quarta-feira, fevereiro 06, 2013

O fator humano diante do fim do mundo no filme "Last Night"


(À esquerda - "The Old Man's Boat and the Old Man's Dog",
Eric Fischl, 1982).
Habitualmente nos filmes-catástrofes hollywoodianos temos muita ação, destruição e explosões que acabam desviando a atenção do espectador do sintoma cultural que representa a recorrência do tema fim do mundo no cinema. Ao contrário, no canadense “Last Night” (1998) a narrativa disseca uma variável que nenhum filme-catástrofe desenvolve: o fator humano. No filme não há ônibus espaciais, generais estressados ou cientistas heroicos. Apenas pessoas comuns que tentam realizar seus últimos desejos antes do fim. E esses desejos transformam-se em termômetro do mal estar cultural que estava por trás da histeria midiática do “novo milênio” no final do século XX.

O pesquisador canadense Arthur Kroker em seu livro “The Postmodern Scene” considerava a obra “The Old Man’s Boat and the Old Man’s Dog” do artista plástico Eric Fischl (1982) como um símbolo da “cena pós-moderna”: vemos na tela jovens nus refastelados no convés de uma embarcação em pleno alto mar. Estão bebendo, deitados, relaxados como se estivessem em um calmo dia de sol, enquanto o oceano está agitado e o céu escuro prenuncia uma tormenta. Um enigmático dálmata passeia por entre os corpos nus de pessoas completamente alheias ao seu futuro: o naufrágio. Onde está o “velho homem” do título? Vemos somente jovens sem futuro convivendo com a ausência do passado. Hedonismo e niilismo.

Pois o filme de outro canadense, o diretor Don McKellar, também coloca jovens personagens em um insólito cenário de uma contagem regressiva para o fim do mundo a poucas horas das celebrações do ano novo. Não sabemos como e porque o mundo vai acabar à meia noite. As pessoas parecem ter pouco senso de pânico e querem celebrar a última noite sobre a Terra realizando freneticamente seus últimos desejos. É o filme canadense “Last Night”, de 1998.

O cenário cultural da última década do século XX estava contaminado pela histeria do fim do milênio: profecias de Nostradamus, a ameaça da bomba informática do “bug do milênio”, o “crash” financeiro mundial de 1998; e tudo isso como cenário de uma safra hollywoodiana de filmes sobre o fim do mundo: “Independence Day” (super invasão alien), “Os Doze Macacos” (um vírus acaba com o mundo), “Impacto Profundo” (a Terra ameaçada por um cometa ), “Armagedon” (mais um asteroide ameaça o planeta) etc. É uma lista imensa que se intensifica na segunda metade daquela década.

Isso sem falar em painéis públicos (um deles no complexo Beaubourg em Paris) colocados em várias partes do mundo com cronômetros digitais fazendo uma contagem regressiva para o novo milênio...

O fator humano


Enquanto nos filmes citados acima temos muita ação, destruição e explosões que acabam desviando a atenção do espectador para o sintoma cultural que representa a recorrência desse tema, em “Last Night” a narrativa disseca uma variável que nenhum filme-catástrofe desenvolve: o fator humano. No filme não há ônibus espaciais, generais estressados ou cientistas heroicos. Apenas pessoas comuns que tentam realizar seus últimos desejos antes do fim. E esses desejos transformam-se em termômetros do mal estar cultural que está por trás da histeria sobre o fim do mundo.

O filme começa às 18 horas do dia 31 de dezembro de 1999, seis horas antes do fim do mundo que já era conhecido já há alguns meses. A destruição do planeta é um pressuposto dado como inevitável no roteiro. Temos apenas algumas pistas sobre a natureza do fim (o Sol vai explodir em um supernova?), mas McKellar concentra-se nos dramas pessoais tendo como cenário uma Toronto tomada por pessoas nas ruas que apenas querem fazer coisas que antes eram proibidas - quebrar janelas de carros, andar sem destino e enchendo a cara etc.

Vemos Patrick (Don McKellar) contando os minutos para cair fora do jantar natalino familiar para passar os últimos momentos sozinho em seu apartamento. Seu único problema é escolher o CD para a trilha musical do fim do mundo. Ele acaba conhecendo Sandra (Sandra Oh) que tenta cruzar a caótica cidade com duas pistolas para realizar um pacto de suicídio com o seu marido. Patrick tem um amigo, Craig Zwiller (Callum Rennie), que busca a satisfação sexual a partir de uma lista de mulheres e modalidades de perversões. Tudo metodicamente elaborado. Enquanto isso o diretor David Cronemberg faz uma ponta como Duncan, um exemplar funcionário de uma companhia de gás que passa as últimas horas ligando para os clientes para informar que o fornecimento de gás será mantido até o fim. E sua colega de trabalho Lily revela sua sexualidade reprimida – confessa para Duncan que se masturbava toda manhã no escritório.

