O gênero terror atual persegue uma fórmula básica: combinar os medos
atávicos do horror clássico com os medos domésticos da vida cotidiana: o
ladrão, a infidelidade, o abandono na infância, pais ausentes etc. “O Espelho”
(Oculus, 2013) é um exemplo dessa combinação perfeita que consegue contornar os
clichês do gênero – a história de um espelho assombrado por uma suposta força
maligna que vem colecionando vítimas por séculos. Os medos de uma típica
família de classe média são potencializados por um conjunto de simbolismos
arquetípicos que povoa esse simples objeto doméstico – o medo do reflexo e seu
duplo. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Os filmes de
terror clássicos sempre exploraram os medos atávicos da espécie humana. Tanto
na literatura como no cinema, esses medos foram representados por estilos e
narrativas como o Gótico, o Estranho e o Fantástico.
O terror
contemporâneo, principalmente com o advento do home vídeo (VHS, DVD, etc.),
trouxe esse medo clássico para espectadores domésticos. E a narrativa do gênero
se adaptou aos novos tempos: desde então, nos filmes o horror acontece menos em
castelos, lugares longínquos, mansões sombrias ou casa de feiticeiras. Agora as
narrativas de terror são transferidas
para situações domésticas (a família que muda-se para uma nova casa, nos
pesadelos da filha adolescente etc.) através de objetos prosaicos como
aparelhos de TV, vídeo-cassetes, caixas e espelhos.
Por isso, a
fórmula bem sucedida do gênero na atualidade é saber combinar os medos atávicos
com os medos domésticos da vida cotidiana – o medo de ter a casa invadida por
um ladrão, os perigos da TV ligada fora do ar, o medo dos filhos abandonados
por pais ausentes etc.
O Espelho de
Mike Flanagan é um dos filmes de terror atuais que consegue fazer essa
combinação – o terror trazido para o ambiente doméstico no qual vivencia-se um dos
grande temores atávicos da espécie: o medo do espelho e seu duplo.
É a história de
um antigo espelho assombrado por um aparente entidade maligna, o qual, ao longo
dos séculos, veio matando dezenas de proprietários e as suas famílias.
A ideia de um
artefato habitado por uma entidade sobrenatural malévola não é nada de nova.
Nem esses “tropos” do cinema de terror doméstico: o cão assustado, a tela da TV
em estática, as imagens de uma câmara de vigilância. No entanto, Flanagan
consegue contornar esses clichês ao explorar bem o imaginário e simbolismo que
envolve o espelho.
O Filme
O Espelho começa
mostrando Tim Russell (Brenton Twaites) sendo liberado de um hospital psiquiátrico após anos de
terapia intensiva, desde a infância, após matar seu pai com um tiro. Tim, assim
como sua irmã Kaylie (Keren Gilliam), acreditaram que seu pai foi forçado a cometer uma
violência horrível contra a própria família pela força sobrenatural de um
antigo espelho.
Porém, anos de
terapia retrabalhando essas memórias, levaram Tim a acreditar que o seu pai foi
apenas um cara ruim que, descoberta a sua infidelidade pela esposa, voltou-se
com violência contra os familiares.
Reinserido à
sociedade, Tim volta-se a encontrar com a irmã Kayle. Sua irmã é agora uma
profissional bem sucedida em uma casa de leilões de antiguidades. Mas parece
que ela escolheu essa profissão de forma premeditada: ela ainda crê que sua
família foi vítima daquele espelho, torna-se uma profissional no mercado de
antiguidades até reencontra-lo em um leilão.
Obcecada pela
ideia de fazer um acerto de contas com aquele objeto e provar à sociedade a
verdade de tudo que aconteceu na infâncias dos irmão, Kaylie rouba o espelho
para leva-lo de volta à casa dos trágicos acontecimentos do passado. Kaylie
arma uma fantástica variedade de câmeras, medidores de temperatura ambiente,
timers e até uma lâmina oscilante presa ao teto planejando a destruição final
do espelho. Mas antes, quer documentar tudo e registrar em imagens a
manifestação do mal no espelho.
Kaylie fez antes
uma pesquisa histórica do espelho: descobriu que chama-se “The Lasser Glass” e
ao longo dos séculos, desde sua fabricação em 1754, todos os proprietários
experimentaram loucura e misteriosas mortes, muitas delas violentas.
Ela pede ajuda
ao relutante irmão Tim, que tenta convencer a irmã que tudo não passa de
imaginação: “você vê apenas aquilo que quer ver”, repete várias vezes, enquanto
Kaylie segue resoluta.
