domingo, setembro 11, 2016

O terror do passado assombra a vida doméstica em "O Espelho"


O gênero terror atual persegue uma fórmula básica: combinar os medos atávicos do horror clássico com os medos domésticos da vida cotidiana: o ladrão, a infidelidade, o abandono na infância, pais ausentes etc. “O Espelho” (Oculus, 2013) é um exemplo dessa combinação perfeita que consegue contornar os clichês do gênero – a história de um espelho assombrado por uma suposta força maligna que vem colecionando vítimas por séculos. Os medos de uma típica família de classe média são potencializados por um conjunto de simbolismos arquetípicos que povoa esse simples objeto doméstico – o medo do reflexo e seu duplo. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.


Os filmes de terror clássicos sempre exploraram os medos atávicos da espécie humana. Tanto na literatura como no cinema, esses medos foram representados por estilos e narrativas como o Gótico, o Estranho e o Fantástico.

O terror contemporâneo, principalmente com o advento do home vídeo (VHS, DVD, etc.), trouxe esse medo clássico para espectadores domésticos. E a narrativa do gênero se adaptou aos novos tempos: desde então, nos filmes o horror acontece menos em castelos, lugares longínquos, mansões sombrias ou casa de feiticeiras. Agora as narrativas de terror são transferidas  para situações domésticas (a família que muda-se para uma nova casa, nos pesadelos da filha adolescente etc.) através de objetos prosaicos como aparelhos de TV, vídeo-cassetes, caixas e espelhos.

Por isso, a fórmula bem sucedida do gênero na atualidade é saber combinar os medos atávicos com os medos domésticos da vida cotidiana – o medo de ter a casa invadida por um ladrão, os perigos da TV ligada fora do ar, o medo dos filhos abandonados por pais ausentes etc.

O Espelho de Mike Flanagan é um dos filmes de terror atuais que consegue fazer essa combinação – o terror trazido para o ambiente doméstico no qual vivencia-se um dos grande temores atávicos da espécie: o medo do espelho e seu duplo.

É a história de um antigo espelho assombrado por um aparente entidade maligna, o qual, ao longo dos séculos, veio matando dezenas de proprietários e as suas famílias.

A ideia de um artefato habitado por uma entidade sobrenatural malévola não é nada de nova. Nem esses “tropos” do cinema de terror doméstico: o cão assustado, a tela da TV em estática, as imagens de uma câmara de vigilância. No entanto, Flanagan consegue contornar esses clichês ao explorar bem o imaginário e simbolismo que envolve o espelho.


O Filme

O Espelho começa mostrando Tim Russell (Brenton Twaites) sendo liberado de um hospital psiquiátrico após anos de terapia intensiva, desde a infância, após matar seu pai com um tiro. Tim, assim como sua irmã Kaylie (Keren Gilliam), acreditaram que seu pai foi forçado a cometer uma violência horrível contra a própria família pela força sobrenatural de um antigo espelho.

Porém, anos de terapia retrabalhando essas memórias, levaram Tim a acreditar que o seu pai foi apenas um cara ruim que, descoberta a sua infidelidade pela esposa, voltou-se com violência contra os familiares.

Reinserido à sociedade, Tim volta-se a encontrar com a irmã Kayle. Sua irmã é agora uma profissional bem sucedida em uma casa de leilões de antiguidades. Mas parece que ela escolheu essa profissão de forma premeditada: ela ainda crê que sua família foi vítima daquele espelho, torna-se uma profissional no mercado de antiguidades até reencontra-lo em um leilão.  

Obcecada pela ideia de fazer um acerto de contas com aquele objeto e provar à sociedade a verdade de tudo que aconteceu na infâncias dos irmão, Kaylie rouba o espelho para leva-lo de volta à casa dos trágicos acontecimentos do passado. Kaylie arma uma fantástica variedade de câmeras, medidores de temperatura ambiente, timers e até uma lâmina oscilante presa ao teto planejando a destruição final do espelho. Mas antes, quer documentar tudo e registrar em imagens a manifestação do mal no espelho.


Kaylie fez antes uma pesquisa histórica do espelho: descobriu que chama-se “The Lasser Glass” e ao longo dos séculos, desde sua fabricação em 1754, todos os proprietários experimentaram loucura e misteriosas mortes, muitas delas violentas.

Ela pede ajuda ao relutante irmão Tim, que tenta convencer a irmã que tudo não passa de imaginação: “você vê apenas aquilo que quer ver”, repete várias vezes, enquanto Kaylie segue resoluta.

