“Tudo que era sólido se desmancha no ar”, dizia Karl Marx sobre o poder
do Capitalismo revolucionar incessantemente seu modo de produção. “Fome de
Poder” (The Founder, 2016) descreve como um vendedor ambulante de mixer para milk
shakes chamado Ray Kroc encontrou no gênio dos irmãos McDonald muito mais do
que uma revolucionária linha de montagem de hambúrgueres. Viu nos arcos de uma
loja dos irmãos algo além de um mero detalhe arquitetônico: vislumbrou a
máquina semiótica de produção de marcas e símbolos como uma nova força
produtiva do Capitalismo que não oferece mais produtos tangíveis. Consome-se
uma fé, uma ideia ao invés de um hambúrguer que se desmanchou no ar – pouco
importam as suspeitas sobre a procedência das batatinhas fritas ou da carne do
Big Mac. Ray Kroc fez o mundo consumir muito menos um sanduíche do que a marca
e um sistema de conveniência.
Certa
vez o cineasta François Truffaut falou sobre os problemas dos filmes de guerra:
“é difícil fazer um filme verdadeiramente anti-guerra porque a guerra é
inerentemente cinematográfica. E quando você quer mostrá-la, os espectadores
são arrastados para dentro da ação de qualquer maneira”.
Podemos
encontrar essa mesma ambivalência nos filmes do subgênero “drama de negócios”
como Wall Street (1987), O Lobo de Wall Street (2013) ou O Primeiro Milhão (Boiler Room, 2000): seus protagonistas são certamente pessoas das
quais você se desviaria se estivesse numa sala com elas, porém no cinema é mais
divertido se identificar com esses canalhas do que com as pessoas vítimas das
suas ações.
No
filme Fome de Poder (The Founder, 2016) somos hipnotizados
pelo personagem Ray Kroc interpretado por Michael Keaton – um cara que
certamente faria parte da Câmara do Comércio do vilão Gordon Gekko de Wall
Street.
Keaton
faz uma inspirada interpretação do “Cidadão Kane” dos hambúrgueres, um homem
que construiu uma empresa (a rede MacDonald’s) explorando a confiança e o
otimismo dos criadores do próprio negócio: Richard e Maurice “Mac” McDonald - nas mãos de Kroc viram seu negócio se transformar
em uma franquia com um simples aperto de mão, em um contrato que jamais foi
cumprido. E roubando dos irmãos os royalties futuros do império.
A
ambiguidade de Fome de Poder está
exatamente nisso: de um lado acompanhamos o caminho dos irmãos McDonald para a
ruína quando tomam a decisão de deixar para Kroc a expansão do negócio para
outros estados. E como foram enganados. E do outro, o personagem Ray Kroc como
a própria personificação dos valores positivos empresariais norte-americanos e
do próprio capitalismo.
Então,
Kroc se torna um evangelista, um apóstolo do otimismo empreendedor com linhas
de diálogo repletas de frases inspiradoras que decorou de livros de auto-ajuda.
Criador de uma nova igreja da América: capaz de alimentar tanto os corpos quanto
os espíritos. Líder de uma seita que parece trazer tantos benefícios para a
sociedade, que esquecemos das vítimas.
O crime por trás da fortuna
Fome
de Poder pode tanto lembrar a velha frase de Honore De Balzac (“Atrás de toda
grande fortuna há um crime”) como também ser exibido em alguma convenção de
franqueados da rede McDonald’s.
Mas
também Fome de Poder é um documento
do espírito do seu tempo. Uma representação audiovisual da famosa frase do “Manifesto
Comunista” de Karl Marx e F. Engels: “tudo o que era sólido se desmancha no ar”,
sobre a capacidade do Capitalismo revolucionar incessantemente os instrumentos
de produção – como é capaz de rasgar todo o véu de sentimentalismo que envolvia
as relações de família para reduzi-las a relações monetárias.
Como
Ray Kroc foi um visionário de um novo meio de produção que faria o Capitalismo
mais uma vez se revolucionar – o poder da marca e dos signos como uma nova
força produtiva. A tal ponto em que a mercadoria alcança o paroxismo do próprio
fetichismo, previsto por Marx em "O Capital": não consumimos mais hambúrgueres,
mas uma ideia, signos, imagens ou a própria conveniência de ter um produto que
fica pronto em minutos.
O Filme
O Kroc
de Keaton é um vendedor que está sempre na estrada, de cidade em cidade,
oferecendo mixers de milk shake para os serviços lentos e erráticos de drive-ins. Enquanto sua esposa entediada Ethel (Laura Dern) fica em casa. Kroc tenta
memorizar frases de auto-ajuda, enquanto as portas batem na sua cara.
