Um homem solitário e ranzinza confronta a chegada da morte. Com quase
90 anos, ele segue uma rotina espartana: faz alguns exercícios de ioga pela
manhã, depois pega o chapéu e caminha através de uma paisagem árida de cactos
numa cidadezinha no meio do nada. Trava conversas aleatórias sobre religião,
filosofia, moral, game shows da TV, saúde e a morte numa cafeteria e num bar.
Enquanto fuma muitos, muito cigarros. E entre seus interlocutores está o famoso
diretor David Lynch, que faz um homem que tem uma tartaruga chamada “Presidente
Roosevelt”. Esse é o filme “Lucky” (2017) sobre um protagonista ateu que entra
na lista de produções sobre personagens excêntricos de uma América profunda.
Mas Lucky tem um ateísmo de natureza muito especial – é dotado de um niilismo
gnóstico. Ele não crê num propósito ou sentido para a vida. Pelo menos, não
para esse mundo.
Paulie:
A amizade é essencial para a alma”
Lucky:
Isso não existe!
Paulie:
Amizade?
Lucky
(gritando): A alma!
Conecte
essa linha de diálogo com essa do filme Clube
da Luta (1999): “É apenas depois de perder tudo que somos livres”. Então,
compreenderemos o ateísmo militante do protagonista chamado Lucky. Todo ateísmo é
niilista. E todo niilismo é gnóstico. A busca por sentido é paralisante para a
liberdade e a felicidade. Deus, alma, etc. não existem... pelo menos não nesse
mundo.
O
filme Lucky (2017) inicia com imagens de um deserto no oeste americano. Vemos
uma tartaruga caminhando entre pedras, poeira e cactos. E depois, a versão
humana desta tartaruga: Lucky, interpretado por Harry Dan Stanton, na época com
89 anos e que morreria poucas semanas antes do lançamento comercial desta
produção.
Ao
longo dos 88 minutos do filme, passamos em companhia do protagonista, seguindo
sua rotina espartana. A única coisa que dá sentido à sua vida: acordar, fazer
alguns exercícios de ioga, pegar o seu chapéu e sair caminhando pela
cidadezinha no deserto, parar na cafeteria local e conversar com o cozinheiro,
a garçonete e seu amigo Howard (interpretado de forma magistral pelo diretor David
Lynch).
E
voltar para casa fumando muitos, muitos cigarros. E fazer palavras-cruzadas
enquanto assiste aos game shows da TV. Um volumoso dicionário aberto repousa
num púlpito no meio da sala, ao qual Lucky recorre esporadicamente para
encontrar sinônimos. Ou ligar para um amigo em um telefone vermelho, a qualquer
momento, em busca de soluções para as palavras-cruzadas.
Um tipo especial de ateísmo
Lucky
é um filme que aparentemente nada acontece. Mas muito coisa está acontecendo. É
um filme sobre morte e amizade. E também, rotina e realismo. Para o
protagonista, a vida nada mais é do que a rotina que traçamos para nós mesmos e
as amizades que são como pontos de paradas nesse percurso. E nada mais, apenas
à espera da morte que, para Lucky, é apenas o mergulho para o vazio, o nada.
O
ateísmo de Lucky não significa que ele creia no nada. Isso já é acreditar em
alguma coisa. Em meio a muitos cigarros (que adquire um simbolismo todo
especial na narrativa), Lucky faz um elogio ao niilismo como a única força que
nos proporciona a liberdade – quando a vida deixa de possuir algum desígnio,
propósito ou sentido, é quando nos sentimos mais livres.
O
niilismo gnóstico da narrativa do filme guarda um segredo: por acreditar que
nesse mundo nada há no que acreditar, resta o que nós mesmos fazemos, nossos
gestos, a rotina, o “realismo”. Lucky gosta dessa palavra e vai procurar o
significado no volumoso dicionário: “atitude ou prática de aceitar uma situação
como ela é e estar preparado para agir de acordo com ela”.
Pensadores
como Erich Fromm ou Sartre refletiram sobre esse medo humano da liberdade: crer
que só existe apenas nós nesse mundo amedronta. E por isso criamos propósitos e
desígnios metafísicos que nos aprisionam a instituições, sistemas ideológicos e
políticos. Sim, o sentido existe, mas não nesse mundo. Esse é o impulso secreto
que faz Lucky andar para frente no deserto.
