sexta-feira, outubro 04, 2013

A luz que nos cega no filme "El Topo" de Jodorowsky


Um filme cercado de lendas, algumas verdadeiras. John Lennon exigiu que a Apple comprasse seus direitos para exibi-lo em Nova York. Em pouco tempo o filme tornou-se um Cult nas sessões de meia-noite no circuito underground. “El Topo” (aka “The Mole”, 1970), uma produção mexicana do diretor franco-chileno Alejandro Jodorowsky narra em estilo “western spaghetti” de Sérgio Leone a jornada espiritual de um pistoleiro em desoladas paisagens repletas de alusões e alegorias a Jung, Freud, misticismo, esoterismo, filosofias e mitologias bíblicas. Cada plano, cena ou detalhe é um desafio para o espectador tentar resolver os enigmas que se acumulam em cada imagem baseada em fragmentos de textos antigos, fábulas e contos zen. O diretor parece querer que tanto o protagonista quanto o espectador tenham o mesmo destino da toupeira: à procura do Sol ela cava até a superfície. Quando vê o Sol, ela fica cega.

Um homem trajando negro da cabeça aos pés em pleno deserto incandescente cavalga um cavalo negro carregando um guarda-chuva sobre sua cabeça e trazendo atrás na sela um menino nu, exceto por um chapéu de cowboy. O homem para, amarra o cavalo em um poste solitário na areia e vemos nas mãos do menino um urso de pelúcia e uma fotografia em um porta-retrato. O homem diz: “hoje você faz sete anos. Você agora é um homem. Enterre seu primeiro brinquedo e o retrato da sua mãe”. Ele pega uma flauta e toca enquanto o menino segue suas instruções.  Para o espectador, essa cena de abertura será a mais normal e compreensível de todo o filme.

“El Topo” do franco-chileno diretor Alejandro Jodorowsky é cercado de histórias e lendas: suas técnicas de filmagem não eram o que poderia se dizer ortodoxas - normalmente utilizava nativos da região da filmagem como atores e obrigava-os a se submeter a experiências de esgotamento físico diante das câmeras. Rumores dizem que fazia os atores experimentarem o sangue um do outro e de expô-los a violência real. Segundo consta, o próprio Jodorowsky matou os 300 coelhos com as próprias mãos para uma cena do filme.


John Lennon viu o filme e aconselhou o gerente Allen Klein da gravadora Apple a comprar os direitos e exibiu “El Topo” em Nova York. O filme tornou-se elemento permanente da cena hippie nas sessões de meia-noite por toda a década dos anos 1970 naquela cidade, tornando-se um dos favoritos da geração emergente de atores como Dennis Hooper e Jack Nicholson. Tanto que Dennis Hooper dirigiu o filme “The Last Movie” (1971) no Peru inspirado nos temas místicos e antropológicos de Jodorowsky.

O Filme


O filme é sobre El Topo (Alejandro Jodorowsky), uma figura inteiramente vestida de preto carregando seu filho nu no cavalo e que usa sua sobrenatural habilidade com o revólver para libertar um local sob o domínio de um coronel sádico. Após a vitória, deixa seu filho para ser cuidado por monges em uma missão católica e parte com uma mulher. Ela o convence a se enveredar no deserto em busca de quatro grandes mestres para derrotá-los em duelos. Cada um deles representa uma religião particular ou filosofia. Através das suas habilidades, trapaças ou pura sorte, El Topo consegue derrotá-los para depois ser traído por essa mulher que o atinge com diversos tiros.

Quase morto, El Topo é carregado por um grupo de pessoas aleijadas e deformadas que o leva a uma caverna onde habitam em uma estranha sociedade de mutantes. Lá, El Topo torna-se um pacificista e pedem a ele que os ajude a construir um túnel para que os leve de volta a uma cidade que agora é dominada por uma elite de fascistas e religiosos degenerados.

Essa alucinada narrativa é filmada em um estilo do chamado western spaghetti de Sérgio Leone. Tanto o western clássico como o italiano já exploravam personagens míticos como pistoleiros sobrenaturalmente precisos, paisagens desérticas e oniricamente desoladas, locais onde os espectadores poderiam esperar confrontos entre semideuses e mitos. Jodorowsky se apropria dessa mitologia para explodi-la em milhares de pedaços transformando o “velho oeste” em uma terra atemporal repleta de experiências místicas e psicodélicas.

A armadilha de Jodorowsky


Nesse quebra-cabeça místico, simbólico e religioso estão dispersos diversos elementos cristãos, budistas, zen, magia negra, paganismo etc. Tudo no meio de diversas sequências sangrentas de assassinatos, torturas, trapaças, genocídios, enforcamentos e perversões sexuais. Mas apesar disso, o espectador não tem a impressão de estar diante de um filme que explora gratuitamente a violência. Jodorowsky consegue manter a violência distanciada e aceita, assim como os massacres que formam os cenários dos contos bíblicos do Velho Testamento.

“El Topo” é uma sucessão de personagens, alegorias, metáforas onde o espectador avidamente tenta encontrar um significado: um homem sem braços carregando outro homem sem pernas, um mestre guerreiro que luta com uma rede de caçar borboletas, uma igreja onde o ritual consiste em um jogo de roleta-russa com os fiéis, uma estranha mulher que surge do nada na primeira metade do filme como a “anima” junguiana de El Topo etc.

