Desde cedo, nas redes sociais, William Bonner fez suspense: faria uma “revelação” na bancada do JN naquela noite. Até que o telejornal da Globo foi ao ar e a bombástica “revelação” nada mais era do que uma campanha para “humanizar” os jornalistas da Globo: nos intervalos, serão mostrados exemplos motivacionais da intimidade dos jornalistas e suas conversas fora do ar. Comprovar que apesar da “missão” os jornalistas são “humanos” também. Tudo pode parecer apenas uma canastríssima autopromoção, com direito a lágrimas e voz embargada de Renata Vasconcellos no final. Quando o jornalista vira o protagonista da informação é que a própria informação deixou de existir... virou autorreferência, metalinguagem, tautismo (autismo midiático + tautologia). Análogo ao processo catabólico de degradação onde o corpo começa a consumir seu próprio tecido muscular. Em crise financeira e vivendo do rentismo, a Globo tenta salvar a imagem do seu jornalismo no mercado de notícias, fazendo um controle de danos das suas intervenções políticas, para manter a sua marca valorizada à espera de um comprador.
O saudoso jornalista Paulo Henrique Amorim costumava dizer que a TV Globo morreria gorda.
Com isso queria dizer que a emissora tem uma estrutura gigantesca que já não é mais sustentável por um mercado publicitário pulverizado – o outrora confortável modelo de negócios em que detinha 80% do mercado publicitário na base do esquema de BV (bonificação por volume) que mantinha com agências de publicidade desapareceu.
A Globo perdeu um em cada três espectadores diante da concorrência, por exemplo, dos serviços de streaming como Netflix. Além dos celulares como novo meio hegemônico – se a TV chega a 97% dos lares, o celular alcança 94%: redes sociais como Youtube, Facebook e WhatsApp acabam ajudando a pulverizar a recepção das mídias.
Porém, a estrutura gigantesca da Globo foi construída num modelo ultrapassado de Studio System criado por Hollywood na sua fase áurea e abandonado pela Globalização - modelo de integração vertical e horizontal de gigantescos estúdios e cidades cenográficas que viram verdadeiras indústrias com atores, equipes técnicas e artísticas e produção como assalariados numa cadeia de valor desde o argumento até a exibição.
Para a Globo, hoje esse gigantesco ativo virou um passivo insustentável na atual mudança na estrutura de negócios. E complicando ainda mais com a retração econômica (cujo ponta pé inicial foi dado pela própria Globo com o bate bumbo da Operação Lava Jato que destruiu a cadeia produtiva nacional) e piorando ainda mais com a pandemia Covid-19.
Resultado: a família Marinho tornou-se uma rentista e a Globo está à venda, à espera de algum conglomerado internacional que compre o abacaxi – quem sabe, o bilionário mexicano Carlos Slim, empresário que no Brasil já controla a Claro, Net e a Embratel. Pelo menos o filho de Carlos Slim, Carlos Slim Domit, anunciou em reunião com Bolsonaro em 2019 que pretende investir R$ 30 bilhões no Brasil entre 2020 e 2022.
Não por menos, a Globo bancou o impeachment de 2016: primeiro, para adiar a entrada das gigantes tecnológicas Google e Facebook no Brasil; e segundo, para favorecer a banca financeira e o rentismo, do qual ainda sobrevive enquanto tenta se livrar do seu Studio System ultrapassado.
Controle de danos
O problema é manter a política de controle de danos à imagem da Globo, desde o golpe de 2016 – tentar limpar as mãos da lama psíquica da nação que teve que revolver trazendo para tona o “Brasil Profundo” para engrossar as massas de verde amarelo contra Dilma: pequenos escroques, acadêmicos e intelectuais obscuros, músicos que fizeram sucesso no passado e que foram esquecidos, ex-anônimos que confundiam militância profissional com fundamentalismo religioso e oportunistas, racistas, homofóbicos e saudosos do militarismo de toda sorte.
Depois, controle de danos: demitiu William Waack por racismo, promoveu jornalistas negros para o estrelato jornalístico da casa, inventou uma coisa chamada “afro-empreendedorismo” e turbinou pautas identitárias no telejornalismo.
Mas a sua atual estratégia de morde-assopra num jogo conjunto com a psyop da guerra híbrida militar que sustenta Bolsonaro (o atual presidente ainda é a única solução para implementar a agenda de reformas da Banca financeira) está cobrando um preço muito alto para o jornalismo da Globo – sobre isso clique aqui.
Ódio e polarização política voltam-se contra a emissora: de um lado, os bolsomínios e a hashtag“#GloboLixo”; e do outro, as históricas críticas do campo progressista contra as manipulações do jornalismo da emissora desde o golpe militar de 1964.
