quarta-feira, outubro 12, 2022

Melancolia e Resignação identitária no filme 'Não Se Preocupe, Querida'


Certa vez o pensador francês Jean Baudrillard falou que o filme “Matrix” era uma produção que a própria Matrix faria sobre si mesma. Algo parecido poderíamos dizer de “Não Se Preocupe, Querida” (Don't Worry Darling, 2022): um filme que a própria Era Joe Biden faria para si mesma. Segundo longa-metragem dirigido por Olivia Wilde, a crítica vem definindo-o como um mix de “Mad Men” com “Corra”. Acrescentaríamos mais: lembra um “Show de Truman”, porém com a melancolia e resignação da agenda identitária bancada pelos “novos democratas” do neoliberalismo progressista: Capitalismo? Ok! Desde que gerido não mais por homens sexistas e misóginos. Acompanhamos Alice, uma dona de casa em um subúrbio idílico sob o sol da Califórnia do sonho americano da década de 1950. Tudo é perfeito, com elegantes maridos que voltam do trabalho e festas incríveis regadas a martini. Enquanto as mulheres sabem muito bem qual é o seu lugar numa sociedade machista. Tudo é tão perfeito e hiper-real que algo parece estar muito errado. Esse será o buraco da toca do coelho no qual Alice entrará para encontrar uma estranha realidade.

Não Se Preocupe, Querida (2022), segundo filme da diretora Olivia Wilde (o primeiro foi Fora de Série, de 2019), é um daqueles filmes impossíveis de se fazer uma análise sem incorrer em sérios spoilers – pelo menos pelo tipo de análise proposta por este Cinegnose.

Por isso, alertaremos o leitor quando entrarmos do plot twist. Que certamente confirmará aquilo que a crítica vem dizendo sobre o filme: uma mistura da série Mad Men com o terror de Corra – só que dessa vez, não um horror racial, mas de gênero.

Esse humilde blogueiro acrescentaria que Não Se Preocupe, Querida lembra em muitos momentos o clássico Show de Truman, só que em uma versão feminista. Ou melhor, identitária. Uma produção simultânea a Mulher Rei, mais um exemplo de filme nessa temporada com esse viés ideológico, confirmando o alinhamento de Hollywood com os “Novos Democratas” da Era Joe Biden – sobre isso clique aqui.

Olivia Wilde pretende explorar a tirania do patriarcado, disfarçada de felicidade doméstica num típico subúrbio saído diretamente dos meados da década de 1950 composto por famílias jovens e atraentes em alegres festas regadas a martini, em casas minimalistas em tons pastéis. Para no dia seguinte, como num gesto coreografado, as esposas acenarem se despedindo dos seus maridos que saem ao mesmo tempo de suas casas, a bordo de cadillacs, mercurys e conversíveis esportivos, rumo ao trabalho. Para retornarem no final do dia e encontrarem suas esposas lindas servindo assados com purê de batata, depois de um longo dia de compras com suas colegas donas de casa.

Mas há algo que não está certo aqui. Isso fica claro desde o início com uma suspeita incômoda que cresce cada vez mais na alegre e festeira dona de casa Alice (Florence Pugh), lembrando seu trabalho visceral no filme Midsommar – performance que sinalizou para o mundo do cinema que ela é uma das melhores atrizes da sua geração.

Nesse subúrbio chamado Victory, estranhamente isolado, no meio do deserto sob o idílico sol da Califórnia, tudo parece hiper-real, como se víssemos uma coreografia estereotipada daquela felicidade que Simone de Beauvoir descrevia em “O Segundo Sexo”: o sorriso da Bela Adormecida que coroa es esforços do Príncipe Encantado. Um sorriso que estica bocas de batom tão largas que ficamos admirados por não racharem.



Tudo muito over, canastríssimo e exagerado, como a cidade de Seaheaven de Show de Truman. Mas não espere algum spot de luz cair do céu ou acidentalmente flagrarmos produtores de TV escondidos por trás de uma parede de dry wall.  Demora para que as fissuras nesse mundo perfeito se tornem ondas sísmicas. Seria muito óbvio descobrirmos que tudo não passa de um gigantesco estúdio de algum reality show televisivo. Afinal, estamos no século XXI e nada pode ser tão óbvio assim.

