O Iluminismo e o racionalismo no século XVIII foram as bases da Modernidade, superando a tradição e o pensamento religioso. A “Ilustração” e “Luzes” foram expressões de escritores, filósofos e cientistas que revelavam a fé no progresso, liberdade e tolerância para a civilização.
Mas, paralelo a esse otimismo, viviam no underground da Modernidade pensadores e escritores que não compartilhavam desse otimismo, como Marquês de Sade, Masoch ou filósofos “contratualistas” como Locke ou Hobbes. Para eles, o ser humano necessita de uma força maior e imparcial que possa garantir seus direitos naturais. Por si mesmo, o ser humano é egoísta tendendo à guerra. A única forma da espécie humana prosperar é submetendo-se a um Estado forte, a um “Leviatã”, como designava Hobbes. A única maneira de conter a natureza perversa humana. Paradoxalmente a liberdade e a propriedade privada só podem ser garantidas pela limitação da liberdade através de um Estado que concentrasse o poder das armas.
Os teóricos pós-modernos falavam que a bomba atômica de Hiroshima foi o ponto de inflexão da Modernidade: a Razão sendo aplicada não para o progresso, mas para a guerra. Mas é verdadeiramente o século XXI que parece estar colocando em xeque toda a fé da Modernidade nas luzes do conhecimento e da racionalidade.
Quando acompanhamos as cenas iniciais do primeiro episódio da minissérie francesa L’Effondrement (2019), “The Collapse”, em inglês, não há como pensar nesses pensadores sombrios do underground do Iluminismo. Acompanhamos em um supermercado em algum lugar de Paris, multidões desesperadas por itens essenciais, produtos básicos estão desaparecendo das prateleiras. Caixas param de aceitar cartões de crédito e exigem dinheiro adiantado. O caos evoluindo a cada minuto, é uma questão de tempo para que toda a situação saia do controle.
A série foi produzida em 2019 e estreou na TV francesa em novembro daquele ano - algumas semanas antes da pandemia se espalhar pelo mundo e cidades como Paris entrar em bloqueio com gente correndo para supermercados, produtos desaparecendo das prateleiras e medo e paranoia levando pessoas a atitudes extremas.
Até aqui na pandemia COVID-19 já vimos cenas de corridas a supermercados, pessoas tentando lucrar com a crise (alguém lembra o que aconteceu com o papel higiênico e álcool em gel), pessoas brigando e matando por motivos banais, milionários se julgando acima dos demais, idosos abandonados à própria sorte, pessoas correndo para o campo etc. Essas são amostras do “demasiado humano”, ignorado pelo Iluminismo, que a série aborda de forma crua e direta.
Através dos seus oito episódios, com pouca ou nenhuma relação entre si, as histórias de L’Effondrement se desenrolam alguns dias após uma misteriosa crise que fez com que a França (e provavelmente o mundo todo) desabasse, mostrando a escalada de horror que engolfa a sociedade e destrói as noções de civilização, substituindo-as primeiro pelo “salve-se quem puder” e, finalmente, pela barbárie.
Todos os episódios duram entre 15 e 20 minutos, com poucos personagens e histórias narradas em um único plano-sequência (embora possa haver cortes disfarçados aqui e ali), reforçando a ideia de urgência e realismo. Isso é exatamente o que torna L’Effondrement uma série tão urgente para o momento atual.
Quando comida, água, eletricidade e remédios começam a escassear, os protagonistas são forçados a fazer escolhas dramáticas envolvendo vida ou morte. No geral, a série mostra a pior face de nós mesmos.
A Série
Os oito pequenos segmentos foram escritos e produzidos pelo “Collective Parasites”, formado por Jérémy Bernard, Guillaume Desjardins e Bastien Ughetto. A princípio, o coletivo queria colocar os episódios apenas no canal do Youtube, como uma web série. Foi filmado o episódio do posto de gasolina (que na TV é o segundo episódio) em um único plano sequência, com uma equipe de voluntários.
Porém, o Canal + (canal de TV francês) gostou do piloto, principalmente pela narrativa ágil em plano sequência, e decidiu produzir os episódios. O Coletivo acabou reescrevendo todos os outros episódios para serem rodados em um único take.
O primeiro segmento trata do dilema do jovem caixa de supermercado chamado Omar (Bellamine Abdelmalek) em meio à crise: será melhor continuar trabalhando, manter o emprego quando tudo acabar, ou ajudar amigos roubar itens essenciais para poderem juntos escapar da cidade?
Na segunda história, em um posto de gasolina à beira de uma estrada, a situação já parece muito pior: os poucos litros restantes de combustível valem ouro e são trocados por mercadorias e alimentos. Uma multidão desesperada de motoristas em fuga impacientes cerca o lugar ... Mas como dizer a eles que resta muito pouco antes que a gasolina acabe para sempre?