A partir daí o filme vai explorar ao limite as contraposições de flashbacks com o presente, ao ponto de em certas cenas os personagens da infância parecerem estar interagindo com eles mesmos adultos. Essa inventividade narrativa, evita as técnicas de flashbacks tradicionais. Porém, a narrativa fica cada vez mais sinuosa distorcendo tanto a percepção dos personagens como a do próprio espectador.

O espelho parece fazer jogos mentais com todos. Ou será que tudo não passa da manifestação da própria natureza do espelho: refletir nossos medos mais obscuros?

O arquétipo do Espelho

Ao longo da história o espelho criou ao seu redor uma constelação de simbolismos: reflexo da própria alma, passagem para outros mundos, indutor de visões do futuro, má sorte ao ser quebrado ou, como sugere no Feng Shui, ao usá-lo em ambientes para criar a impressão visual de expansão, energias da casa são expandidas e redirecionadas.

Mas também há um imaginário maligno: a contemplação de uma réplica de si mesmo sempre foi considerado um evento misterioso, muitas vezes o próprio prenúncio da morte. 

Certamente porque o espelho, assim como a própria fotografia no seu início, reflete exatamente aquilo que somos, confrontando nosso narcisismo – após o medo inicial, a fotografia só se tornaria popular quando descobriu-se a possibilidade de retocar o negativo.

Habilmente, o diretor Flanagan mostra o espelho secular refletindo os próprios medos domésticos de uma típica família: a mãe que olha para a cicatriz da cesariana temendo o seu próprio envelhecimento, o possível reflexo de uma amante que estaria se infiltrando no ambiente doméstico de um pai infiel e ausente etc.

Os medos domésticos

Além de refletir os temores de um novo arquétipo contemporâneo: o medo infantil de ser abandonado pelos próprios pais, que se tornam cada vez mais ausentes com a terceirização da criação dos filhos. A certa altura em um dos inúmeros flashbacks, Tim na infância olha para o pai aparentemente possuído pela entidade maligna do espelho e grita: “Você não é o meu pai!”.

O medo do abandono já está psiquicamente inscrito na matriz edipiana – a sensação infantil de abandono e impotência ao perder a Mãe. Mas na vida atual esse medo é potencializado com a figura do pai ausente – o pai que mata, abusa sexualmente ou que, simplesmente, é consumido pelo trabalho e se torna ausente.

Em O Espelho, o pai cria um home office – ele é engenheiro de software e cria no seu escritório uma vida à parte alheio a própria família. Nesse escritório doméstico está o “Lasser Glass” como peça dominante.

 Dessa maneira, a hábil e sinuosa manipulação de flashbacks cria a ambiguidade narrativa necessária para fugir dos clichês do tradicional filme de terror doméstico: há de fato alguma entidade maligna ou o espelho apenas reflete os terrores de uma família tragada pelos seus próprios medos internos?

O Espelho e o Mal Ontológico

Esse movediço terreno da ambiguidade é sempre bem vindo por fazer a representação do Mal sair do óbvio maniqueísmo hollywoodiano para entrar no Mal reversível, o Mal gnóstico.

Em O Espelho fica claro o confronto entre duas metodologias científicas: Tim e as chamadas “tecnologias do Eu” (Lucien Sfez) da psicoterapia intensiva e Kaylie e sua abordagem empírica de um suposto fenômeno paranormal – ela quer filmar, medir, documentar e registrar.

Para a filosofia gnóstica, o Mal já está presente no próprio mundo, é o Mal ontológico – o mundo não foi corrompido pelo pecado, desde o início já nasceu falho e seduzido pela reversibilidade simbólica (Jean Baudrillard): toda finalidade resulta em seu efeito inverso – esforços pela Paz produzem a Guerra, a busca pela Beleza resulta na Monstruosidade, a Razão reverte-se na Irracionalidade e luzes geram sombras.

E no filme a psicoterapia transforma-se em mera racionalização para Tim ser reinserido na sociedade após a trágica infância e toda a ciência e tecnologia mobilizada por Kaylie para documentar e extirpar o Mal volta-se contra ela mesma.

Na verdade, toda a racionalidade mobilizada por Tim e Kaylie não passaram de formas de esquecimento: vemos apenas aquilo que queremos ver.


Ficha Técnica


Título: O Espelho (Oculus)
Diretor: Mike Flanagan
Roteiro:  Mike Flanagan, Jeff Howard
Elenco:  Karen Gilliam, Brenton Thwaites, Katee Sackhoff, Rory Cochrane
Produção: Relativity Media
Distribuição: 20th Century Fox Entertainment
Ano: 2013
País: EUA

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