quarta-feira, setembro 04, 2019

Cada hora de telejornal da Globo rende pouco mais de 10 minutos de "notícias reais"


Em 2003 o pesquisador Martin Howard no seu livro “We Know What You Want” descobriu que em cada hora de notícias da CNN, o noticiário transmitia pouco menos de cinco minutos de “notícias reais” (fatos espontâneos, históricos, externos à existência da mídia) – o restante é ocupado por metalinguagem e autorreferências. Sem falar no chamado “Efeito Heisenberg”: a mídia não consegue mais reportar o real – transmite apenas os efeitos que ela produz ao cobrir os eventos e, também, o esforço que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia. O “Cinegnose” aplicou essa mesma metodologia na análise de quatro edições do telejornal local “Bom Dia São Paulo” da Globo. E chegou a resultados próximos: duas horas de telejornal resultam em 27 minutos de “notícias reais” – ou média de 13 minutos de notícias por hora. No restante, o telejornal passa o tempo falando de si mesmo – metalinguagem, autorreferencialidade fática e efeito Heisenberg.  Resultando num híbrido de jornalismo e propaganda. Infotenimento.

Sabemos que há muito tempo a TV deixou de ser uma janela aberta para o mundo – uma testemunha ocular da História de eventos espontâneos que são apenas observados e reportados. Não importa se de forma parcial ou imparcial. Mas, pelos menos, os fatos estão ali, históricos, espontâneos, regidos por uma lógica própria e indiferentes à existência das mídias.
Mas isso foi deixado para trás, para os velhos tempo do “Repórter Esso” dos tempos do rádio e da TV Tupi, que se auto-intitulava “testemunha ocular da História”. 
Essa mudança radical da natureza da TV (ou dos fatos) não se deve apenas à mentira, omissão ou manipulação dos acontecimentos por interesses midiáticos políticos, ideológicos ou partidários. Mas também como um efeito intrínseco ao próprio crescimento das mídias, até se tornarem um horizonte de eventos análogo ao dos buracos negros da astrofísica: se não apareceu no horizonte midiático, logo jamais aconteceu.
 O jornalística e crítico social norte-americano Neal Gabler deu um nome para esse fenômeno: “Efeito Heisenberg” em uma alusão ao princípio da mecânica quântica de Werner Heisenberg (1901-1976): quando se tenta estudar uma partícula atômica, o ato de medir a posição necessariamente perturba o momentum da partícula – você não pode observar uma coisa sem influenciá-la – Leia GABLER, Neal. “Vida, O Filme – Como o entretenimento conquistou a realidade”, Companhia das Letras, 1999.

Neal Gabler

Negócio tautológico

Para Gabler, o crescimento do complexo midiático ao ponto de transformá-lo no próprio horizonte de eventos da sociedade produziu um gigantesco Efeito Heisenberg: a mídia não consegue mais reportar o real, mas apenas cobre a si mesma – o efeitos que ela produz ao cobrir os eventos e, também, o esforço que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia.
O problema é que, por má-fé, continua a vender isso como “informação” ou “jornalismo”, escondendo a natureza tautológica em que se transformou o negócio.
Por exemplo, Martin Howard em seu livro “We Know What You Want” (Desinformation Book, 2005) levantou alguns dados de como o telejornalismo da CNN, por hora, produz em média pouco menos de cinco minutos de notícias “reais” (isto é, relativas a fatos “espontâneos”, “históricos”, externos à mídia), em confronto a acontecimentos cuja motivação é atrair a atenção das mídias (estórias de tabloides e notícias regionais) ou metalinguagem e auto-referência – conteúdo de talk show e escaladas. Sem falar nos infomerciais e intervalos publicitários.
O caso do telejornal local Bom Dia São Paulo da TV Globo (apresentador pelos jornalistas Rodrigo Bocardi e Glória Vanique) é certamente um objeto exemplar para essa análise sobre o destino “Heisenberg” da grande mídia. 


