Depois de filmes como “Irreversível”, “Enter the Void” e “Climax”, com perturbadoras cenas de violência sexual, extremos afetivos e lisérgicos, dessa vez o diretor franco-argentino Gaspar Noé volta-se para o tema da velhice e decrepitude física e mental em “Vortex” (2021, estreou no MUBI Brasil). Um casal de idosos passa seus dias em um apartamento labiríntico em Paris, cercado de objetos, pôsteres e livros, memórias de um passado de radicalismo político e engajamento intelectual. Aqui, a velhice e a espera da morte são grandes equalizadores existenciais - não importa quem você é ou foi. Sem exceção, todos estão indo na mesma direção. E todos os nossos índices das memórias e realizações serão deixados como testemunhos que deveriam ser duradouros. Mas numa sociedade em que o elo geracional se quebra, esses índices do passado estão condenados a se tornarem tão efêmeros quanto a nossa passagem por esse mundo.
O diretor enfant terrible franco-argentino Gaspar Noé é um ateu feroz que rejeita a possibilidade do futuro, desde o filme Irreversível – um filme narrado de trás para frente. Por isso, seus filmes são emocionalmente diretos, formalmente audaciosos e impregnados de uma espiritualidade sincera. Como sabemos, na história do cinema os melhores filmes religiosos foram escritos e dirigidos justamente por ateus. Como, por exemplo, é o filme Diário de um Pároco de Aldeia (Journal d’un Curé de Campagne, 1951) de Robert Bresson. Baseado em livro de um autor católico, o ateu Bresson conseguiu expressar a batalha existencial de um protagonista com sua fé em um dos melhores filmes religiosos do cinema.
Além disso, em filmes como Irreversível, Enter The Void e Climax, Gaspar Noé trafega entre imagens explícitas de sexo, violência, frenesi das drogas, choque, crueldade e desorientação. Filmes que ultrapassam os limites da experiência do público e desafiam as convenções do espaço e do tempo cinematográficos, tentando não representar a realidade, mas sim suplantá-la.
Em síntese: assistir a um filme do diretor fica por conta e risco do espectador.
Visões espirituais, reflexões metafísicas e existenciais misturam-se que a audácia formal e um deliberado propósito em desorientar o espectador, com suas narrativas intrincadas, movimentos de câmera circulares, descendentes e instáveis, além do recurso da divisão da tela, como nesse último filme Vortex (2021).
Depois dos protagonistas jovens em insuportáveis situações de violência sexual, extremos afetivos e lisérgicos, além da catarse das drogas e violência, dessa vez Noé volta-se para o tema da velhice e decrepitude física e mental. O tradicional ritmo frenético dos seus filmes anteriores agora é substituído pela narrativa lenta e melancólica – mas nunca deixando de usar artifícios formais para deliberadamente desorientar o espectador.
A surpresa é a presença do diretor e mestre do terror italiano, Dario Argento, como um dos protagonistas de um casal de idosos vivendo confinado em um labiríntico apartamento em Paris, ao lado da sua companheira de inverno existencial, a atriz Françoise Lebrun – que estrelou a obra-prima pós-68 de Jean Eustache, A Mãe e a Prostituta, filme icônico daquela época de florescimento contracultural, a qual livros e pôsteres do apartamento fazem referência.
O mergulho que o diretor faz nesse tema certamente está muito bem acompanhado de referências. A primeira delas, mais distante, “As You Like It”, de William Shakespeare, escrito por volta de 1599 - o personagem Jacques declama sobre as “sete idades” do homem, começando com uma infância “gemendo e vomitando” e terminando com uma visão bastante pavorosa da velhice: “segunda infantilidade e mero esquecimento; sem dentes, sem olhos, sem gosto, sem tudo.”