A partir daí o
filme vai explorar ao limite as contraposições de flashbacks com o presente, ao
ponto de em certas cenas os personagens da infância parecerem estar interagindo
com eles mesmos adultos. Essa inventividade narrativa, evita as técnicas de
flashbacks tradicionais. Porém, a narrativa fica cada vez mais sinuosa
distorcendo tanto a percepção dos personagens como a do próprio espectador.
O espelho parece
fazer jogos mentais com todos. Ou será que tudo não passa da manifestação da
própria natureza do espelho: refletir nossos medos mais obscuros?
O arquétipo do Espelho
Ao longo da
história o espelho criou ao seu redor uma constelação de simbolismos: reflexo
da própria alma, passagem para outros mundos, indutor de visões do futuro, má
sorte ao ser quebrado ou, como sugere no Feng Shui, ao usá-lo em ambientes para
criar a impressão visual de expansão, energias da casa são expandidas e
redirecionadas.
Mas também há um
imaginário maligno: a contemplação de uma réplica de si mesmo sempre foi
considerado um evento misterioso, muitas vezes o próprio prenúncio da morte.
Certamente porque o espelho, assim como a própria fotografia no seu início,
reflete exatamente aquilo que somos, confrontando nosso narcisismo – após o
medo inicial, a fotografia só se tornaria popular quando descobriu-se a
possibilidade de retocar o negativo.
Habilmente, o
diretor Flanagan mostra o espelho secular refletindo os próprios medos
domésticos de uma típica família: a mãe que olha para a cicatriz da cesariana
temendo o seu próprio envelhecimento, o possível reflexo de uma amante que
estaria se infiltrando no ambiente doméstico de um pai infiel e ausente etc.
Os medos domésticos
Além de refletir
os temores de um novo arquétipo contemporâneo: o medo infantil de ser
abandonado pelos próprios pais, que se tornam cada vez mais ausentes com a
terceirização da criação dos filhos. A certa altura em um dos inúmeros
flashbacks, Tim na infância olha para o pai aparentemente possuído pela
entidade maligna do espelho e grita: “Você não é o meu pai!”.
O medo do
abandono já está psiquicamente inscrito na matriz edipiana – a sensação infantil
de abandono e impotência ao perder a Mãe. Mas na vida atual esse medo é
potencializado com a figura do pai ausente – o pai que mata, abusa sexualmente
ou que, simplesmente, é consumido pelo trabalho e se torna ausente.
Em O Espelho,
o pai cria um home office – ele é engenheiro de software e cria no seu
escritório uma vida à parte alheio a própria família. Nesse escritório
doméstico está o “Lasser Glass” como peça dominante.
Dessa maneira, a hábil e sinuosa manipulação
de flashbacks cria a ambiguidade narrativa necessária para fugir dos clichês do
tradicional filme de terror doméstico: há de fato alguma entidade maligna ou o
espelho apenas reflete os terrores de uma família tragada pelos seus próprios
medos internos?
O Espelho e o Mal Ontológico
Esse movediço
terreno da ambiguidade é sempre bem vindo por fazer a representação do Mal sair
do óbvio maniqueísmo hollywoodiano para entrar no Mal reversível, o Mal
gnóstico.
Em O Espelho
fica claro o confronto entre duas metodologias científicas: Tim e as chamadas “tecnologias
do Eu” (Lucien Sfez) da psicoterapia intensiva e Kaylie e sua abordagem
empírica de um suposto fenômeno paranormal – ela quer filmar, medir, documentar
e registrar.
Para a filosofia
gnóstica, o Mal já está presente no próprio mundo, é o Mal ontológico – o mundo
não foi corrompido pelo pecado, desde o início já nasceu falho e seduzido pela
reversibilidade simbólica (Jean Baudrillard): toda finalidade resulta em seu
efeito inverso – esforços pela Paz produzem a Guerra, a busca pela Beleza
resulta na Monstruosidade, a Razão reverte-se na Irracionalidade e luzes geram
sombras.
E no filme a
psicoterapia transforma-se em mera racionalização para Tim ser reinserido na
sociedade após a trágica infância e toda a ciência e tecnologia mobilizada por
Kaylie para documentar e extirpar o Mal volta-se contra ela mesma.
Na verdade, toda
a racionalidade mobilizada por Tim e Kaylie não passaram de formas de
esquecimento: vemos apenas aquilo que queremos ver.
Ficha Técnica |
Título: O
Espelho (Oculus)
|
Diretor:
Mike Flanagan
|
Roteiro: Mike Flanagan, Jeff Howard
|
Elenco: Karen Gilliam, Brenton Thwaites,
Katee Sackhoff, Rory Cochrane
|
Produção: Relativity Media
|
Distribuição:
20th Century Fox Entertainment
|
Ano:
2013
|
País: EUA
|
Postagens Relacionadas |