Em postagem anterior este humilde blogueiro já havia analisado que os diversos “Bom Dia” (SP, Rio, Minas etc.) de uns tempos para cá assumiram uma função motivacional, como primeiro telejornal da manhã para aqueles que vão à procura de trabalho ou para seus empregos – o predomínio de matérias “inspiradoras”, “motivacionais” onde até na previsão do tempo o viés é o de dar “boas notícias” para dar um “up” no astral tão em baixa dos brasileiros – clique aqui.
Mas, particularmente, o Bom Dia SP é um caso exemplar – o Efeito Heisenberg está tão presente que o noticioso está chegando às raias do “infotenimento”: gênero híbrido de entretenimento com informação.

A irrealidade da metalinguagem

Vamos primeiro aos números, tentando acompanhar a metodologia proposta por Martin Howard fez com a análise hora a hora da CNN. O Cinegnose analisou as edições de 30/08 e de 02 a 04 desse mês de setembro.
Bom Dia SP preenche duas horas da grade matinal de programação de segunda a sexta. Destas, 11 minutos são ocupados por intervalos publicitários.
Os destaques da irrealidade cotidiana desse telejornal é o domínio da metalinguagem e a autorreferência – ou discursos de natureza eminentemente fática: uma média de seis a sete minutos por quarto de hora. Totalizando pouco mais de 55 minutos - 46%. Ou seja, quase metade da parte editorial do programa passa o tempo falando de si mesma.
Por metalinguagem consideramos enunciados em que temos a centralidade do jornalista e dos meios de enunciação (câmeras, helicóptero etc.) como os protagonistas da informação, sobrepondo-se à “realidade” que deveria ser reportada.
(a) Conversas travadas entre os apresentadores, nas quais se confundem a opinião com enunciados referenciais;
(b) Piadas, observações engraçadas e “piadas internas” entre apresentadores e a produção como os operadores de câmeras do estúdio, assistentes e diretores;
(c) A presença dos próprios apresentadores Rodrigo e Gloria ao lado de espectadores na vinheta “Bom Dia São Paulo Volta Já!” no final de cada bloco;


(d) Repórter que vira protagonista da informação como, por exemplo, a repórter que decide andar em uma espécie de scooter no interior de um show room de veículos alternativos no bairro dos Jardins; ou, então, o repórter que anda de bike por um ciclovia no qual os meios de transmissão (câmera no capacete do repórter e o séquito de câmeras e assistentes que acompanham o trajeto) viram uma espécie de “show de transmissão”.
(e) Escalada (momento em que o apresentador enuncia frases ou manchetes impactantes sobre os principais assuntos do telejornal) na abertura do programa ou mini-escalada sobre os assuntos do próximo bloco. É evidente o estilo autopromocional com exortações como “sempre ao vivo!”, “Estamos ligados!”, “Vamos monitorando e atualizando!” etc.
Destas quase uma hora de autorreferencialidade, o destaque vai para os enunciados de natureza fática (função da linguagem que não busca oferecer informações de valor intrínseco, mas de função de contato, valorizando a interatividade do emissor com receptor como um fim em si mesmo) – quase 15 minutos.

Efeito Heisenberg

São os momentos #BDSP com função praticamente tautológica: no painel do cenário, os apresentadores leem postagens ou apenas redundantes (reforçar o que os apresentadores já disseram com elogios - “não saio de casa sem antes ver o #BDSP” -, queixas, lamentos - “nada muda mesmo!...”, “Essa notícia sobre moradores de rua estragou meu dia...”) ou com pequenos vídeos ou fotos “poéticas” do amanhecer ou flagrantes de problemas de zeladoria ou buracos em ruas. Mais do mesmo, raramente alguma informação nova ou mesmo sugestão de pauta que acrescente algo ao telejornal.
Da metade restante de pouco mais de uma hora na qual espera-se a referencialidade das notícias, deparamos com um grande espaço de tempo tomado pelo Efeito Heisenberg de Neal Gabler: o Bom Dia SP descreve os próprios efeitos nos eventos que o telejornal decide reportar.


