A transmissão
televisiva da final do Novo Basquete Brasil parece confirmar aquilo que Neal
Gabler chama de “efeito Heisenberg”, paradoxo quântico onde a mídia, na
verdade, está cada vez mais cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida: ao
mobilizar uma serie de signos que forçavam uma analogia com o show business
esportivo norte-americano, a transmissão celebrou muito mais o sucesso da
parceria da TV Globo com a nova liga oficial de basquete do que a transmissão
de uma “jornada esportiva”. E para ficar mais evidente isso, o barulho ensurdecedor
da torcida nas arquibancadas era menos pelos lances na quadra, do que pelo
vai-e-vem das câmeras que comandavam as reações dos torcedores.
Neste último final de semana
assisti pela TV a final do NBB (Novo Basquete Brasil, a liga oficial de
Basquete brasileiro) entre Flamengo e Uberlândia na Arena da Barra no Rio de
Janeiro. Para além dos aspectos técnicos
do jogo, começou a me chamar a atenção a forma como a partida se promovia para
os espectadores e, além, disso, o próprio comportamento dos torcedores nas
arquibancadas.
As belas imagens da arena e da
quadra pareciam forçar uma semelhança com os imensos ginásios esportivos da
Liga de Basquete norte-americana: o placar eletrônico onipresente suspenso
sobre o centro da quadra, mascotes saltitando a cada parada técnica, notas musicais
em som de órgão entoadas a cada anúncio de troca de jogadores, shows musicais
com cantores nos intervalos etc. Uma atmosfera de show business, muito mais do
que esporte: entretenimento.
Somado a isso o tom do
comportamento da plateia parecia ser dados pelas câmeras que deslizavam por
sobre as arquibancadas. Percebia-se que uma área da plateia, antes formada por
torcedores sentados e concentrados no jogo, ao verem a proximidade da câmera se
levantavam, pulavam e torciam de forma mais enérgica. Alguns homens mais
empolgados beijavam suas companheiras ao serem surpreendidos pela proximidade
da câmera...
Para Neal Gabler a sociedade transformou-se em um gigantesco "Efeito Heisenberg" |
Tudo isso fazia vir à minha
mente a expressão “efeito Heisenberg” criada pelo jornalista e crítico cultural
Neal Gabler no seu livro Vida, O Filme –
Como o entretenimento conquistou a realidade. Gabler atribui esse fenômeno a
um efeito secundário produzido pela mídia: se o principal efeito da onipresença
midiática foi transformar quase tudo que era noticiado em entretenimento, o
efeito secundário foi forçar quase tudo a se transformar em entretenimento para
atrair a atenção da mídia.
O termo “efeito Heisenberg” é
uma referência ao princípio da incerteza da mecânica quântica de Werner
Heisenberg (1901-1976): quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição
necessariamente perturba o momentum de
uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode
observar uma coisa sem influenciá-la.
Para Gabler o resultado da
onipresença das mídias teria sido transformar a sociedade em um gigantesco
efeito Heisenberg. Nas palavras dele
“as mídias não estavam de fato relatando o que as pessoas faziam; estavam relatando o que as pessoas faziam para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida que a vida estava sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta estava cada vez mais cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida” (GABLER, Neal. Vida, O Filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 97).
Durante a transmissão pela TV
Globo da final da liga nacional de basquete, parecia que não estávamos apenas
assistindo a uma competição técnica entre poderosos times. Havia uma outra
“cena”: a emissora transmitia o próprio impacto midiático da parceria da
emissora com o NBB, desde a presença massiva dos signos para forçar uma
analogia ao show business esportivo norte-americano às reações do público
comandadas pelos vai-e-vem das câmeras.
Em muitos momentos ocorria um
fenômeno paradoxal: o barulho das arquibancadas que ouvíamos na transmissão não
era motivado por algum lance que ocorria no jogo, mas pela movimentação das
câmeras voltadas para a plateia que acabava criando uma espécie de “ola”.
Tal como o paradoxo quântico
descrito por Heisenberg, a transmissão midiática altera a própria natureza,
trajetória e espontaneidade do objeto observado. Não se trata mais de uma
transmissão de um fato esportivo, mas agora e cada vez mais, a transmissão de
um evento (no sentido mercadológico) esportivo, onde a emissora é um dos
próprios promotores que produzem o evento e que ela mesmo transmite. Um
fenômeno de recursão e circularidade vertiginosa: a TV Globo observa, altera o
fenômeno e transmite a própria alteração, o que retroalimenta o sistema em loop.
