À primeira vista, parece mais um filme pós-apocalíptico padrão, com uma paleta de cor sombria e uma cidade em ruínas. Mas “Exodus” (2021) vai além, indo à raiz daquilo que inspirou todos os filmes pós-apocalípticos do cinema: a releitura gnóstica do apocalipse bíblico através de uma narrativa que sempre começa do fim – como se a Bíblia fosse lida de trás para frente, do Apocalipse ao Gênesis. Uma fita VHS e um pager são as pistas para uma mítica Porta que estaria pairando no deserto, longe de um governo totalitário que mantém a ordem do que restou da civilização. Dissidentes tentam se aventurar no deserto em busca da saída desse mundo. Quanto mais a Porta está próxima, mais a realidade é distorcida. Tornando a jornada enigmática e obscura, tanto para os protagonistas quanto para o espectador.
Quanto mais se estuda a cosmogonia gnóstica, mais somos tentados a interpretar a o livro sagrado da Bíblia de trás para frente: começar do Apocalipse e terminar no Gênesis. Isso porque a cosmogonia gnóstica tem uma característica bem peculiar em relação às religiões salvacionistas – o próprio Big Bang da Criação foi o Apocalipse.
Esse é o princípio da filosofia gnóstica. O Mal já estava na própria Criação. Por isso, o Gnosticismo sempre foi associado a uma espécie de “escatologia realizada”. Isto significa que qualquer realidade que vale a pena se desfez antes da Criação, com a queda mitológica de Sophia. O Big Bang foi o Apocalipse. Os seres humanos seriam apenas fragmentos da Divindade suprema agarrados a destroços mortos flutuando em um oceano de matéria escura.
Então, isso significa que toda a história humana nada mais é do que uma grande distopia? Toda história começa pelo fim? Desde a descoberta e a tradução dos chamados Evangelhos Gnósticos Apócrifos de Nag Hammadi em 1945 (clique aqui), esse argumento encantou roteiristas e produtores de cinema. Trazendo o argumento do pós-apocalipse para a telona, desde o perturbador final do clássico O Planeta dos Macacos (1968): desde o início do filme, e sem saber, Taylor (Charlton Heston) estava no planeta Terra em um futuro pós-apocalípse nuclear. O Planeta dos Macacos tornou-se, então, uma franquia cinematográfica que começava pelo fim.
Quando começamos a assistir ao filme Exodus (2020), estreia do diretor de fotografia que virou diretor Logan Stone, parece que estamos diante de mais um filme pós-apocalipse padrão: uma cidade pós-industrial em ruínas, carros queimados nas ruas, o céu continuamente cinzento e uma paleta de cores adequadamente sombria. Na verdade, parece mais um filme que figura como as características padrões da sociedade norte-americana são projetadas nesse subgênero: individualismo rude e um próspero sistema prisional de um governo totalitário, condição necessária para manter a ordem num mundo que acabou.
Porém Exodus traz algumas novidades: conecta o tema pós-apocalíptico no cinema com o próprio Apocalipse bíblico. Primeiro, inspirando o argumento do roteiro em uma passagem do livro bíblico do Apocalipse:
Depois disso, olhei, e diante de mim estava uma porta aberta no céu. E a voz que ouvi pela primeira vez falando comigo como uma trombeta disse: “Suba aqui, e eu lhe mostrarei o que deve acontecer depois disso” (Apocalipse 4:1)
Segundo, porque o apocalipse que se abateu no planeta há sete anos não foi uma guerra, um holocausto nuclear ou alguma catástrofe climática: foi aquilo que a escatologia cristã chama de “Arrebatamento”: o evento inicial do Fim dos Tempos, no qual os seguidores de Cristo, vivos ou já mortos, subirão para o céu ao encontro de Jesus. Tudo isso ocorreria antes da Grande Tribulação na qual aqueles que não acreditam em Jesus serão deixados para sofrer. Mesmo assim alguns poderão ser salvos. Porém, esse segundo Arrebatamento seria em segredo, deixando muitas pessoas confusas.
E sobre isso que trata o filme Exodus: num mundo pós-apocalipse, correm rumores sobre a existência de uma espécie de porta interdimensional fora das fronteiras daquela cidade em ruínas, em algum lugar em um perigoso deserto. Somente os verdadeiramente crentes poderão encontrá-la. E as únicas pistas são uma velha fita VHS e um pager.
