sábado, dezembro 22, 2012

O fim do mundo não foi televisionado

Conclusão do post 
"A necrospectiva do fim do mundo"
Peter Cornelius, The Riders of Apocalypse (1845)
Abrigos nucleares são vendidos nos EUA para aqueles que acreditam que o fim do mundo se aproxima. No interior da França uma comunidade religiosa acredita que apenas a pequena localidade onde vivem será uma das poucas que sobreviverá ao cataclismo global. E se invertermos a linha de tempo? Em outras palavras, e se o apocalipse já tiver ocorrido? E se, sem sabermos, já estivermos em um mundo pós-apocalíptico vivendo as consequências de um cosmos que se legitima por meio da crença religiosa de que tudo, um dia, terá um fim? Essa é a heresia gnóstica, esquecida pela hegemonia de um mercado de profecias sobre o fim do mundo que desempenha um duplo papel: como manipulação ideológica e, também, como sintoma da condição humana alienada nesse mundo.

O Titanic já afundou. Os cavaleiros do Apocalipse já cavalgaram há muito tempo pela Terra. O Apocalipse não foi televisionado e nem foi roteirizado por uma produção hollywoodiana. Já ocorreu há muito tempo atrás com o “Big Bang” da Criação.

Esse é o princípio da filosofia gnóstica. O Mal já estava na própria Criação. Por isso o Gnosticismo  sempre foi associado a uma espécie de “escatologia realizada”.  Isto significa que qualquer realidade que vale a pena se desfez antes da Criação, com a queda mitológica de Sophia. O Big Bang foi o Apocalipse. Os seres humanos seriam apenas fragmentos da Divindade suprema agarrados a destroços mortos flutuando em um oceano de matéria escura.


Stevan Davies, em sua obra “The Secret Book of John: The Gnostic Gospel Annoted and Explained”, sintetizou esta tragédia cósmica da seguinte maneira: " Deus enlouqueceu e se tornou como nós ".

O Gnosticismo soa como ficção científica, mas é
menos bizarro que todas as escatologias
religiosas e hollywoodianas juntas
Por meio da gnose podemos encontrar o nosso caminho de volta para a divindade suprema. 

Isso soa como uma boa ficção científica, mas essa reviravolta gnóstica na história do Armagedom não é mais bizarra do que todas as escatologias religiosas e hollywoodianas juntas. Ela se aproxima de algumas escolas filosóficas orientais.

Essa ideia gnóstica da "escatologia realizada" nunca foi bem sucedida ao longo da história da filosofia, mesmo sabendo que as religiões continuam falhando em prever quando a Terra vai literalmente pegar fogo. Parece que as pessoas simplesmente não querem uma história que começa no final.

Uma escatologia realizada


Escatologia, a especulação sobre as últimas coisas, desempenha um papel importante em praticamente todas as religiões. O gnosticismo não é diferente neste aspecto. No entanto, o gnosticismo é único em que a distinção entre o futuro escatológico e salvação no presente começa a desaparecer. Isto é particularmente verdadeiro no chamado Valentianismo – de Valentino, nascido em Cartago em torno de 100 DC e aluno de São Paulo quase se tornou papa. Fez uma interpretação gnóstica da mensagem de Cristo. Para ele, Cristo não foi um “salvador”, mas um “curador” já que nada há para ser salvo, pois o mundo é imperfeito não pelo pecado, mas pela obra falha de um deus criador inautêntico.

A posição Valentiniana no fim do mundo está intimamente ligada ao seu ensino sobre a origem do mundo. Segundo a doutrina Valentiniana, os seres humanos (personificados como Sophia) eram originalmente parte da coletividade divina ou plenitude (pleroma). O mundo se origina quando os seres humanos caem em um estado de sofrimento e de deficiência. A existência física é explicitamente identificada com este estado de queda. Da mesma forma, a dissolução do mundo e restauração a Plenitude ocorreria por meio da gnose.

Para o gnosticismo valentiniano, as
ideias sobre fim do mundo e
ressurreição eram ingênuas
Para os valentianos, as ideias cristãs sobre o fim do mundo e uma ressurreição física eram interpretações ingênuas. Por meio de experiências visionárias e rituais acreditavam que a gnose restauraria a plenitude e dissolveria a ilusão do mundo no presente. Para a pessoa que tem a gnose o fim do mundo já teria chegado!

Fim do mundo como sintoma


Como diria o alemão Theodor Adorno, toda ideologia tem o seu momento de verdade. Apesar do mito do fim do mundo ter se transformado em uma franquia cinematográfica e um próspero mercado de produtos que vão desde as promessas de salvação espiritual até a salvação física em abrigos nucleares, há um elemento verdadeiro em tudo isso: o de ser um sintoma da condição humana alienada nesse mundo.

Se a hipótese escatológica de um fim onde tudo será redimido foi uma tentativa de solução para as principais tensões existentes nas religiões (a tensão entre o indivíduo falível e mortal e o Divino imortal e perfeito) e na filosofia (a tensão entre o destino humano e do Universo como um todo), ela também expressou o mal estar da condição humana em um cosmos hostil: o estranhamento e alienação em relação à existência, a desconfiança gnóstica de que seríamos prisioneiros em um cosmos hostil, nas mãos de um Demiurgo enlouquecido – desconfiança tão bem expressa cinematograficamente em filmes como “Show de Truman” ou no recente “Prometheus”.

A cada blackout onde vemos as crianças vibrarem por brincarem no escuro ou porque as aulas acabaram; a cada banco que é roubado nas telas do cinema; a cada vítima do serial killer Jason nos filmes de terror; a cada vez que Nova York vai pelos ares pelas mãos dos terroristas, ETs ou catástrofes climáticas no cinema, em todos esses momentos está latente o secreto desejo humano de que todo esse mundo hostil e sem sentido desapareça e para nos libertar definitivamente.

Por isso, toda a indústria do entretenimento explora esse mal-estar oferecendo imagens arquetípicas de libertação e quebra da ordem – rotinas que são quebradas por vilões, ETs, serial killers, catástrofes variadas etc. – para no final a ordem ser restabelecida por heróis que põem a ordem na casa nos fazendo voltar conformados ao nosso cinzento cotidiano depois que as luzes do cinema se acendem.

Por isso o fim do mundo, o apocalipse, a ressurreição ou a salvação sempre foram postergados para o futuro ou para o além. Dessa forma, a heresia gnóstica da “escatologia realizada” sempre foi esquecida. Ninguém parece gostar de histórias que começam do fim.

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