Mas
quando chega na Califórnia, tudo muda. Lá conhece uma dupla de irmãos
brilhantes e inspirados, Dick (Nick Offerman) e Mac MacDonald (John Carroll
Lynch): eles criaram um sistema de fast-food extremamente eficiente – não há
mais pratos, talheres e esperas tediosas. Um sistema taylorista de linha de
produção, não mais para fazer carros, mas agora hambúrgueres, na qual as
pessoas esperam em poucos minutos o pedido chegar em verdadeiros terminais de
comida. E comem o produto na própria embalagem.
Ray
Kroc vê o negócio da sua vida: ele passou anos tentando criar demanda para o
seu negócio. E acaba encontrando um negócio que não precisa mais criar demanda
– os irmão já têm mais do que eles podem lidar.
Através
dos irmãos McDonald, Kroc ouve a história da criação do sistema, numa sequência
que mistura imagens documentais com reconstituições de época. Eletrificado pelo
gênio criativo da dupla, Kroc insiste na necessidade da criação de uma operação
de franquia para todo a nação.
Assustados,
os irmãos têm medo de perder controle da qualidade artesanal dos ingredientes
dos hambúrgueres. Principalmente quando ouvem de Kroc ideias de implementar
milk shake em pó e itens congelados.
Sozinho
no quarto de um hotel, Kroc ouve um disco de vinil motivacional que entoa
palavras de Calvin Coolidge: “nada no mundo pode tomar o lugar da persistência.
Não basta só talento. Não há nada mais comum do que homens com talento malsucedidos”.
Pois os irmãos McDonald tiveram talento.
Agora, precisam da persistência de Ray Kroc.
A metafísica do McDonald’s
Mas a
persistência de Kroc se transforma em outra coisa, cuja inocência de Mac e Dick
(eles ainda estavam no velho capitalismo concorrencial, centrado na
materialidade do produto, no valor de uso) não os deixava vislumbrar: o poder
da marca, o conhecimento de branding, que Kroc enxerga no projeto arquitetônico
dos arcos criado pelos próprios irmãos para uma loja McDonald’s na Califórnia.
Kroc enxergou
naquele esboço os valores americanos da bandeira e da igreja, um novo
restaurante para a família, sem mais jovens desocupados e baderneiros com suas
motos e carros em drive-ins. Para ele, a América não sabia o que queria. E ele
daria a todos aquilo que não sabiam que precisavam: um alimento para a
alma americana – não apenas comer
hambúrgueres, mas uma ideia, um espírito. Ou a metafísica corporativa atual:
valores, missão, princípios etc.
Em
termos semióticos, Mac e Dick tinham o referente, o objeto. Kroc tinha o
significante, o signo, a máquina semiótica de produção da nova riqueza do
Capitalismo: o valor agregado, o valor simbólico do produto. Tão poderoso, que
o consumidor deixaria de se preocupar com a própria qualidade do produto ou a
diferença entre o mock-up dos sanduíches nos anúncios (modelos cenográficos da
estúdios fotográficos) e o sanduíche real.
No
qual documentários como Super Size Me
de Morgan Spurlock (que denunciou o quão desagradável e até mortais são as
origens dos ingredientes das batatinhas e do Big Mac) têm pouco impacto em seus
consumidores. Afinal, eles consomem muito mais uma ideia do que propriamente os
hambúrgueres daquele Capitalismo no qual os irmãos Dick e Mac ainda viviam.
Pouco
importam as denúncias sobre batatinhas fritas serem tão transgênicas que nunca
estragam ou a carne de hambúrgueres serem tão processadas que a textura lembra
muito mais algum tipo de massa com intensificador de sabor.
O que
aprendemos em Fome de Poder é que o
gênio de Ray Kroc foi transformar a marca McDonald’s em uma religião secular: o
consumo não é mais de um produto tangível, alimentício. O que se consome é uma
ideia, a fé em um sistema de rapidez e alta conveniência. De sempre ter uma
loja da franquia perto do seu trabalho ou da residência.
Quando
Kroc vislumbrou nos arcos dourados idealizados pelos irmão como um detalhe
arquitetônico, ele viu algo muito maior. Uma máquina semiótica de simbolização
e iconificação: os arcos são símbolos da fé americana na igreja e na bandeira
nacional. Mas também quando o “M” foi iconificado em dois arcos dourados acabou
criando uma marca global. Assim como a cruz romana foi iconificada no crucifixo
que transformou a igreja católica em uma fé global.
Kroc
descobriu não só o poder de propaganda dos ícones. Mas também a marca e o ícone
como novas forças produtivas do Capitalismo. Que, como sempre, deixa vítimas pelo caminho:
os próprios irmãos McDonald e os consumidores expostos à “dieta do palhaço”.
Ficha Técnica
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Título: Fome
de Poder (The Founder)
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Diretor: John Lee Hancock
|
Roteiro: Robert Siegel
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Elenco: Michael
Keaton, Nick Offerman, John Carroll Lynch, Laura Dern, Linda Caderllini
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Produção: FilmNation
Entertainment, The Weinstein Company
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Distribuição: The Weinstein
Company
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Ano: 2016
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País: EUA
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