O Filme
Sete anos após o arrebatamento, os residentes de uma pequena cidade vivem sob um misterioso regime totalitário. Os nomes das pessoas que tentaram escapar são anunciados em alto-falantes; cidadãos-delegados interrogam aqueles que retornaram à cidade voluntariamente após terem experimentado o deserto árido e desorientador além da segurança da civilização. E fracassaram na busca pela Porta.
Esses agentes do Estado usam tecidos vermelhos amarrados em volta dos braços. Não há uniformes extravagantes ou grandes monumentos distópicos de uma ordem fascista. Como a maioria das coisas nesta sociedade pós-apocalipse discreta, o que vemos nessa nova versão da sociedade não é uma versão improvisada de 1984.
Depois de interrogar um fugitivo recém-retornado, um dos interrogadores, Connor (Jimi Stanton), descobre uma fita VHS que oferece pistas para “A Porta” - um portal flutuante mítico no meio do deserto que muitos acreditam ser a rota de fuga deste purgatório terrestre. A fita traz consigo um aviso de que a realidade ficará distorcida quanto mais perto se chega da Porta, quase como migalhas de pão psicodélicas ao melhor estilo do deserto do filme de Alejandro Jodorowsky, El Topo.
Connor decide tornar-se um dissidente do Estado, largar tudo (inclusive o seu irmão, doente crônico submetido a tratamento de diálise) e seguir essa pista, para ver se há alguma verdade nos boatos. Depois de deixar seu irmão com um amigo, ele começa sua jornada e é secretamente seguido por uma agente do Estado chamada “The Emissary” (Janelle Snow).
A princípio ela vai atrás de Connor para prendê-lo, mas resolve segui-lo para poder encontrar a sua filha (também perdida no deserto em busca da Porta) para trazê-la de volta para o que restou da civilização.
É quando o filme salta para o estilo das poesias visuais simbólicas das revelações do livro bíblico do Apocalipse: parece que quanto mais Connor está se aproximando da Porta, mais a realidade começa a ficar distorcida, assim como uma velha fita VHS - Connor encontra um homem acorrentado; um urubu em um banco de parque; um casal em uma van com uma conexão bizarra com o The Emissary; e um fio azul que aparece esporadicamente sob a areia do deserto que parece estar ligado a alguma coisa ou equipamento.
No curto tempo de 75 minutos, Exodus levanta mais perguntas do que está interessado em responder, parecendo emular a próprio inextrincável simbolismo bíblico. Conforme Connor mergulha mais fundo no deserto e encontra outros viajantes, todos procurando pela Porta, a lógica do filme começa a se desvendar. Os efeitos especiais são implantados para sugerir o significado da Porta sem revelar nada sobre o que significa ou para onde leva, deixando o público tão perplexo quanto o resto dos errantes.
Positivamente, Exodus é um filme estranho e difícil de acompanhar. Não chega ao simbolismo bem estruturado do deserto de Jodorowsky. Muitas vezes as cenas parecem investidas de um simbolismo arbitrário, randômico.
Porém, a virtude de Exodus é o de ir diretamente à raiz de todas as distopias pós-apocalípticas do cinema: a releitura gnóstica do apocalipse bíblico através de uma narrativa que sempre começa do fim.
Mas o principal simbolismo é o da Porta que paira em meio ao deserto. Porta + deserto é um complexo simbólico irresistível no filme. O deserto é como a descrição da condição existencial gnóstica humana: um espaço morto, cru, áspero e rude como fosse de um outro planeta que envolve o homem como um estrangeiro que não pertence àquele lugar. A Criação que, na verdade, foi a destruição, o Apocalipse. E a Porta, um símbolo universal de passagem. Se não for para o Alto, pelo menos como fuga de uma realidade opressiva.
Ficha Técnica |
Título: Exodus |
Diretor: Logan Stone |
Roteiro: Logan Stone, Andrew Arcos |
Elenco: jimi Staton, Janelle Snow, Charles Andrew Gardner |
Produção: Cinestone, |
Distribuição: ABS Payroll & Production Accounting Services |
Ano: 2021 |
País: EUA |
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