E a segunda referência, explícita nas linhas de diálogo de Argento, é o poema de Edgar Allan Poe "Dream Within a Dream", escrito quando ele tinha 18 anos, em 1827. Para o protagonista de Vortex, a vida, assim como o cinema, seria um sonho dentro de um sonho – referência ao fluxo de uma existência efêmera, como declara Poe: ““Oh Deus como segurar/o que não posso agarrar?/Oh Deus não posso salvar/Um grão desse cruel mar?
Explicitando a recorrente desconfiança do futuro de Gaspar Noé. O apartamento que o idoso casal divide é uma presença vívida: quartos cheios de livros e pôsteres (principalmente um de protesto contra a guerra do Vietnã – “Nix on War” – e outro do filme clássico Metropolis), obras de arte nas paredes e até mesmo no banheiro. Testemunhos da juventude do casal relacionada com o radicalismo político e engajamento intelectual.
Aqui, a velhice e a espera da morte são grandes equalizadores existenciais – não importa quem você é ou foi. Sem exceção, estamos indo na mesma direção. E todos os nossos rastros, digitais e realizações serão deixados como testemunhos igualmente frágeis e passageiros. Assim como as páginas do livro manuscrito de Argento que, a certa altura do filme, descem pelo vaso sanitário. Jogados acidentalmente pela esposa, num processo irreversível de demência.
O Filme
Vortex começa com o que normalmente seriam os créditos finais de um filme. Mas, ao contrário de Irreversível, este filme não se desenrola ao contrário; o final é apresentado primeiro porque este é um filme sobre finais. Explicitado pela epígrafe na abertura: “Para todos aqueles cujos cérebros se decomporão diante de seus corações”.
O casal sem nome no filme é apresentado pelos anos de nascimento, que veremos coincidir com os anos de nascimento de seus encarnados – 1940 para Dario Argento, 1944 para Françoise Lebrun. Nós os vemos pela primeira vez no pátio externo de seu apartamento em Paris, bebendo um brinde genial. É o único momento de serenidade que testemunharemos entre Ele e Ela. Noé também apresenta um vídeo de 1964 da cantora francesa Françoise Hardy cantando a cativante música “Mon Amie la Rose” e de alguma forma aqui a beleza fresca da cantora é de partir o coração. E a partir desse ponto, o filme é implacável.
Tal como acontece com seu recente curta-metragem Lux Aeterna, aqui Noé mantém o modo de tela dividida quase o tempo todo. Logo de cara, ele usa o recurso formal para criar um efeito angustiante. Enquanto o personagem de Argento entra em seu escritório e começa a datilografar seu livro intitulado “Psyché” (ele é um crítico de cinema escrevendo sobre as conexões entre o cinema e o sonho), ela vagueia pelas ruas de seu bairro, sem objetivo. Entra em uma loja escura de artigos diversos e pergunta onde estão os brinquedos. Que brinquedos? E para quem.
Ela está sofrendo de demência, e logo Ele fica irritado e sai à sua procura. Consegue encontrá-la e a traz de volta para casa. Mas logo descobrimos que ele não é propriamente um companheiro zeloso. Não apenas porque ele também tenha uma amante com quem ele se permite conversar ao telefone por alguns momentos. Mas porque sua própria saúde não é tão boa. Ele tem problemas cardíacos, houve um AVC em um passado recente, além de tossir muito forte, começando na idílica cena do pátio. A vida dois é tão dividida quanto a tela.
O intensivo uso da tela dividida torna-se desorientador quando o filho do casal, Stéphane (Alex Lutz), visita o apartamento bagunçado dos pais com seu filho Kiki. Nessas cenas, as lentes são direcionadas para duas metades do mesmo momento. Mas as posições das câmeras não são exatamente sincronizadas, ou talvez cada câmera esteja num ângulo ligeiramente diferente – o efeito é que as pessoas sentadas em uma mesa olhando umas para as outras não têm a mesma direção do olhar. Esta é sem dúvida uma metáfora visual óbvia, mas também é eficaz. Porque ao lado dos desafios da velhice, esta é, como praticamente todas as outras famílias, uma família que está precisando de cura. Que talvez seja tão inexistente quanto a velhice.