Com o passar da primeira meia hora, começamos a perceber inúmeros tropos que compõe um filme CosmoGnóstico: o crescente estado de paranoia da protagonista Alice – a perfeita “Estrangeira” que, embora confortavelmente vivendo num mundo feliz, sente alienação e estranhamento, numa paranoia crescente que a faz transformar-se numa “Detetive”: tenta decifrar algum tipo de enigma que acredita estar à sua frente. Nas não consegue identificá-lo.

Não é à toa que a protagonista se chama Alice: tal como a personagem de Lewis Carroll, o filme é uma longa descida na toca do coelho para encontrar as fragilidades daquele universo de aparências. Porém, o próprio filme Não Se Preocupe, Querida aparenta ser um conto sobre algum tipo de farsa cósmica, uma denúncia sobre o simulacro não só do sonho americano, mas da própria realidade como um todo, sobre uma protagonista que acorda do sono da ilusão e tenta também despertar todos ao redor. Como em um clássico filme gnóstico.



Não. O filme tem pretensões bem mais modestas, ou melhor, circunscrito à ideologia do espírito do tempo de Hollywood estreitando laços com a Era Joe Biden: uma denúncia das injustiças do patriarcado, do sonho Incel de homens nostálgicos de um passado em que homens e mulheres supostamente cumpriam estritamente seus papéis sociais sem discussões – homens trabalhavam e se divertiam e as mulheres só obedeciam.

Uma ideia que não é nova: um filme que denuncia um sistema governado por homens machistas e egoístas. Mas, como veremos, tudo o que as mulheres querem é retornar à vida e à ordem tão frustrante quanto a hiper-realidade do subúrbio Victory.

O Filme

  A vida na utópica cidade deserta de Victory, lar de Alice e seu marido, Jack (Harry Styles), parece ser um circuito interminável de martinis e festas. Mas, como Alice começa a suspeitar, há algo de errado com essa comunidade impecavelmente adaptada e seu carismático fundador, Frank (Chris Pine). Principalmente depois de abrir uma caixa de ovos que estão ocos. Por que aquele bairro está no meio do deserto? Por que só os homens podem sair para trabalhar, fora dos limites do bairro? E as mulheres são proibidas de ir além? De onde vem tudo que está no mercado e loja de departamento?



A jornada de Alice para descobrir Victory não é exatamente o que parece ser prenunciada pela descida semelhante de sua vizinha chamada Margaret (Kiki Layne), cujas dúvidas a levaram a uma aparentemente loucura, depois de ter vagado pelo deserto além das fronteiras de sua cidade de Victory. Certamente tentando fugir de alguma realidade asfixiante que, agora, Alice tenta descobrir.

O subúrbio de Victory é liderado pelo enigmático Frank (Chris Pine) que recita sermões motivacionais (fala em coisas como o resgate do verdadeiro Eu e “força interior”) pelo rádio todas as manhãs para as esposas que ficam em casa, enquanto os maridos vão trabalhar em algo enigmaticamente chamado “Projeto Victory” que desenvolve “materiais inovadores” – o que quer que isso possa significar.

Depois de testemunhar a queda de um pequeno avião no deserto (assim como Margaret viu um avião vermelho de brinquedo de seu filho no deserto), Alice também sai para além dos limites da cidade para tentar encontrar o avião acidentado. Para descobrir uma estranha construção em forma de cúpula com fachada espelhada. Quando ela toca naquela superfície, Alice começa a ter vislumbres semelhantes a epifanias sobre a ilusão que é a vida naquele lugar.

Frank e seus asseclas – e o próprio marido de Alice, Jack (Harry Styles) – fazem tudo ao seu alcance para que Alice desista de suas suspeitas. Um enigmático psiquiatra, que pertence ao grupo de administradores de Victory, prescreve remédios que ela se recusa a tomar. Relutante, Jack tenta apoiá-la, mas teme pela sua carreira no “Projeto Victory”.



Para tentar sobreviver, Alice finge que está bem. Até o momento em que vão a uma festa na casa do líder Frank (numa performance sedosamente sinistra) na qual é anunciada uma importante promoção para Jack; isso deixa Alice em pânico: há uma conspiração que tenta envolvê-los e eles devem fugir naquela noite!