A sua reação é o tautismo (autismo midiático + tautologia), estratégia desesperada para as Organizações Globo criar um “fechamento operacional” que proteja o jornalismo da realidade ameaçadora e, ao mesmo tempo, transforme o jornalismo numa espécie de propaganda de si mesmo – esquema autopromocional para valorizar o jornalismo global no mercado de notícias. E manter a um Globo uma marca atraente para possíveis compradores.
A “revelação” de Bonner
Dessa maneira, a linguagem jornalística transforma-se radicalmente: vira auterreferencial, metalinguística, na qual o jornalista vira o protagonista da própria informação. E a função referencial da notícia se perde ao virar propaganda de si mesma.
Se não, como interpretar a “surpresa” prometida por William Bonner nas redes sociais sobre uma “revelação” que faria na bancada do Jornal Nacional na noite de 10 de junho? Bonner lançou uma campanha que “humaniza” os jornalistas da Globo: “nos intervalos da programação, a Globo vai dividir com vocês alguns momentos de intimidade de nós jornalistas. Você vai ouvir mensagens de áudio de celular que nós trocamos com parentes nossos, com nossas famílias”, narra Bonner com a fisionomia canastrona de sempre – repare, caro leitor, o jeito peculiar como sempre Bonner aperta os olhos quando trata de algum tema tido como “sério” ou “grave”.
Segundo ele, o motivo dessa campanha é desfazer uma imagem equivocada de que jornalistas que, mesmo durante a pandemia, não deixaram de trabalhar para “proteger as pessoas das fake news”. Mostrar que jornalistas “não são invencíveis” e mesmo com “medos, angústias e aflições” os jornalistas têm que “mergulhar fundo na notícia, investigar”.
O JN terminou com a companheira de bancada Renata Vasconcellos às lágrimas e voz embargada, falando da “missão” do jornalista...
Tudo muito canastríssimo, overacting (como de praxe na teledramaturgia da Globo) e, principalmente, tautista.
O conceito de tautismo
Para aqueles que não conhecem esse conceito do pesquisador francês Lucien Sfez o tautismo seria a característica do que ele chama de “comunicação confusional”, traço dominante contemporâneo onde o processo comunicacional teria se tornado um diálogo sem personagem. Só leva em conta a si mesmo, isto é, a comunicação como seu próprio objeto (veja SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2000).
Lucien Sfez |
Segundo Sfez, a “comunicação confusional” do tautismo confunde a representação com a expressão. Em outras palavras, a representação do fato ou da notícia se mistura com a própria forma com que a comunicação o expressa. Isso já era evidente com o fenômeno da proliferação de metalinguagens no discurso do telejornalismo da TV Globo: a emissora não se limita a transmitir o fato, ela quer mostrar a si mesma transmitindo – por exemplo, o caso do programa “Globo Esporte” onde o então apresentador Tiago Leifert transformou o “ônibus estúdio” de onde ancorava a transmissão em notícia mais importante do que a própria reportagem sobre a concentração da seleção brasileira de futebol – clique aqui.
No tautismo essa confusão torna-se ainda mais radical: a própria percepção do “real” é moldada pela linguagem da ficção. A diferença entre “fora” e o “dentro” do sistema deixa de fazer sentido.
Então temos o “fechamento operacional”: o sistema traduz o mundo exterior a partir da autodescrição que o sistema faz de si mesmo – jornalistas têm uma “missão”: apesar da sua “humanidade” precisam informar o espectador para protegê-los das “fake news”.
Tanta auto-indulgência e autorreferência transforma o própria jornalista em protagonista da informação: a atração não é mais a notícia, mas o jornalista apresentando a notícia – que acaba se tornando superficial e sensacionalista pelos critérios da canastrice do overacting de apresentadores e repórteres.
O reflexo disso são casos em que a própria notícia desaparece no excesso de autorreferências e tautologias: em paciente pesquisa realizada por esse humilde blogueiro, descobriu que em duas horas e meia do telejornal Bom Dia São Paulo rendem apenas 27 minutos de “notícias reais” – o restante é ocupado por metalinguagem, autorreferencialidade fática e “efeito Heisenberg” – clique aqui.
Na verdade, o tautismo resulta na notícia que faz propaganda de si mesma, através do protagonismo do jornalista e não do fato. É mais uma tática da Globo em manter a integridade da imagem do seu principal produto, ao lado das telenovelas. Principalmente nesse momento em que a política de “morde-assopra”, junto com a crise econômica, ameaça arrastar a imagem global no mercado de notícias para o ralo.
Em outras palavras, o tautismo assemelha-se com o caso de um indivíduo que, sob condições extremas de fome ou de alteração do metabolismo basal, o corpo começa a entrar em processo catabólico (processo de degradação onde o corpo começa a consumir seu próprio tecido muscular).
No tautismo poderíamos localizar um processo análogo: esse fechamento operacional leva o sistema a um processo autofágico, simultaneamente tautológico e autista.