O Filme
A
narrativa de Lucky é uma sucessão de conversas aleatórias sobre filosofia,
religião, moral, games shows, saúde, morte e... cigarros. Conversas em tons às
vezes de franqueza, brincadeira ou seriedade.
O
protagonista chama-se "Lucky" ("sortudo"), um veterano da marinha da Segunda Guerra
Mundial. Ele é um velho excêntrico, também cercado de outros excêntricos
habitantes de uma pequena cidade no meio do nada.
Howard,
interpretado pelo famoso diretor David Lynch, é um dos seus amigos. Um homem
preocupado com a sua tartaruga (chamada “Presidente Roosevelt”) que
desapareceu. E em torno do pequeno cágado, Howard tece impagáveis reflexões
metafísicas sobre a amizade humana com animais e em como um animal de estimação
pode mudar uma vida. “Ele viveu mais do que minhas duas esposas”, lamenta.
Lucky
é irritadiço, um ateu ao longo da vida, que prefere assistir programas de jogos
a ter uma conversa fiada. Então, um dia, ele cai em sua casa – simplesmente
desmaia diante da cafeteira. Vai para um médico que não acredita nos resultados
dos exames: uma saúde ótima e pulmões limpos, apesar de Lucky ser um fumante
inveterado: “só pode algum tipo de anomalia científica! Uma combinação de
herança genética com o filho da puta difícil que és...”, diz espantado o
médico.
Além
de conversas fiadas, Lucky tem desprezo por advogados (principalmente aquele
que pretende fazer o testamento de Howard deixando tudo para a tartaruga
Presidente Roosevelt), pela propriedade privada (“uma falácia”, diz) e por
regras. Principalmente a de “proibido fumar” no bar e na cafeteria. Para ele,
“minha casa, minhas regras” é uma besteira. Lucky parece ter sempre uma atitude
desafiadora em relação à morte, à saúde e às instituições.
Marginalia americana
Lucky é um filme que entra na tradição
de produções sobre a marginalia americana: sobre tipos excêntricos e esquecidos
na chamada “América Profunda”: Estranhos
no Paraiso, Paris Texas, Arizona Nunca Mais, Vida Sem Destino, Estrela Solitária
etc.
Mas o
diretor John Carrol Lynch eleva esse verdadeiro subgênero do cinema ao nível
metafísico: o niilismo gnóstico.
Lucky
não vê nenhum propósito, sentido ou presença de Deus nesse mundo. O deserto é a
grande metáfora que a narrativa constrói sobre a existência: árida e
abandonada. É compreensível sua admiração pelos cactos: crescem teimosamente no
meio da aridez.
E o
cigarro é a outra grande metáfora do filme: como uma atitude desafiadora em
relação às instituições, regras e a própria Ciência.
Talvez
o ponto alto do filme seja o diálogo que Lucky trava com outro veterano de
guerra, fuzileiro na guerra do Pacífico contra os japoneses. O veterano
descreve o espanto de, no meio da morte e devastação em uma aldeia, encontrar
uma menina que sorria de orelha a orelha como se estivesse feliz com a chegada
dos soldados americanos.
Mas
Lucky é direto, resistindo a encontrar qualquer positividade na existência:
“ela era budista. Ela achava que seria morta também. Estava apenas sorrindo
para o destino dela!”.
Ele
não espera nada do futuro, mas apenas se arrepende de oportunidades perdidas e
escolhas erradas que cometeu. Esse tamanho apego ao realismo e niilismo só nos
faz pensar que o ateísmo de Lucky não é comum. Ele ainda crê no sorriso e na
música diante do vazio e do nada que nos aguarda. Há ainda algum propósito. Mas
para Lucky, não está nesse Universo.
Ficha Técnica
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Título: Lucky
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Diretor: John Carroll Lynch
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Roteiro: Drago Sumonja e
Logan Sparks
|
Elenco: Harry Dean
Stanton, David Lynch, Ron Livingston, Yvone Huff, James Darren
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Produção: Superlative
Films
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Distribuição: Magnolia
Pictures
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Ano: 2017
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País: EUA
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