A
descoberta e as posteriores traduções da chamada “biblioteca de Nag Hammadi” no
Egito trouxeram uma nova luz sobre os ensinamentos de Cristo. O foco comum dado
pelas religiões na morte-ressurreição de Cristo e no plano ético e devocional
da sua passagem pela Terra esconderia a sua principal missão: a de trazer o
conhecimento secreto que nos faça ter a consciência de que estamos perdidos e
longe de casa, e o caminho de volta já está dentro de nós. Cabe a nós
relembrarmos.
"O
pensamento aguarda que, um dia, a lembrança do que foi perdido venha
despertá-lo e o transforme em ensinamento" (Theodor Adorno)
O Gnosticismo em geral, e os evangelhos apócrifos
descobertos em Nag Hammadi no Egito em 1945 (conjunto de antigos pergaminhos
composto pelos evangelhos que revelariam a natureza do antigo cristianismo e as
interpretações místicas de Cristo feitas pelos gnósticos) em particular,
apresentam um espectro de crenças cujo núcleo central filosófico é bem discernível,
aquilo que Kurt Rudolph chama de "mito central": o Gnosticismo nos ensina
que algo está desesperadamente errado com o universo. Dessa forma os escritos
gnósticos tentaram delinear os meios de explicar essa falha cósmica e corrigir
a situação.
O universo, tal como atualmente constituído, não é
bom, nem foi criado por um Deus todo poderoso. Em vez disso, um deus menor, ou “demiurgo”
(como é chamado às vezes), moldou o mundo na ignorância. O Evangelho de Filipe
de Nag Hammadi, diz que "o mundo surgiu através de um erro. Para aquele
que o criou queria criá-lo imperecível e imortal. Ele ficou aquém de alcançar o
seu desejo.” A origem do demiurgo é diversas vezes explicada como resultante de
alguma perturbação pré-cósmica na cadeia de seres que emanam do incognoscível
Deus-Pai. Isso originou a “queda” de uma divindade inferior, com credenciais
bem menores. Tentando recriar nos planos inferiores a Plenitude da qual “decaiu”,
acabou por criar um cosmos material encharcado de dor, ignorância, decadência e
morte - um trabalho malfeito, com certeza.
Os 13 manuscritos descobertos em Nag Hammadi no Egito em 1945: evangelhos com interpretações bem diferentes do Cristo bíblico |
Esta deidade, no entanto, despoticamente exige
adoração e até mesmo pretensiosamente proclama a sua supremacia como o único
Deus verdadeiro. Este deus-criador não é a realidade última, mas sim uma
degeneração da plenitude desconhecido e incognoscível do Ser (ou “Pleroma”). No
entanto, os seres humanos - ou pelo menos alguns deles – teriam condições para
ultrapassar essas limitações impostas por esse cosmos hostil - e essa narrativa lembra uma série de filmes recentes de ficção científica, de "Blade Runner", passando pelo novo clássico "Matrix" até chegar ao recente "Prometheus".
Tal qual um joalheiro bêbado que acidentalmente
mistura ouro com o pó metálico do lixo, o demiurgo acabou trancando no interior
do corpo físico de cada indivíduo a centelha da mais alta realidade espiritual
ao infundir a humanidade na sua criação. Simplificando, o espírito é bom e
desejável; matéria é má e detestável. Se essa faísca for ventilada criará
chama, libertando os seres humanos da matrix enlouquecedora da matéria e das
exigências de seu criador obtuso. O que delegou da perfeição pode finalmente
evoluir de volta para a perfeição através de um processo de auto-descoberta.
Jesus era um “aeon”
Dentro dessa estrutura básica entra a ideia de
Jesus como Redentor dos abrigados na materialidade. Ele vem como um descendente
do reino espiritual com uma mensagem de auto-redenção. O corpo de literatura
gnóstica, que é mais amplo do que os textos de Nag Hammadi, apresenta vários
pontos de vista desta figura Redentor.
Diferentes cristologias entre as diversas escolas do Gnosticismo |
Há, de fato, diferentes escolas do gnosticismo com
cristologias diferentes. No entanto, a imagem comum emerge. O Cristo vem dos
níveis mais elevados de seres intermediários (os chamados “aeons”, emanações da
“Região da Luz”), não como alguém que veio se sacrificar na cruz para nos
redimir dos pecados, mas como um revelador que veio sob a forma física de Jesus
e para nos ensinar o caminho da gnose que nos faria relembrar o caminho de
volta ao Pleroma.
Ele não foi uma espécie de agente pessoal do
deus-criador revelado no Antigo Testamento - essa divindade metafisicamente
despenteada e que criou um universo que está em uma verdadeira bagunça. Em vez disso, Jesus desceu de um nível mais
elevado para ser um catalisador, para inflamar a “gnosis” latente dentro do
ignorante. Em vez de trazer uma restauração ética às criaturas errantes de Deus
através da crucificação e ressurreição, Ele teria vindo para nos relembrar que
dentro de cada um de nós estaria uma verdade esquecida.
Morte e Ressurreição de Cristo
Cristo teria feito parte de uma
cadeia de iluminados, aeons: Set, Enoch, Nicoteo, Noé, Sem, Abrahão, Zoroastro,
Buda etc. Todos eles teriam tido a missão de nos mostrar que as nossas
percepções condicionadas pelas experiências distorcidas nesse cosmos físico
criaram uma prisão da essência espiritual no homem (a “centelha”). Lembrar através
de um conhecimento secreto que o homem está perdido e longe de casa.
O problema é que o Cristianismo
foca no sofrimento e na morte de Cristo, beirando o sado-masoquismo. Para o
gnóstico, dor e sofrimento são partes da condição da queda nesse mundo, o
resultado de nossa queda na a matéria.
Não há graça no sofrimento. O
objetivo é transcender a matéria, não chafurdar em seus aspectos mais
dolorosos. O foco no sofrimento e na morte de Jesus demonstra apenas a reação
do ignorante para a principal lição de Cristo: a gnose. Ao contrário, na “ressurreição
ilustrada” a morte é um tema superado. É irrelevante se fisicamente Jesus
voltou dos mortos ou não, uma vez que os gnósticos e Jesus têm desprezo pela
matéria, parece altamente improvável que a ressurreição teve a ver com a
re-animação de um cadáver. Foi um despertar para a luz, a Transfiguração, em
vez de alguma misteriosa reanimação.