Sua outra vizinha chamada Bunny (feita pela diretora Olivia Wilde) ajuda Alice a se recompor. Até tudo desmoronar na noite seguinte, na festa na casa de Alice para selar a promoção do marido.

Um quê de melancolia e resignação – Alerta de Spoilers à frente

Desde o início pensamos que estamos em algum lugar na ensolarada Califórnia do sonho americano pós-guerra em meados da década de 1950. Porém, o terceiro ato é a descida final de Alice na toca de coelho: durante um tratamento psiquiátrico por eletrochoque, a verdade começa a vir à tona em sua mente: na verdade ela está no século XXI e trabalha como assistente cirúrgica. É obrigada a fazer longos plantões para compensar a lacuna financeira pelo desemprego do seu marido Jack (na versão real desgrenhada e triste). 

Jack passa os dias na Internet, até descobrir um site do líder carismático Incel Frank que promete o retorno virtual à utopia de supremacia masculina supostamente perdida no passado do sonho americano: prender seus parceiros e colocá-los numa espécie de máquina ao estilo Matrix. Enquanto os corpos são mantidos vivos, os homens são os únicos que retornam ao mundo real para trabalhar no “Projeto Victory” para compensar o custo de manter o empreendimento. 



Alice teve sua memória do mundo real deletada. Para Jack, tudo é justificado: dar uma vida melhor a esposa, sem ela ter que se matar em plantões insalubres no hospital. Para viver um paraíso patriarcal de mulheres felizes como donas de casa.

Há um recall dos filmes CosmoGnósticos como Show de Truman, Matrix, Décimo Terceiro Andar, entre outros da virada do século, no auge do Gnosticismo Pop.

Porém, Não Se Preocupe, Querida está sintonizada com o zeitgeist político desse século: a crítica existencial da realidade como um constructo é substituída pela crítica de um suposto sistema patriarcal governado por homens misóginos, sexistas e egoístas.

Como em Mulher Rei, a História é propositalmente distorcida para virar propaganda da agenda geopolítica do atual governo Joe Biden e dos chamados “Novos Democratas”: o neoliberalismo progressista - o empoderamento do multiculturalismo e do direito das mulheres como nova aliança política entre o Big Money do financismo, classes médias de subúrbios e os novos movimentos sociais.

O sonho americano da sociedade de consumo do pós-guerra estava conectado com a máquina ideológica da Guerra Fria. Seu machismo foi apenas o subproduto imaginário de uma agenda geopolítica. A mesma que permanece ainda hoje, abaixo da superfície do identitarismo. Para o qual pretende-se desviar a atenção do distinto público.

Subproduto imaginário que hoje alimenta na Deep Web grupos como os incels, subcultura de extrema-direita secretamente apoiado pelos “Novos Democratas” para criar as cismogenesis das guerras híbridas geopolíticas pelo planeta.

Por isso, é sintomático o retorno-à-ordem à qual está condenada a protagonista Alice, depois que ela teve o seu despertar no subúrbio Victory. A certa altura, discutindo com o marido, ele exige a sua vida de volta. Jack fala do quão horrível era a sua vida nos plantões extenuantes. “Mas era a minha vida!”, responde Alice.

Esse final tem um quê de melancolia e resignação. Nada a ver com o despertar épico de Truman ou de Neo no Gnosticismo Pop. O despertar de Alice é, nada mais, do que voltar à velha ordem em que, tão conformada quanto no subúrbio Victory, cumprirá seus plantões brutais para sobreviver.

Afinal, os novos vilões não estão mais no sistema: agora está no sexismo masculino.


 

Ficha Técnica

 

Título: Não Se Preocupe, Querida

 

Diretor: Olivia Wilde

Roteiro: Katie Silberman, Carey Van Dyke, Shane Van Dike

Elenco:  Florence Pugh, Harry Styles, Chris Pine, Kiki Layne, Olivia Wilde 

Produção: New Line Cinema, Vertigo Entertainment

Distribuição: Warner Bros.

Ano: 2022

País: EUA

 

 

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