Essa é a armadilha que Jodorowsky arma para aquele espectador que procura significados no labirinto de simbolismos do filme: o diretor parece não querer ensinar lições filosóficas, mas em construir efeitos misteriosos no espectador com essa sucessão de estranhas imagens. “El Topo” é uma narrativa fílmica sem dogma, baseada em fragmentos de textos antigos, fábulas e contos zen. Jodorowsky parece mais interessado em criar uma linguagem onírica, sem significados, apenas fazer um jogo de metáforas e metonímias (na linguagem freudiana dos sonhos, condensações e deslocamentos) onde o gozo estético se confunde com a experiência mística e lisérgica.

Um acerto de contas com o Ocidente - Spoilers à frente


A utilização frenética de alegorias e simbolismos em cada plano ou detalhe das sequências (nas ações, objetos, personagens, situações, etc.) de “El Topo” parecem expressar a ansiedade e urgência de Jodorowsky em fazer uma espécie de acerto de contas com repertório dos temas e mitos Ocidentais. Esse parece ser o único significado do filme: o fato dele não ter significado, de ser um grande pastiche. Jodorowsky parece sinalizar esse propósito com a metáfora de “El Topo” (A Toupeira) explicada logo no início do filme: “A toupeira é um animal que cava túneis no subsolo. À procura de sol ela às vezes sobe à superfície. Quando vê o Sol ela fica cega”.

Parece que em todo filme, Jodorowsky pretende cavar esse túnel em meio a uma massa de signos míticos, esotéricos, religiosos. Assim como a sociedade de seres mutantes pedem ajuda a El Topo para cavar um túnel para fugir da caverna e, na superfície, encontrar a morte, de forma parecida Jodorowsky tenta cavar e encontrar para além das toneladas de símbolos e alegorias: encontrar a Verdade, a Iluminação, aquilo que realmente é e não o apenas representado pelos mitos, filosofias e religiões. A auto-imolação final do protagonista parece ser o mesmo destino da cegueira encontrado pela toupeira: a perplexidade por encontrar o vazio, o deserto e a violência.

Uma lógica dedutiva


Talvez um dos erros em tentar entender “El Topo” seja empreender uma análise indutiva da narrativa, quer dizer, tentar decodificar cada detalhe para chegar a uma compreensão geral da mensagem. Jodorowsky parece fazer o contrário, uma dedução: a partir de conceitos mais gerais ele estrutura toda a série interminável de símbolos, analogias e metáforas. Dois conceitos são recorrentes e gerais no filme: o deserto e abelhas/mel.

O deserto é onipresente, uma ideia seminal no gênero western como o nowhere, o mito da fronteira, de uma terra de ninguém sem leis onde vale apenas o poder dos mais fortes. Lindas imagens de desolação que fazem lembrar a frase de Morpheus no filme “Matrix”: “bem vindo ao deserto do real”. El Topo tenta como uma toupeira cavar uma saída dessa desolação, primeiro matando os mestres que representam filosofias e religiões. Depois, através do pacifismo e mendicância na segunda parte do filme.

El Topo sente a necessidade gnóstica de transcendência, de ir além do signo, da linguagem e dos símbolos que apenas iludem ou servem de instrumento para a injustiça e a dominação, como é ilustrado pela igreja deteriorada cujo auge do ritual da missa é um jogo de roleta-russa com bala de festim.

        Em “El Topo” duas vezes encontramos abelhas que constroem colmeias em cadáveres. Em ambos os momentos a imagem aparece em pontos cruciais da narrativa: depois que El Topo matou os grandes mestres do deserto, ele sente-se vazio e sem alma. Vê o corpo do primeiro em uma cova rasa coberto por uma colmeia. Em desespero pega um pedaço dos favos e passa o mel em sua barba negra. E na auto-imolação final, suas cinzas são cobertas por um enxame de abelhas.

       Essa recorrência é uma alusão ao enigma profético de Sansão no livro bíblico de “Juízes” do Velho Testamento: um leão morto que ao invés de putrefar, misteriosamente transforma-se em um enxame de abelhas com mel. Esse é o enigma dos enigmas bíblicos, que muitos teólogos interpretam como uma profecia sobre a vinda de Jesus – o “mel da salvação” que seria o simbolismo da vinda do Messias.

       Além do diretor explorar uma imagem cinematicamente forte (cadáver, abelhas e a doçura e sensualidade do mel que provocam impressões conflitantes com o fedor da carne em decomposição), que, afinal, é o principal objetivo dele em todo o filme, há também uma charada irônica de Jodorowsky: o mestre morto e , no final, o próprio protagonista destruídos por um enigma bíblico.  Assim como o espectador é soterrado por uma avalancha de signos, símbolos e alegorias (que, no final, representa a própria cacofonia de religiões e filosofias de toda a História que tentam dar conta do fenômeno do Sagrado e do Divino), da mesma forma o protagonista é convertido, ele próprio, em outro enigma.

       El Topo encontra o próprio destino final da toupeira: a cegueira diante da luz. Não a Luz da epifania ou da Iluminação, mas do excesso dos signos e enigmas que o homem criou e da qual não consegue mais escapar.

Ficha Técnica

  • Título: “El Topo” aka “The Mole”
  • Diretor: Alejandro Jodorowsky
  • Roteiro: Alejandro Jodorowsky
  • Elenco: Alejandro Jodorowsky, Brontis Jodorowsky, José Legarreta, Robert John, Mara Lorenzio
  • Produção: Producciones Panica
  • Distribuição: Achor Bay Entertainment (DVD)
  • Ano: 1970
  • País: México

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