Um filme cercado de lendas, algumas verdadeiras. John Lennon exigiu que
a Apple comprasse seus direitos para exibi-lo em Nova York. Em pouco tempo o
filme tornou-se um Cult nas sessões de meia-noite no circuito underground. “El
Topo” (aka “The Mole”, 1970), uma produção mexicana do diretor franco-chileno
Alejandro Jodorowsky narra em estilo “western spaghetti” de Sérgio Leone a
jornada espiritual de um pistoleiro em desoladas paisagens repletas de alusões
e alegorias a Jung, Freud, misticismo, esoterismo, filosofias e mitologias
bíblicas. Cada plano, cena ou detalhe é um desafio para o espectador tentar
resolver os enigmas que se acumulam em cada imagem baseada em fragmentos de textos antigos, fábulas e contos
zen. O diretor parece querer que tanto o protagonista quanto o espectador tenham o mesmo destino da toupeira: à procura do Sol ela cava até a superfície. Quando vê o Sol, ela fica cega.
Um homem trajando negro da
cabeça aos pés em pleno deserto incandescente cavalga um cavalo negro
carregando um guarda-chuva sobre sua cabeça e trazendo atrás na sela um menino
nu, exceto por um chapéu de cowboy. O homem para, amarra o cavalo em um poste solitário
na areia e vemos nas mãos do menino um urso de pelúcia e uma fotografia em um
porta-retrato. O homem diz: “hoje você faz sete anos. Você agora é um homem.
Enterre seu primeiro brinquedo e o retrato da sua mãe”. Ele pega uma flauta e
toca enquanto o menino segue suas instruções. Para o espectador, essa cena de abertura será a
mais normal e compreensível de todo o filme.
“El Topo” do franco-chileno
diretor Alejandro Jodorowsky é cercado de histórias e lendas: suas técnicas de
filmagem não eram o que poderia se dizer ortodoxas - normalmente utilizava
nativos da região da filmagem como atores e obrigava-os a se submeter a
experiências de esgotamento físico diante das câmeras. Rumores dizem que fazia
os atores experimentarem o sangue um do outro e de expô-los a violência real.
Segundo consta, o próprio Jodorowsky matou os 300 coelhos com as próprias mãos para
uma cena do filme.
John Lennon viu o filme e
aconselhou o gerente Allen Klein da gravadora Apple a comprar os direitos e
exibiu “El Topo” em Nova York. O filme tornou-se elemento permanente da cena
hippie nas sessões de meia-noite por toda a década dos anos 1970 naquela
cidade, tornando-se um dos favoritos da geração emergente de atores como Dennis
Hooper e Jack Nicholson. Tanto que Dennis Hooper dirigiu o filme “The Last
Movie” (1971) no Peru inspirado nos temas místicos e antropológicos de
Jodorowsky.
O Filme
O filme é sobre El Topo
(Alejandro Jodorowsky), uma figura inteiramente vestida de preto carregando seu
filho nu no cavalo e que usa sua sobrenatural habilidade com o revólver para
libertar um local sob o domínio de um coronel sádico. Após a vitória, deixa seu
filho para ser cuidado por monges em uma missão católica e parte com uma
mulher. Ela o convence a se enveredar no deserto em busca de quatro grandes
mestres para derrotá-los em duelos. Cada um deles representa uma religião
particular ou filosofia. Através das suas habilidades, trapaças ou pura sorte,
El Topo consegue derrotá-los para depois ser traído por essa mulher que o
atinge com diversos tiros.
Quase morto, El Topo é carregado
por um grupo de pessoas aleijadas e deformadas que o leva a uma caverna onde
habitam em uma estranha sociedade de mutantes. Lá, El Topo torna-se um
pacificista e pedem a ele que os ajude a construir um túnel para que os leve de
volta a uma cidade que agora é dominada por uma elite de fascistas e religiosos
degenerados.
Essa alucinada narrativa é
filmada em um estilo do chamado western
spaghetti de Sérgio Leone. Tanto o western clássico como o italiano já
exploravam personagens míticos como pistoleiros sobrenaturalmente precisos,
paisagens desérticas e oniricamente desoladas, locais onde os espectadores
poderiam esperar confrontos entre semideuses e mitos. Jodorowsky se apropria
dessa mitologia para explodi-la em milhares de pedaços transformando o “velho
oeste” em uma terra atemporal repleta de experiências místicas e psicodélicas.
A armadilha de Jodorowsky
Nesse quebra-cabeça místico,
simbólico e religioso estão dispersos diversos elementos cristãos, budistas,
zen, magia negra, paganismo etc. Tudo no meio de diversas sequências sangrentas
de assassinatos, torturas, trapaças, genocídios, enforcamentos e perversões
sexuais. Mas apesar disso, o espectador não tem a impressão de estar diante de
um filme que explora gratuitamente a violência. Jodorowsky consegue manter a
violência distanciada e aceita, assim como os massacres que formam os cenários
dos contos bíblicos do Velho Testamento.
“El Topo” é uma sucessão de
personagens, alegorias, metáforas onde o espectador avidamente tenta encontrar
um significado: um homem sem braços carregando outro homem sem pernas, um
mestre guerreiro que luta com uma rede de caçar borboletas, uma igreja onde o
ritual consiste em um jogo de roleta-russa com os fiéis, uma estranha mulher
que surge do nada na primeira metade do filme como a “anima” junguiana de El
Topo etc.