A contagem regressiva e a “fadiga cultural”


A narrativa de “Last Night” é dominada por uma onipresente contagem regressiva: os intertítulos contam as horas, os personagens checam constantemente os relógios e, nas ruas, uma enigmática maratonista atravessa várias cenas gritando quanto tempo ainda resta para o fim.

Talvez o filósofo francês Jean Baudrillard tenha sido aquele que mais aprofundou uma análise sobre o que representa a simbologia da contagem regressiva como o sintoma de uma espécie de “fadiga cultural” em que vivemos. Essa fadiga seria expressa pela reversão temporal da pós-modernidade: o tempo não é mais contado de um ponto de origem como uma sucessão de progressos. Ele agora é subtraído do fim, como a contagem regressiva de uma bomba com efeito retardado (veja BAUDRILLARD, Jean “In The Shadow of Millennium”, Ctheory. Net, 1998).

Isso talvez explique a recorrência desse tema do fim do mundo na produção cinematográfica: as contagens regressivas estão por todo lugar no cenário cultural – no campo da ecologia com a contagem regressiva dos recursos naturais e da camada de ozônio; com a epidemia da AIDS a contagem regressiva da morte; com as profecias maias a contagem regressiva do destino; no campo astronômico a contagem regressiva para um asteroide colidir na Terra ou o Sol se consumir numa explosão de supernova etc.

O filme “Last Night” mostra muito bem essa “fadiga cultural” com seus personagens frustrados nos planos sentimental, familiar, sexual e no trabalho. Tal como na obra de Eric Fischl citada acima, todos parecem assumir uma atitude de celebração hedonista diante da catástrofe astronômica que se aproxima. Patrick prefere ficar sozinho a ter que aguentar os jantar familiar; Sandra se desencontra com seu marido e tenta se apaixonar por Patrick para que ele participe do seu ritual de suicídio que acompanhará a contagem regressiva dos segundos finais; Craig melancolicamente segue o seu roteiro de sexo com uma fila de candidatas; e o burocrata Duncan é um reprimido pelos protocolos de atendimento ao consumidor da empresa de gás.

Enquanto os personagens mais velhos tentam resgatar o passado e a memória por meio de fotos da infância dos filhos e netos, os jovens se entregam a frenéticas buscas solitárias de prazer. Não há mais passado e nem futuro. Niilismo e hedonismo à beira do fim do mundo que é comemorado como mais um réveillon por uma multidão de jovens que dominam as ruas, enquanto os velhos ficam em casa tentando resgatar as memórias.

A obsessão nostálgica


Baudrillard aponta que a nostalgia é o reverso da medalha do espírito de uma contagem a partir do final, a obsessão pela retrospectiva como a curvatura no espaço histórico: se a História deixou de ser contada progressivamente para ser substituído por um tempo subtrativo, portanto o futuro se torna cinza e pessimista – segundo Baudrillard, pelo menos no ano 1.000 o medo era acompanhado pela esperança da chegada Reino de Deus.

A seta do tempo curva-se para o passado para criar a obsessão de revivê-lo por meio da “museuficação”, parques temáticos como Disneylândia, a ironia da moda vintage e a nostalgia por épocas que não foram vividas. O filme “Last Night” apresenta isso na medida em que a narrativa aproxima-se do momento fatal: enquanto os mais jovens tentam desesperadamente a satisfação final (o paroxismo do prazer de Craig – ter um orgasmo no momento em que o mundo acabará!), os pais e avós buscam nos sótãos brinquedos e objetos dos seus filhos e netos, para depois se postarem diante das TVs para assistirem a vídeos de festas de aniversários passados.

Olhando “Last Night” podemos perceber onde falha os filmes-catástrofes hollywoodianos: se esquecem do fator humano. Ao contrário, McKellar não oferece nenhuma jornada do herói ou a redenção humana à beira do armagedon. Para ele, é próximo do fim que revelamos quem realmente somos. No caso de “Last Night” é à beira de uma catástrofe de proporções inimagináveis que a sociedade expõem de forma visceral seus sintomas e contradições.

Ficha Técnica
  • Título: Last Night
  • Direção: Don McKellar
  • Roteiro: Don McKellar
  • Elenco: Don McKellar, Sandra Oh, Callum Kheite Rennie, David Cronemberg, Sarah Polley, Geneviève Bujold
  • Produção:  Rhombus Media, Téléfilm Canada
  • Distribuição: Lions Gate Films
  • Ano: 1998
  • País: Canadá

Postagens Relacionadas

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review