Estratégias indiretas
Gabler, citando o historiador
Daniel Boorstin, fala das chamadas “estratégias indiretas” que dominam a
sociedade, à qual Boorstin cunhou como “pseudo-eventos”: tudo deve se
transformar em entretenimento para chamar a atenção da mídia. Disso decorre que
todo e qualquer problema real poderia ser solucionado por uma estratégia
indireta – não para resolver problemas reais e sim para parecer que está
resolvendo.
Boorstin dava o exemplo de um
hotel que tinha vivido épocas douradas e que estava, agora, decadente:
tapeçaria e estofados surrados, serviço de hotelaria defasado e quartos sem
clientes. Qual a solução? Em tempos
menos sofisticados a solução seria encontrar um novo chefe de cozinha, melhorar
o encanamento... Mas a técnica dos relações públicas é mais indireta: eles
propõem a celebração do aniversário do hotel, com a presença de celebridades e
políticos para mostrar que “os bons tempos voltaram”. O evento é realizado e o
objetivo alcançado: ganhar visibilidade midiática para o “novo hotel” que surgiu.
Os 16 anos do basquete nacional afastado
dos Jogos Olímpicos, um esporte onde o Brasil já tinha sido bicampeão mundial
(1959 e 1963), foi uma evidente mostra da sua decadência técnica. De segundo
esporte mais popular, o basquete perdeu o posto para o vôlei. O interessante é
que a avaliação dos dirigentes para essa questão foi antes mercadológica do que
técnica: o problema era de “visibilidade”.
Em 2008 cria-se a Liga Nacional
de Basquete (LNB) e a marca “Novo Basquete Brasil” com a parceria da TV Globo.
A marca NBB passa a ser licenciada em parceria com a Globo Marcas e o Jogo das
Estrelas, nos moldes do show business norte-americano.
Mais barulhento, mais rápido e maior
Regras do tênis alteradas para dar mais fluidez televisiva |
A questão levantada por Gabler
sobre o “efeito Heisenberg” e os “pseudo-eventos” de Boorstin não quer discutir
se, de fato, essas estratégias indiretas repercutem no “real”: será que o hotel
vai realmente voltar aos seus anos dourados e melhorar seus encanamentos e a
qualidade da cozinha? Será que o basquete brasileiro melhorará tecnicamente? A
questão aqui não é essa, mas no efeito secundário dessas estratégias indiretas:
ao observarmos uma transmissão televisiva que se traveste de “jornada
esportiva”, não estamos mais testemunhando um fato, mas antes vendo como a
mídia cobre a si mesma e o seu impacto sobre a vida.
É curioso como, por exemplo, o
tênis (um esporte cujas origens são pastorais e contemplativas) tem suas regras
alteradas para se adequar à sintaxe televisiva: a adoção do tie braker para diminuição do tempo dos games, punição para jogador que excede o
tempo limite entre os pontos etc. visam dar mais “fluidez” ao jogo – na verdade
forçar as partidas à grade televisiva, já que as mídias não são meras
transmissoras, mas agora parceiras na produção dos eventos.
Se em 1924 durante a cerimônia
da abertura da World Series de beisebol nos EUA a simples entrada de coristas
em campo foi bombardeada por cascas de laranja e garrafas de refrigerante
jogadas pela indignada torcida que via na atração uma intrusão em um evento
esportivo, hoje o torcedor médio não consegue (e nem se importa) estabelecer a
diferença entre esporte e entretenimento, entre uma avaliação técnica de um
evento real e um evento ficcional onde os jogadores interpretam muito mais
personagens (o “xerife”, o “cai-cai”, o “baladeiro”, o “malandro” etc.) do que
atletas em competição.
O efeito Heisenberg é o efeito
secundário que reforça o fenômeno midiático de autoreferência e tautismo que já
descrevemos em postagem anterior (veja links abaixo). A primeira consequência
desse efeito é afetar a nossa percepção da realidade: passarmos a privilegiar e
dar importância moral a tudo aquilo que represente ser mais barulhento, mais
rápido e maior – ou seja, a própria natureza da linguagem midiática que exige
do evento que se encaixe a essas premissas.
E a própria circularidade e
autorefrência que representa o efeito Heisenberg apenas reforça o monopólio
político e econômico da mídia (e, no caso do Brasil, da TV Globo) como um quarto poder da sociedade, não tanto porque
ela só mostra o que quer, mas principalmente porque um fato só existe se a mídia
o criou e transmitiu.