Propositalmente Gaspar Noé quer romper com as convenções da clássica narrativa em realismo hollywoodiano – rompe com a continuidade entre campo e contracampo, além de sucessivas quebras de eixos das câmeras. Com isso, Noé explicita a existência do corte e edição, forçando o espectador a ter um distanciamento intelectual das sequências – o diretor força a quebra da expectativa, a desorientação, forçando uma relação mais introspectiva.
Stéphane tem um histórico de drogas e doença mental e um divórcio em seu passado. Suas próprias lutas pessoais adicionam uma dimensão de suspense à história. Esse é um tema persistente na filmografia do diretor: drogas ilegais e drogas legais estão onipresentes em toda a nossa existência. Como uma espécie de consolação para uma situação incurável: a entropia, a morte, o fim de uma frágil existência. Proporcionar uma experiência de frenesi e catarse para vivenciarmos, mesmo que brevemente, a ilusão da eternidade.
A certa altura, ao ver o potente aparato de drogas psiquiátricas e neurológicas prescritas para mãe (ela própria foi uma psiquiatra), ele faz um paralelo com as drogas ilegais que ele mesmo consome – para Stéphane, as drogas legais parecem ser ainda mais potentes do que as ilegais.
Como Gaspar Noé discorre em uma entrevista: “Drogas ilegais e drogas legais estão em toda parte em todas as sociedades. Em alguns países o vinho é ilegal. Álcool é uma droga, café é uma droga, analgésicos são drogas. É como um assunto realmente secundário neste filme, mas eu mal conheço alguém que não tenha sido viciado durante a vida em algum produto” – clique aqui.
Elo geracional
Porém, o tema principal parece ser a inevitabilidade da decrepitude e a morte, além de outro tema residual: a quebra do elo geracional que, pelo menos culturalmente, nos prepararia psiquicamente para a morte.
Grande parte de Vortex acompanhamos o casal perambulando pelo labiríntico apartamento tendo ao fundo sons de rádio e TV. Eventualmente os personagens assistem a vídeos e DVDs. Mas parece que tudo não passa de um pano de fundo: o que ocorre ao redor do mundo não passa de cenário ou segundo plano de um drama muito maior que está se desenrolando. Suas atenções estão sempre em outra cena: não mais naquelas referências acumuladas em pôsteres e objetos da juventude engajada – aquele mundo se foi e o atual pouco importa quando finalmente chegamos ao inverno da existência.
O casal disfuncional foi incapaz de criar um elo com o filho Stéphane e o neto Kiki (que nas cenas aparece sempre fechado em si mesmo) – Stéphane tem uma vida na ilegalidade, tão conturbada que é incapaz de ajudar seus pais no momento final. Elo geracional quebrado, deixando a sociedade psiquicamente desarmada para lidar com o inevitável fim.
A tela dividida, portanto, é a metáfora óbvia das vidas divididas e incomunicáveis.
Nesse mundo de quebra do elo geracional, não apenas nós, mas o que deixamos para trás, como índices de memórias (realizações como livros ou objetos deixados como testemunhos de quem fomos), estão também condenados ao desaparecimento.
Se no passado a ética protestante (o espírito do início do capitalismo industrial, tal como explicado por Weber) conferia a perenidade das nossas realizações como testemunhos éticos e morais para os olhos de Deus, agora a incomunicalidade trazida pela quebra do elo geracional torna esses índices de memórias tão descartáveis quanto a própria existência física nesse mundo.
Ficha Técnica |
Título: Vortex |
Diretor: Gaspar Noé |
Roteiro: Gaspar Noé |
Elenco: Dario Argento, Françoise Lebrun, Alex Lutz |
Produção: Rectangle Productions, Wild Bunch International |
Distribuição: MUBI |
Ano: 2021 |
País: França, Bélgica |