Nas edições analisadas foram quase 20 minutos de Efeito Heisenberg - 12%.
Alguns exemplos:
(a) em matéria sobre lixo jogado ao lado do Viaduto Major Quedinho (Centro de SP), o repórter entrevista morador que levava sua filha para a escola. O morador relata que dificilmente vê a limpeza pública da Prefeitura no local. Naquele exato instante, um exército de garis toma conta do local, varrendo apressadamente o lixo. O morador insiste que aquilo é incomum. E corta para o estúdio com Bocardi lendo nota da Prefeitura de que aquele ponto é “viciado” – moradores jogam lixo, apesar da insistência de Prefeitura zelar sempre o local. 
Evidentemente a Prefeitura soube da pauta do BDSP e promoveu um mutirão urgente de limpeza;
(b) Acidente de carro com vítima fatal na Ponte Interlagos. Formou-se um nó no trânsito da Zona Sul, enquanto os legistas da Polícia Científica atrasavam-se para chegar – sem os seus serviços profissionais, os carros não podiam ser retirados. Protestos de Bocardi sobre a ineficiência da Polícia Civil em liberar rapidamente, provocando o caos no trânsito.
Eis que imediatamente chegam os legistas e o governador João Doria, ao vivo em áudio, diz que deu ordens para que os policiais científicos se apressassem...
(c) A série de matérias sobre “flagrantes” de repórteres em linhas de ônibus e metrô cujos usuários reclamam de atrasos, superlotação e veículos velhos e sujos. São recorrentes as situações em que a reportagem faz até a cronometragem para surpreendido, ver o ônibus chegar não só no horário, como também contando com veículos extras na linha. O repórter entra, para encontrar todos os passageiros sentados, com espaços vazios. 
Ou ainda, o episódio em que o repórter chegou na linha vermelha do metrô para entrar numa composição nova com ocupação mediana de passageiros em pleno horário do pico da manhã.


Jornalistas da TV preferem infotenimento

A recorrência nessas últimas edições foi tão explícita, que vem merecendo a ironia “heisenbergiana” do apresentador Rodrigo Bocardi: “Será o efeito do Bom Dia São Paulo?”.
O que deveria ser um problema para a reportagem (o sujeito investigado sempre se antecipa à pauta, anulando a objetividade do flagrante), para o BDSP torna-se motivo autopromocional.
Sintetizando: do bolo de duas horas de BDSP, intervalo publicitário, metalinguagem, autorreferencialidade fática, e Efeito Heisenberg abocanham 81 minutos. Restando 39 minutos para as notícias.
Mas também temos que considerar que desse tempo restante, 13 minutos giraram em torno de informações repassadas pelo aplicativo Waze (trânsito) ou do monitoramento da CPTM e Metrô que alimentam as informações do infográfico do painel interativo do cenário do estúdio.
Ou seja, restam 26 minutos de “notícias reais” (22%) - fatos espontâneos, a alteridade em relação a existências das mídias. Uma média de 13 minutos de notícias reais por hora. Pelos menos supera as estatísticas da CNN analisadas por Martin Howard em 2003 – apenas menos de 5 minutos por hora.
Os números dessa amostragem confirmam algumas percepções desse humilde blogueiro:
(a) Dentro do roteiro telejornalístico da grade de programação da TV, os noticiosos locais assumem um papel motivacional de infotenimento, enquanto os jornais de rede assumem o papel de alarme, com hardnews predominantes – ainda é necessário pesquisar a fatia de tempo dessas “notícias reais” ocupadas por Efeito Heisenberg, repasse de informações ou “pseudoeventos” – fatos deliberadamente criados para atrair a atenção das mídias, uma faceta do Efeito Heisenberg;
(b) O espaço de tempo ocupado pela metalinguagem e autorreferencialidade fática é tão espantoso que praticamente podemos considerar que a informação do BDSP é autopromocional – o jornalismo confunde-se com a propaganda. 
É quando o infotenimento substitui o Jornalismo. Nessa perspectiva, compreende-se o porquê ser tão natural para muitos jornalistas na TV migrarem para os programas de entretenimento.

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