elites do século XIX. Acreditava-se que a fotografia manteria não só as memórias, mas as próprias almas vivas.
Nas primeiras cenas, acompanhamos Barin fotografando sua esposa morta, disposta sentada em uma cadeira com a cabeça sustentada por um suporte. E nesse negativo especial, estão mais do que as partículas de luz: entre elas está a própria alma da falecida.
Com toda a sua ascendência, riqueza e poder, obriga os aldeões a fornecerem uma filha virgem para o bizarro ritual: enterra sua esposa morta com a jovem virgem para que a alma da falecida ocupe o corpo da jovem que grita por ajuda.
O filme salta do século XIX para a Rússia atual. Em algum lugar de uma metrópole, um jovem casal formado por Nastya (Viktoriya Agalakova) e Vanya (Vyacheslav Chepurchenko). A família de Vanya quer conhecer a noiva, para decidirem celebrar o casamento no próprio casarão da família, localizado em um ponto remoto, longe da metrópole, quase como se ainda vivesse no século XIX.
Nesse ponto as duas narrativas se encontram: a garota visitando a macabra casa dos sogros e o antigo ritual da região. É nesse encontro das narrativas que percebemos que algo deu errado no ritual feito há quase dois séculos. Todos ao redor parecem querer ocultar alguma coisa que pretendem nesse casamento, enquanto Vanya parece relutante, como que não quisesse participar de algum antigo ritual que é passado de geração a geração.
Sua irmã, Liza (Aleksandra Rebenok), quer dar para Nastya um antigo anel e um velho vestido de noiva da “Mãe”, à qual sempre se remetem sem dar qualquer detalhe. Falam que é um costume familiar, passado de geração a geração. Vanya está relutante e impede que Nastya aceite os “presentes”.
No dia seguinte Nastya acorda, sem encontrar o seu noivo. Liza informa que ele foi até a cidade e só volta à noite. Esse será o início de descobertas cada vez mais macabras, que remeterão à tragédia que envolveu o experimento fotográfico de Barin com sua esposa – acabou lançando uma maldição sobre aquela família, condenada a jamais quebrar o elo geracional de um experimento que deu errado.
Em certos momentos, lembrando o clássico O Bebê de Rosemary, Nastya é cercada de cuidados, principalmente de uma médica da família. Como se estivesse sendo preparada para um evento muito mais especial do que o casamento – seu corpo deve estar perfeito. Porém, paira uma dúvida: Nastya é virgem? Esta parece ser a condição mais importante para que tudo dê certo, evitando uma nova tragédia que faça a “Mãe” voltar-se contra seus descendentes. Porém, estamos em uma Rússia moderna...
Apesar do ritmo irregular e sérios problemas de verossimilhança no roteiro, principalmente no terceiro ato, A Noiva coloca esse outro tema: o choque entre a velha “Mãe Rússia” e a Rússia moderna e capitalista. Nastya e Vanya são jovens e cosmopolitas que entram em choque com a Rússia profunda que parou no tempo.
Vanya tentará salvar Nastya do destino terrível da maldição, num clássico tropos dos filmes de terror.
Principalmente no terceiro ato, A Noiva começa a ser marcado por uma série de sustos e imagens horripilantes que repetem os velhos clichês e estereótipos hollywoodianos. Parecendo que, além dos protagonistas do filme, o próprio filme tem aspirações cosmopolitas ao tentar emular o pior do horror hollywoodiano. Aqui, o que seria curiosidade por um filme russo de horror, transforma-se em decepção ao ver-se simples cópias de tantas outras coisas.
E parece que deu certo: já se especula uma versão norte-americana para esse filme. Que, inclusive, foi lançado nos EUA com versão dublada em inglês. O que é sintomático.
Ficha Técnica |
Título: A Noiva |
Diretor: Svyatoslav Podgaevskiy |
Roteiro: Svyatoslav Podgaevskiy |
Elenco: Igor Khripunov, Viktoriya Agalakova, Vyacheslav Chepurchenko, Aleksandra Rebenok |
Produção: 2020 Studio, Focus Plus Cinema |
Distribuição: Splendid Film |
Ano: 2017 |
País: Rússia |