Essa é a armadilha que
Jodorowsky arma para aquele espectador que procura significados no labirinto de
simbolismos do filme: o diretor parece não querer ensinar lições filosóficas,
mas em construir efeitos misteriosos no espectador com essa sucessão de
estranhas imagens. “El Topo” é uma narrativa fílmica sem dogma, baseada em
fragmentos de textos antigos, fábulas e contos zen. Jodorowsky parece mais
interessado em criar uma linguagem onírica, sem significados, apenas fazer um
jogo de metáforas e metonímias (na linguagem freudiana dos sonhos, condensações
e deslocamentos) onde o gozo estético se confunde com a experiência mística e
lisérgica.
Um acerto de contas com o Ocidente - Spoilers à frente
A utilização frenética de
alegorias e simbolismos em cada plano ou detalhe das sequências (nas ações,
objetos, personagens, situações, etc.) de “El Topo” parecem expressar a
ansiedade e urgência de Jodorowsky em fazer uma espécie de acerto de contas com
repertório dos temas e mitos Ocidentais. Esse parece ser o único significado do
filme: o fato dele não ter significado, de ser um grande pastiche. Jodorowsky parece
sinalizar esse propósito com a metáfora de “El Topo” (A Toupeira) explicada
logo no início do filme: “A toupeira é um animal que cava túneis no subsolo. À
procura de sol ela às vezes sobe à superfície. Quando vê o Sol ela fica cega”.
Parece que em todo filme,
Jodorowsky pretende cavar esse túnel em meio a uma massa de signos míticos,
esotéricos, religiosos. Assim como a sociedade de seres mutantes pedem ajuda a
El Topo para cavar um túnel para fugir da caverna e, na superfície, encontrar a
morte, de forma parecida Jodorowsky tenta cavar e encontrar para além das
toneladas de símbolos e alegorias: encontrar a Verdade, a Iluminação, aquilo
que realmente é e não o apenas representado pelos mitos, filosofias e
religiões. A auto-imolação final do protagonista parece ser o mesmo destino da
cegueira encontrado pela toupeira: a perplexidade por encontrar o vazio, o
deserto e a violência.
Uma lógica dedutiva
Talvez um dos erros em tentar
entender “El Topo” seja empreender uma análise indutiva da narrativa, quer
dizer, tentar decodificar cada detalhe para chegar a uma compreensão geral da
mensagem. Jodorowsky parece fazer o contrário, uma dedução: a partir de
conceitos mais gerais ele estrutura toda a série interminável de símbolos,
analogias e metáforas. Dois conceitos são recorrentes e gerais no filme: o deserto e
abelhas/mel.
O deserto é onipresente, uma
ideia seminal no gênero western como o nowhere, o mito da fronteira, de uma
terra de ninguém sem leis onde vale apenas o poder dos mais fortes. Lindas
imagens de desolação que fazem lembrar a frase de Morpheus no filme “Matrix”:
“bem vindo ao deserto do real”. El Topo tenta como uma toupeira cavar uma saída
dessa desolação, primeiro matando os mestres que representam filosofias e
religiões. Depois, através do pacifismo e mendicância na segunda parte do filme.
El Topo sente a necessidade
gnóstica de transcendência, de ir além do signo, da linguagem e dos símbolos
que apenas iludem ou servem de instrumento para a injustiça e a dominação, como
é ilustrado pela igreja deteriorada cujo auge do ritual da missa é um jogo de
roleta-russa com bala de festim.
Em “El
Topo” duas vezes encontramos abelhas que constroem colmeias em cadáveres. Em
ambos os momentos a imagem aparece em pontos cruciais da narrativa: depois que
El Topo matou os grandes mestres do deserto, ele sente-se vazio e sem alma. Vê
o corpo do primeiro em uma cova rasa coberto por uma colmeia. Em desespero pega
um pedaço dos favos e passa o mel em sua barba negra. E na auto-imolação final,
suas cinzas são cobertas por um enxame de abelhas.
Essa
recorrência é uma alusão ao enigma profético de Sansão no livro bíblico de “Juízes”
do Velho Testamento: um leão morto que ao invés de putrefar, misteriosamente
transforma-se em um enxame de abelhas com mel. Esse é o enigma dos enigmas
bíblicos, que muitos teólogos interpretam como uma profecia sobre a vinda de
Jesus – o “mel da salvação” que seria o simbolismo da vinda do Messias.
Além do
diretor explorar uma imagem cinematicamente forte (cadáver, abelhas e a doçura
e sensualidade do mel que provocam impressões conflitantes com o fedor da carne
em decomposição), que, afinal, é o principal objetivo dele em todo o filme, há também
uma charada irônica de Jodorowsky: o mestre morto e , no final, o próprio
protagonista destruídos por um enigma bíblico.
Assim como o espectador é soterrado por uma avalancha de signos,
símbolos e alegorias (que, no final, representa a própria cacofonia de
religiões e filosofias de toda a História que tentam dar conta do fenômeno do
Sagrado e do Divino), da mesma forma o protagonista é convertido, ele próprio,
em outro enigma.
El Topo
encontra o próprio destino final da toupeira: a cegueira diante da luz. Não a
Luz da epifania ou da Iluminação, mas do excesso dos signos e enigmas que o
homem criou e da qual não consegue mais escapar.
Ficha Técnica
- Título: “El Topo” aka “The Mole”
- Diretor: Alejandro Jodorowsky
- Roteiro: Alejandro Jodorowsky
- Elenco: Alejandro Jodorowsky, Brontis Jodorowsky, José Legarreta, Robert John, Mara Lorenzio
- Produção: Producciones Panica
- Distribuição: Achor Bay Entertainment (DVD)
- Ano: 1970
- País: México