A partir do terceiro episódio, L'Effondrement adota um clima pessimista e deprimente que definitivamente não é para todos os públicos. Um milionário (Thibault de Montalembert) descobre que sua mansão e sua fortuna perderam completamente o valor. Ele precisa chegar ao aeroporto em 15 minutos em um plano de fuga exclusivo para milionários, para poder escapar do continente com segurança.
Três dúzias de fugitivos da cidade chegam a uma fazenda, mas os proprietários precisam discutir se os aceitam ou não, caso contrário, podem ficar sem os recursos existentes (e escassos). Quando os recém-chegados são questionados sobre como podem contribuir, apenas dois em cada trinta sabem fazer trabalho manual e têm alguma utilidade em um novo mundo pós-colapso.
Um grupo de funcionários de uma usina nuclear tenta febrilmente resfriar, com baldes de água carregados à mão, o reator prestes a explodir. Eles poderiam deixar isso de lado e correr para salvar suas vidas, mas tentam salvar as pessoas que vivem nas redondezas, em um raio de dezenas de quilômetros.
O único funcionário remanescente de uma casa de repouso lotada de idosos (interpretado por um dos diretores, Bastien Ughetto) faz o possível para administrar o lugar sozinho, e sem contar aos pobres internos o que está acontecendo no mundo exterior.
Em um barco, uma única mulher (Lubna Azabal) tenta chegar à ilha reservada aos milionários que, na esperança do pior, investiram parte de suas fortunas em um porto seguro. Mas uma surpresa aguarda no meio do caminho.
E finalmente, o oitavo episódio flashback sobre o que ocorre cinco dias antes do colapso e dos acontecimentos dos episódios anteriores. Um grupo de ativistas ambientais invade uma estação de TV durante o discurso de um ministro para alertar sobre o colapso inevitável. Seus argumentos são ridicularizados e o final nos leva à pergunta inevitável: eles realmente previram o colapso ou foi justamente seu dramático aviso que enlouqueceu as pessoas e criou a própria crise?
Colapsologia
O argumento da série inspira-se em uma nova área de estudo transdisciplinar que ganha cada vez mais adeptos na França: a Colapsologia. A ideia começou a se popularizar em 2015 com o lançamento do livro “Comment tout peut s’effondrer” (“Como tudo pode desmoronar”), do engenheiro agrônomo Pablo Servigne e do pesquisador Raphaël Stevens. Na obra, que virou um best-seller na França, eles definem um novo objeto de pesquisa: o colapso do mundo, abordando desde aspectos ecológicos até geopolíticos.
Na Colapsologia está previsto o fim da civilização como a conhecemos, após a conjunção de várias crises causadas pela humanidade, que vão desde a ambiental e energética até a política e econômica. Algumas dessas crises que estamos experimentando em nossas carnes e outras vemos quando elas estão chegando.
Os estudos dessa área se inspiram nas teorias sobre a extinção das sociedades vikings e maias – como a exploração excessiva dos recursos naturais contribuíram com o fim desses povos.
Porém, o Coletivo Parasites politiza os argumentos da Colapsologia: nem o início da catástrofe e nem o seu colapso final deixarão de ter as marcas indeléveis da reprodução da desigualdade e luta de classes. As crises, sejam elas ambientes, econômicas e políticas, surgem a partir da violenta concentração de riquezas - que conduzem a crashs financeiros, desemprego, exclusão social etc.
E, como nos mostram os episódios de L'Effondrement, mesmo as consequências do colapso final serão distribuídas de forma desigual na sociedade: a elite criará ilhas, bunkers ou planos de fuga e isolamento para proteger os seus. Para reconstruir não só a sociedade, mas a antiga ordem de desigualdade com aqueles que conseguiram sobreviver sem qualquer garantia de proteção.
Porém o irônico em tudo isso é a Colapsologia ter se tornado tão popular na França, berço dos pensadores do Iluminismo – ao invés das luzes do conhecimento e da Razão terem trazido o progresso, realizou o seu inverso ao chegar em uma espécie de vanish point: a a racionalidade técnica levou à degradação original da humanidade pela produção de uma quantidade exorbitante de riqueza e violenta concentração material e de poder.
E como L'Effondrement mostra com virtuosismo técnico, essa sociedade desigual acaba extraindo o pior de todos nós.
Ficha Técnica |
Título: L’Effondrement |
Diretor: Jérémy Bernard, Guillaume Desjardins, Bastien Ughetto |
Roteiro: Jérémy Bernard, Guillaume Desjardins, Bastien Ughetto |
Elenco: Lubna Azabal, Thibault de Montalembert, Bellamine Abdelmalek |
Produção: Et Bim |
Distribuição: Canal + |
Ano: 2019 |
País: França |